domingo, 20 de novembro de 2022

O caderno

 Se procurares nos meus olhos

Os finíssimos fios de geada

Que a noite inventa

Não os encontrarás

Pois nos meus olhos apenas habitam palavras

 

Lágrimas em palavras

Vozes

Versos ao pequeno-almoço

O café

As torradas

 

Os cigarros

A tosse dos cigarros

Os cigarros em tosse

Se procurares nos meus olhos

O endereço das cartas que te escrevo

 

Talvez encontres a morte

Que sem sorte

Ou com sorte

Não importa

Escreve em mim os versos da madrugada

 

Tenho medo da fome

Fome do medo

Tenho nas mãos as algemas do silêncio

Que todos os dias se abraçam ao meu corpo

Que se diga

 

Nada de especial

Não sou um gajo bonito ou jeitoso

Um dia disseram-me que tudo era uma questão de cartão

E eu

Construi em cartão uma casa com sótão

 

Uma casa bonita

Agradável

Com janela para o mar

Mas este cartão

Desta casa

Um dia

Ao outro dia

Ardeu como ardem as minhas palavras nos teus lábios

 

E voltando ao meu corpo

Este pedaço de osso anónimo

E não

Não falavam de uma casa em cartão de verdade

 

E talvez quisessem dizer

Que pertenço a um corpo

Mais magro do que gordo

Mais comprido do que magro

Tenho massa

E quando estou em repouso

Sou um pedaço de sucata

Com asas de vidro

 

Em mecânica

Sou um corpo

Imóvel

Que traz às costas os barcos em sofrimento

Os barcos em pedaços de neblina

Quando o sol poisa na tua boca

E de um beijo

Construo

Uma simples máquina de voar

Levita

Sobe e desce

Dorme numa cama de sémen

 

Depois escrevo ao meu filho

Um gajo com poucos milímetros de comprimento

E tantos e tantos trabalhos me deu

Tive de vender palavras na feira da Ladra

Vendi fardamento roubado

Botas

Livros e um capacete metálico

E no final ainda sobraram cinco contos de reis

 

E o gajo queria que eu trouxesse uma velha espingarda

Reflecti

Hesitei

Pensei para que raio eu queria uma velha espingarda

Uma espingarda que disparava beijos

Abraços

E bebia shots de uísque

E comia rebuçados

 

Passava os finais de tarde frente ao Tejo

Não comia

Bebia e fumava

Escrevia num caderno o que me ia na alma

Mas vendo bem as coisas

Eu

Eu nunca tive nem tenho alma

Só se for a alma do Diabo

 

Uma puta reclamava por quinze minutos de sono

Um panfleto da branca

Trocava tudo isso por uma volta ao Sol

Mas acabávamos sempre por adormecer

Na zona escura da lua

 

Traziam-nos a noite

Erguia-se na parede um crucifixo de sangue

Em lágrimas

Com lágrimas

Depois aterrávamos numa qualquer rua da cidade

 

E a cidade come a cidade

E a cidade bebe a cidade

Eu comia a cidade

E a cidade envergonhava-se dos meus alimentos comestíveis

 

Drageias de sono

Na algibeira um punhado de cansaço

E a cidade continuava em pequenos voos

Em direcção a um caderno que nas minhas mãos aos pucos dormia

Sorria

Brincava

E aos poucos…

Morria.

 

 

 

 

 

Alijó, 20/11/2022

Francisco

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