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foto: A&M ART and Photos
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Ente nós, o vento que sopra e faz balançar a fina
e ténue cortina invisível das manhãs indesejáveis, algures dentro
da cidade, existe uma seara de desejo, com luzes, cores, flores e
bichos minúsculos, vida dentro da vida, e se um dia
(e se um dia uma desconhecida me oferecer flores...
isso é, nada, porque nunca uma desconhecida me ofereceu flores, nem
nunca, na minha curta vida, uma desconhecida, conhecida, me
ofereceu... um simples poema, ou apenas... um simples olhar
tridimensional encerrado dentro de um hipercubo, pensas que sou
louco, mas se pesquisares no Google por “hipercubo” encontrarás
centenas deles, seres estranhos, que não devem amar, nem sofrer por
amar uma maré em descomposição, como a extracção da raiz
quadrada ou da raiz cúbica, ou... e se um dia uma desconhecida me
oferecer flores... isso, nada, coisa alguma, nem um candeeiro de
ruela consegue ser, nem cigarro, nem cachimbo, nem texto ou poema,
isso é, um sonho interminável, desnecessário e não realizável,
como nas manhãs de ti, o corpo da almofada embrulha-se nos teus
seios, ancora-se ao teu púbis, e lá fora, um cansaço de palavras,
feridas, doridas, mergulham nas clandestinas tascas com mesas
cobertas com toalhas de plástico; a saudade do peixe frito, dos ovos
cozidos dentro de uma vitrina de vidro, escancaradamente, sem portas
ou janelas, onde poisavam as moscas, e em acrobacias, saltitavam
entre os tais ovos cozidos, as pataniscas de bacalhau e os bolinhos,
também eles de bacalhau, apenas de nome, porque de bacalhau, nada,
só a batata e o óleo onde desciam ao fundo de uma frigideira,
negra, escura como as noites sobre as toalhas de plástico, onde
dormíamos, e vivíamos, e nos diziam que éramos felizes...)
Entre nós, o vento, envenenado, cinzento vento que
faz adornar o teu corpo nas entranhas de um pinheiro bravio, em cio,
talvez, e se um dia tivermos um filho, chamar-se-á de “Eterno
Prejuízo” ou “Dirceu” ou... “Pigmeu das Arcadas com Bolor”,
e se um dia, se esse dia chegar, o das flores,
(tocam-me à porta, e eu como estou ocupado, não
vou abrir, escrevo num caderno, coisas sem significado, coisas que
ninguém lê e que depois de passar o vento, leva-as, a todas, as
palavras e o caderno e a caneta de tinta permanente, - Gosto do
cheiro da tinta, digamos que, sou apaixonado pelo cheiro a tinta –
e os batimentos não cessam, como um coração de oiro perdido no
centro de um buraco de areia, húmida, como as tuas coxas quando
nasce o dia, aos cento e vinte batimentos por minuto, levanto-me
irritadíssimo, poiso a caneta sobre as palavras dispersas no papel
ainda em fase de transição, do molhado até atingir o seco,
maleável, pronto a alimentar uma lareira que ganha vida no próximo
Inverno, puxo a cadeira desconfortável para trás, e um espaço
vazio abre-se entre a cadeira e a mesa, indeciso, vou à porta,
apetece-me caminhar devagar, muito devagar, saio da biblioteca, rumo
ao corredor, passo por uma porta, depois outra, atravesso a sala, a
cozinha e mesmo em frente à porta de entrada penso – Quem será a
esta hora! - e demoro uns segundos quase minutos a abrir, tiro a mão
do bolso, puxo o trinco e abre-se a tão afamada porta, um vulto com
cabelos castanhos e de olhos verdes e com pele escura, nos braços um
ramo de flores, hesito, não acredito, mas enfim... a vida tem destas
coisas, às vezes boas, outras, pouco loucas, e outras, quase
impossíveis de realizar, mas quis o destino que uma linda seara de
trigo, perdida na cidade das eiras, me oferecesse flores)
“Ente nós, o vento que sopra e faz balançar a
fina e ténue cortina invisível das manhãs indesejáveis, algures
dentro da cidade, existe uma seara de desejo, com luzes, cores,
flores e bichos minúsculos, vida dentro da vida, e se um dia”
Saltas, como um pássaro em liberdade, vergas-te
quando o vento faz dançar o teu caule dentro dos desejos sonhos
inventados por um caderno recheado de palavras, e
(o cheiro, meus Deus, o inevitável e inesquecível
cheiro da tinta de uma caneta permanente)
E tudo apenas para que um dia, próximo, distante,
ou nunca, escrever o nome do nosso filho
(“Eterno Prejuízo” ou “Dirceu” ou...
“Pigmeu das Arcadas com Bolor”)
O filho de meia dúzia de palavras e de uma seara de
trigo esquecida dentro da cidade das eiras, um filho como todos os
outros filhos, com pernas, braços, cabeça. Olhos, cabelo, e claro,
livro de instruções,
(é sexta-feira, de mil novecentos e oitenta e
cinco, atravesso vagarosamente a ponte sobre o rio Sul, nas Termas de
S. Pedro do Sul, a tarde parece infernal devido ao calor,
distraidamente passo em frente à pensão David, vou em direcção à
saída, e é quase como que se o meu corpo se transformasse em
sombra, começo a contar os vidros das janelas, lá dentro nunca
esqueci o cabrito assado, deliciosamente e divinal, do outro lado da
estrada, o rio, e os patos de água, começo a contá-los e desisto
quando vou em seis, mais à frente, atravesso uma velha ponte em
madeira, e junto aos antigos balneários, debaixo de uma árvore,
sento-me num dos bancos de jardim, perto de mim, uma fonte com o
inconfundível cheiro a enxofre, esqueço-me que existo, e
mentalmente, a cada mulher que passa por mim, imagino-a a oferecer-me
flores, e nunca pensei, e nunca acreditei, que conseguisse receber
tantos e lindos ramos de flores: obrigado meninas transeuntes... como
os vidros das janelas da pensão)
Percebes agora?
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha