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terça-feira, 27 de agosto de 2024

 

éramos dez, faltavam dois dos apóstolos. não fomos juntos mas encontramo-nos todos na festa de lavandeira, capital da marrã e do churrasco, em carrazeda de ansiães.

era setembro e a noite estava bastante agradável.

o gijon acabava de nos convidar para comermos marrã e um bom churrasco, umas cervejas e a noite ficava a pertencer ao domínio da saudade.

alguns de nós questionamo-nos como era possível o gijon ter dinheiro, quando nunca tinha dinheiro; esquecemos o assunto e procuramos uma barraca onde se encontrasse uma mesa livre.

pedimos bebidas. pedimos marrã e churrasco, construímos pequenas estátuas com o miolo do pão e quase nos embebedemos.

tínhamos conseguido o milagre do pão e do vinho.

algum tempo depois, em termo de segredo, o gijon aconselha-nos a levantar da mesa e a sairmos um por um;

saí eu, saiu o mosca, saiu o espadinha, saiu o leirão, saiu o gomes… e saímos todos,

ficou apenas ele.

pediu mais uma cerveja e puxou de um cigarro.

quando percebeu que o dono da barraca e os respectivos funcionários estavam distraídos, foi vagarosamente colocando as travessas e as garrafas vazias na mesa atrás dele, que pertencia a outra barraca, a outro dono e a outros funcionários.

chamou a menina, pediu a conta,

ela disse que faltava apenas pagar uma cerveja, o gijon pagou a cerveja, levantou-se e ainda teve tempo de se despedir…

quando nos encontramos, ele;

mais um camelito.


o gijon foi (o maior sacana) que eu conheci e de quem sou amigo.

gosto muito dele.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Os barcos da minha infância

 Nesta lareira onde ardem os meus sonhos, oiço as lágrimas do silêncio, da labareda da noite, quase todas as noites, acordam

Ou dormem?

Acordam as cordas de nylon que aprisionam os barcos da minha infância; alguns em esferovite, outros em madeira fina e outros ainda construídos com os pequenos pedacinhos sobejantes das estrelas em papel que a menina das lágrimas deixava cair quando chorava.

Não tínhamos nada, apenas tínhamos alguns farrapos, algumas bugigangas e muito amor. Hoje percebo que ninguém sobrevive sem comida, mesmo que tenha muito amor, mas se não houver comida e existir muito amor, não se morre, sobrevive-se e caso seja necessário engana-se o estômago a olhar uma pilha de livros que o meu pai teimava em não vender. Confesso que também não vendia a pilha dos livros.

Queimá-los nesta lareira onde ardem os meus sonhos, talvez, mas vender, não, vender não,

E talvez já tenham acordado, que dizes?

Ainda dormem, e mesmo que já estejam acordados, não te preocupes, não passam de barcos à espera de entrarem na tua mão,

E claro, vender, não.

Tinha vergonha da minha janela, acreditava que num metro quadrado de um caixote em madeira cabiam todos os meus sonhos, fizemo-nos ao mar, e logo percebi que nem a saudade cabia, quanto mais todos os meus sonhos. E de menino dos calções passei rapidamente a rapazote das botas pesadas, das ceroulas, das meias grossas e das luvas que nunca me protegeram as mãos de nada, a não ser, de quando te vi pela primeira vez e

Ou será que dormem?

Porque não passam de barcos à espera de entrarem na tua mão, e como barcos que são, também eles amam, também eles choram, também eles acreditam que os sonhos são pedacinhos de estrelas nas mãos da alvorada.

E o mar todas as noites entrava-nos pela janela, e o miúdo dos calções, depois rapazote das botas pesadas, das ceroulas, das meias grossas e das luvas que nunca me protegeram

as mãos de nada, a não ser, a não ser dos pregos que um carpinteiro preguiçoso tinha semeado no metro quadrado de madeira e num dos lados tinha inscrito

Ou dormem?

PORTUGAL.

Acredito que não dormiam, pois, anos mais tarde, descobri que todos os barcos, mesmo durante a noite, inventam estórias sobre a lua e toda a santa noite cantam como cantam os pássaros,

Ela subia às árvores e brincava com os pássaros,

E os barcos conversavam com as estrelas em papel que a menina deixava cair quando chorava,

Não, não dormem.

Não tínhamos nada, a roupa escasseava, o frio gélido da Trás-os-Montes entranhava-se-nos no corpo até que acabávamos por adormecer e ao outro dia acordávamos tesos como uma barra de ferro, e só depois de abrirmos a janela, e com o passar das horas, descongelávamos até ao final da tarde, que depois de cair a noite, voltávamos novamente a congelar.

Ou dormem?

PORTUGAL.

Queimá-los nesta lareira onde ardem os meus sonhos, talvez, mas vender, não, vender não,

E talvez já tenham acordado, que dizes?

Não. Não vendia a minha pilha dos livros.

 

 

 

 

Alijó, 08/11/2022

Francisco Luís Fontinha