domingo, 24 de novembro de 2013

a cidade dos cães

foto de: A&M ART and Photos

sentia-me perdido dentro da cidade dos cães
ouvíamos os sofridos mendigos de prata
tactearem as paredes dos abandonados barcos de papel
sentia-me esquecido no teu corpo de porcelana
envidraçado e comido como os ossos do esqueleto negro
depois de partir o luar
sentia-me nos latidos embebidos nas palavras que jaziam no cobertor da lareira
e sobre a mesa
a tua fotografia parecendo uma montanha
um penedo monstruoso vagueando sobre as pedras ao aço envergonhado
de que se fazem estátuas
e homens com corpo musculado

(e sussurras-me à ardósia tarde que sou uma tábua que sobejou do caixão das merendas quando o cais abraçava comestíveis corações em molho de solidão
sentia-me parvamente só
como se devem sentir os restantes barcos da família dos pássaros
releio e leio e sinto
dentro de mim
“O Cais das Merendas”
e sentia-me embriagado com os cheiros das letras em flor)
[“O Cais das Merendas” de Lídia Jorge]

sentia-me perdido dentro dos contentores amovíveis dos sonhos nocturnos
tínhamos acabado de descobri os beijos e o perfume dos Plátanos do jardim
(em Alijó também há Plátanos)
bancos em madeira vagueavam na Baía e de longe regressavam as perdizes cinzentas
das imagens a preto-e-branco que o esqueleto negro trazia na lapela
sentia-me só na cidade dos cães
e percebia os vómitos angustiantes das canções que saltitavam num bar da rua das andorinhas
havia meninas
e livros disfarçados de meninas
e meninas comendo livros e livros
como as tuas palavras...
zangadas com o presente
procurando o inferno passado dos caixotes sonolentos

[não sei quem sou e como sou e tudo começou quando eu me sentia perdido na cidade dos cães]


(não revisto)
Domingo, 24 de Novembro de 2013
Francisco Luís Fontinha – Alijó

o sábio preguiçoso

foto de: A&M ART and Photos

voas como sábios preguiçosos
dormes como dormem as estrelas da paixão
voas sobre as lápides de chocolate
como palavras perdidas no jardim dos bosques sem luar...
sei que que me ouves depois de todas as janelas se esconderem nos alicerces do amor
sei que de mim nada pertence aos arbustos de Belém
voas como sandálias nas praias de Luanda
pedíamos um beijo
e ofereciam-nos mangas com paisagens imaginárias
invisíveis
tristes às vezes
como o eram as tuas mãos que poisavam no meu rosto

voas em mim sem o saberes
que eu te pertenço
que eu... te amo
voas sobre as fotografias tuas
em pedaços de papel pregados nas frestas da dor
(voas como sábios preguiçosos
dormes como dormem as estrelas da paixão
voas sobre as lápides de chocolate)

voas como suspiros envenenados pelos orgasmos do pólen em decomposição
voas como um cadáver suspenso no cordel de um papagaio de papel
voas como voava a criança que brincava debaixo das bananeiras...
rodopiavam as rodas do velho triciclo no cimento nocturno dos mabecos em flor
e sorrias
e sentias
o vento das asas que hoje habitam em ti
voas
voas como um sobrevivente sábio preguiçoso
que tem medo das ruas com vidros de prata
que... tem medo da vida
a vida em telhado chapa...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 24 de Novembro de 2013

