foto: A&M ART and Photos
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Viajo entre curvas ínfimas que me transportam às
sílabas papel dos lábios jardins camuflados dentro da cidade, tenho
ruas só minhas, casas desabitadas, onde, só, adormeço, passos
algumas horas, porque tenho a poder de transformar horas em dias,
recheios de apartamentos sujeitos a vandalismos proliferam escadas
abaixo, e entre mim e o corrimão, penso-o, possivelmente nem uma
mosca, daquelas esqueléticas, conseguem colocar-se a meu lado, subo
só, e desço descalço, como se não existissem espelhos e
cobertores, apenas uma rampa inclinada, voando eu, até encontrar a
porta do prédio ao lado, uma velha pastelaria, moscas, estas não
esqueléticas, coabitam com os croissants e os restantes bolos,
lâminas de barbear, pilhas, jornais e revistas, mulheres nuas dentro
de papel que acabará numa casa de banho pública, peço um café
curto, e sobre a mesa onde esqueço os cotovelos, vejo uma chávena
quase a abarrotar de café, procuro na algibeira sessenta cêntimos
de euros e despeço até sempre desta horrível pastelaria perdida
numa avenida incógnita, como as pedras da Ajuda, caminhadas com
milhões de pés, às vezes, com o vento, tombávamos no chão, havia
desníveis, ora subia, ora descia, e claro, o chão sempre foi a
nossa melhor cama, depois do sono, acordavam os enjoos, o fígado
inchado, a dor no estômago, e
Tonturas,
E os cigarros esquecidos na prateleira junto ao
uísque e a migalhas de haxixe que de um caixote em chapa, de nome
armário, ficavam o santo dia acorrentados, até que vinha a noite,
abríamos a porta, e seguíamos viagem pelas ruas mais escuras que
habitavam junto ao rio, corríamos, corríamos... e quando nos
sentávamos nas margens do rio, apenas sós, cruzávamos as pernas,
eu, os cigarros e as migalhas de haxixe, e
Tonturas, pernas torneadas por um verdadeiro artista
plástico, bela, o corpo parecia um Stradivarius, e o som, o som
escorria um líquido a que os humanos chamam de suor, pequenas
gotinhas com sabor a incenso, ou a doçura, ou... a música,
E uma almofada amarela com bolinhas encarnadas,
brancas ou negras, mergulhava nos lençóis desejo da noite, listras,
brancas, intercaladas com o silêncio do capim, e nas paredes do
sono, quadros, pinturas abstractas com mãos de alicerce, uma ponte
despedia-se do rio, e no rés-do-chão da rua onde dormíamos quando
fingíamos desgostos e dores de cabeça, havia sempre uma mosca,
esquelética, não esquelética, e que às vezes era tão amorosa que
dormíamos os três juntos...
(os cigarros, o sono, as migalhas de haxixe, duas
moscas, uma esquelética e outra não esquelética, e claro, eu)
… amarrados à almofada, com o medo de perdermos
as listras brancas, porque as negras não corriam esse risco, visto
ser noite, e o negro dilui-se na escuridão, como os beijos de duas
pessoas que se desejam,
Um homem e uma mulher, dois homens ou duas mulheres,
porque o importante é não perdermos as moscas, as esqueléticas e
não esqueléticas, os cigarros, as migalhas de haxixe, as mãos
quando se entranham nas tuas coxas, e sempre, o todo, o inesquecível
abraço, os sexos imprimidos nos espelhos das janelas, e feliz
Stradivarius voando sobre dois corpos nus sobre lençóis invisíveis,
e almofadas com listras, coitadas, acorrentadas à solidão...
E esqueci-me do uísque.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha