Perto do musseque éramos felizes, como eram felizes os que viviam perto do musseque; a manhã acordava, na rua ouvia-se o trote do branco cavalo que passeava todos os dias pela mão da linda Catarina, o irmão, rapaz dos seus quinze anos, desenhava formas geométricas com a velha motorizada que tinha herdado do avô, homem foragido da metrópole por razões políticas.
Junto ao Grafanil
ouviam-se os vómitos de saudade do Unimog que regressava do mato, transportava
homens que tinham vendido os sonhos e sem perceberem, ainda acreditavam no
futuro.
A Catarina, indiferente
às lágrimas de todas as sombras que ouvíamos na noite, sentava-se junto ao
portão de entrada na esperança que o pai um dia regressasse do mato com o
camião que tinha partido com mercadorias diversas. Com um giz, deixava traços
invisíveis no muro do quintal, um dia, contou-os; trinta e cinco. Desistiu de
esperar.
Semanas depois,
disseram-lhe que o camião que o pai conduzia passou sobre uma mina e desfez-se
em pedaços de lágrimas; acontecia a todos aqueles que tinham longas noites nos
olhos.
Eu, deliciava-me a dar
pancadas num velho triciclo, e quando me perguntavam o que estava a fazer,
O menino está a arranjar.
Mais tarde, contaram-me
que saía ao meu tio António, que depois de lhe oferecerem um qualquer
brinquedo, abria-o e se lhe perguntassem…
É para ver como é feito.
Mas naquela altura não me
interessava pelo corpo feminino, portanto quanto à linda Catarina, era apenas a
linda Catarina; e talvez tenha só a memória fotográfica do esbelto branco
cavalo que passeava todas as manhãs em frente ao meu portão, e depois, percebia
que mais um dia tinha acordado.
Quanto a motorizadas,
apenas me fascinavam os desenhos geométricos que o Pedro deixava sobre a poeira
de um descampado junto à rua e o fumo escuro que esta cuspia depois de alguns
círculos, círculos que certamente sofriam de alguma doença crónica, pois nunca
eram perfeitos.
Amo-te, meu querido Joaquim!
Também te amo muito,
minha querida Catarina!
E de paixão apenas
conhecia a que tinha pelos barcos, papagaios em papel e pelo meu melhor amigo;
o eterno chapelhudo.
Não escrevas nas paredes,
Francisco,
É para ver como é feito.
Depois do jantar, íamos
aos Coqueiros assistir aos treinos de hóquei em patins, deliciava-me com a
dança dos corpos daqueles jovens que sem o saberem, escreviam no pavimento a
mais linda estória das noites da minha infância, regressado a casa, adormecia a
sonhar com o branco cavalo da linda Catarina. Às vezes, ainda íamos dar uma
volta ao Baleizão, que sempre que me ofereciam um gelado, que eu apelidava de
Rajá, respondia que…
Não gosto.
E ainda hoje não percebo
muito bem do que gostava naquela altura, tirando os barcos, os papagaios, o
chapelhudo, os desenhos nas paredes e as pancadas no triciclo, de nada mais
gostava.
As bananas tinham bicho. De
sumos, não gostava. Os chocolates que os amigos do meu pai me ofereciam, quase
não lhes tocava. Quando se tratava de comer a sopa, inventava mil razões para a
não meter à boca; estava quente, não tinha fome, e
É para ver como é feito.
E enquanto arranjava o
triciclo descobri que os aviões que eu ia ver ao aeroporto e os que passavam
sobre a minha casa, tinham tamanhos diferentes. Passei muito tempo para
entender que se tratava apenas de distância e que ambos tinham o mesmo tamanho.
Depois,
Catarinaaaaa…
Sim mãe, vou já, logo que
o branco cavalo desça das nuvens, e num ápice, um enorme buraco negro cospe uma
estrela,
E o raio do cavalo de
nuvem em nuvem, até que descobriu
Pedro, casa já.
O menino está a arranjar.
De buraco em buraco até
se esconder da mina que dizimou o camião, o pai e a mercadoria da linda
Catarina.
Choveu muito ontem, entre
o capim vi pela primeira vez o lençol da saudade, e percebi porque hoje amo o
mar, e ontem, e ontem fugia da lhá…
Tão grandes, pai.
É para ver como é feito.
Perto do musseque somos
felizes, como são felizes os que vivem perto do musseque; a manhã acorda e a
doce e linda Catarina, montada no seu branco cavalo voa em direcção às nuvens, em
baixo, jaz o mar límpido que outrora adormeceu na algibeira dos pequenos
calções do menino ranhoso que inventava amigos para brincar debaixo das
mangueiras, que que às vezes se esquecia de dormir, quando as tardes eram
apenas pedaços de silêncio onde a motorizada do Pedro e o branco cavalo da
linda Catarina davam as mãos e saiam para passear junto à Baía.
Tão grandes, pai.
O menino arranja.
E amanhã certamente tenho
a visita dos papagaios em papel e das estrelas que um dia desapareceram de mim,
como desapareceram as minhas sandálias de couro…
Ai a lhá…
E depois, encerraram a
janela e nunca mais vi o mar.
Alijó, 14/10/2022
Francisco Luís Fontinha