Se procurares nos meus olhos
Os finíssimos fios de
geada
Que a noite inventa
Não os encontrarás
Pois nos meus olhos
apenas habitam palavras
Lágrimas em palavras
Vozes
Versos ao pequeno-almoço
O café
As torradas
Os cigarros
A tosse dos cigarros
Os cigarros em tosse
Se procurares nos meus
olhos
O endereço das cartas que
te escrevo
Talvez encontres a morte
Que sem sorte
Ou com sorte
Não importa
Escreve em mim os versos
da madrugada
Tenho medo da fome
Fome do medo
Tenho nas mãos as algemas
do silêncio
Que todos os dias se
abraçam ao meu corpo
Que se diga
Nada de especial
Não sou um gajo bonito ou
jeitoso
Um dia disseram-me que
tudo era uma questão de cartão
E eu
Construi em cartão uma
casa com sótão
Uma casa bonita
Agradável
Com janela para o mar
Mas este cartão
Desta casa
Um dia
Ao outro dia
Ardeu como ardem as
minhas palavras nos teus lábios
E voltando ao meu corpo
Este pedaço de osso
anónimo
E não
Não falavam de uma casa
em cartão de verdade
E talvez quisessem dizer
Que pertenço a um corpo
Mais magro do que gordo
Mais comprido do que
magro
Tenho massa
E quando estou em repouso
Sou um pedaço de sucata
Com asas de vidro
Em mecânica
Sou um corpo
Imóvel
Que traz às costas os
barcos em sofrimento
Os barcos em pedaços de
neblina
Quando o sol poisa na tua
boca
E de um beijo
Construo
Uma simples máquina de
voar
Levita
Sobe e desce
Dorme numa cama de sémen
Depois escrevo ao meu
filho
Um gajo com poucos milímetros
de comprimento
E tantos e tantos
trabalhos me deu
Tive de vender palavras
na feira da Ladra
Vendi fardamento roubado
Botas
Livros e um capacete
metálico
E no final ainda sobraram
cinco contos de reis
E o gajo queria que eu trouxesse
uma velha espingarda
Reflecti
Hesitei
Pensei para que raio eu
queria uma velha espingarda
Uma espingarda que
disparava beijos
Abraços
E bebia shots de uísque
E comia rebuçados
Passava os finais de
tarde frente ao Tejo
Não comia
Bebia e fumava
Escrevia num caderno o
que me ia na alma
Mas vendo bem as coisas
Eu
Eu nunca tive nem tenho
alma
Só se for a alma do Diabo
Uma puta reclamava por
quinze minutos de sono
Um panfleto da branca
Trocava tudo isso por uma
volta ao Sol
Mas acabávamos sempre por
adormecer
Na zona escura da lua
Traziam-nos a noite
Erguia-se na parede um
crucifixo de sangue
Em lágrimas
Com lágrimas
Depois aterrávamos numa qualquer
rua da cidade
E a cidade come a cidade
E a cidade bebe a cidade
Eu comia a cidade
E a cidade
envergonhava-se dos meus alimentos comestíveis
Drageias de sono
Na algibeira um punhado
de cansaço
E a cidade continuava em
pequenos voos
Em direcção a um caderno
que nas minhas mãos aos pucos dormia
Sorria
Brincava
E aos poucos…
Morria.
Alijó, 20/11/2022
Francisco
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