Participação de Francisco Luís Fontinha na Logos nº5/Novembro de 2013



sábado, 23 de novembro de 2013

A máscara de vidro

foto de: A&M ART and Photos

Começávamos a alimentar, primeiro os porcos e as galinhas, depois eles, e nós, quase sempre, os últimos da ninhada, nunca chegava, parecia-nos pouco, ou nada, sentávamos-nos sobre o tanque do terreiro e olhávamos o silêncio repatriado das papoilas navegantes das caravelas em bolor, sentíamos a ondulação da tristeza a entranhar-se-nos como facas de um velho faquir no tronco da velha árvore do recreio,
Recordas-te ainda dos arvoredos infelizes que dormiam em nossa casa?
O velho faquir tinha uma mulher que costumava aparecer junto a nós, sempre de branco, talvez porque ela apenas vivia de noite, porque ela era filha da noite, poderia eu perguntar-me se ela era a minha mãe, pois eu
Adoro viver de noite, queria ser a noite sem interrupções, lanternas mágicas ou... cortinados com estampados de verniz e cansados nos arames verticais das ruas entupidas de lixo, mendigos, nós à procura de outros mendigos
O Velho?
As facas gemiam quando entravam na fina casca da madeira e não sabíamos que o velho faquir usava uma máscara de vidro para que ninguém o reconhecesse... ao que parece, ele
Eu sou o filho da mãe noite, eu sou a faca que rompe a madrugada, eu sou a roseira que quando chora
Dela brotam as pequenas gotículas de sangue que a saudade esconde na sombra das mangueiras dos quintais longínquos das esplanadas viradas para o mar, o filho da noite, eu, eu não sabia que existiam eléctricos, não sabia o significado de eléctrico... e dizia ao meu pai que o autocarro da carreira se apelidava de
Machimbombo,
Eu sou o filho da mãe noite, eu sou a faca que rompe a madrugada, eu sou a roseira que quando chora, ouvem-se-lhe os picos em aço inoxidável infestarem a velha árvore do recreio, rompíamos as calças, e usávamos joelheiras em napa para disfarçarmos os tentáculos e húmidos buracos da Primavera,
(começávamos a alimentar, primeiro os porcos e as galinhas, depois eles, e nós, quase sempre, os últimos da ninhada, nunca chegava, parecia-nos pouco, ou nada, sentávamos-nos sobre o tanque do terreiro e olhávamos o silêncio repatriado das papoilas navegantes das caravelas em bolor, sentíamos a ondulação da tristeza a entranhar-se-nos como facas de um velho faquir no tronco da velha árvore do recreio, e não sabíamos que havia dentro de nós uma fina tábua, quase invisível, recheada de prego, e durante a noite, o velho faquir...)
Adormecíamos acreditando que tínhamos o estômago cheiro, estávamos fartos, tão fartos que até inventamos uma sanzala em papel só nossa, a nossa sanzala de papel com pequenos charcos para durante a noite
Chapinávamos nos charcos da sanzala de papel inventada por eles e acreditávamos que éramos felizes assim,
Assim,
Como?
O machimbombo,
A chuinga estremecia-me a dentadura de marfim que tinha partido do jacaré em pau-preto, havia uma imagem que nunca esquecemos, os barcos zangados rompendo pela cidade como animais ferozes e envenenados pelas castanhas ondas que o abismo desenhava em nós, e tu, e eu,
Dormíamos,
Sou teu filho, tu, a noite que me acolhe, alimenta, afaga o cabelo,
Branco?
Não negro,
As roseiras?
Não às bolinhas,
Esqueci-me da cor do meu cabelo, esqueci-me que a minha mãe dorme enquanto eu, eu sonho, e invento palavras para te recordar dentro de uma lápide sem nome, idade, como o poema escrito e deixado sobre a mesa... depois de fazermos amor... voavam os campos de centeio que zumbiam em Carvalhais, olhávamos as espigas do doirado milho...
E não sabíamos que Machimbombo era autocarro da carreira...


(não revisto – ficção)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 23 de Novembro de 2013

os triângulos insectos

foto de: A&M ART and Photos

os triângulos insectos que o sofrimento padece
quando lhe pertencem as tuas mãos de andorinha selvagem
os senos inventados dos lábios em engrenagens que à tua boca atracam
e se afundam como serpentes cordas em nylon emagrecido que a madrugada alimenta
os triângulos insectos que se alicerçam ao teu peito
bebíamos pétalas de silêncio em efusão de sílabas desastradas como pedras de calçada...
havíamos roubado todos os barcos naufragados das avenidas embriagadas
entravam em nós marinheiros e meninas de mini-saia doirada com círculos encarnados
pensávamos que era o rosto da lua
mas a lua nunca foi encarnada
mas a lua nunca pertenceu aos barcos envergonhados das avenidas embriagadas...
então?

(os cossenos dos teus seios dentro de tristes equações diferenciais
depois
havíamos roubado todos os barcos naufragados das avenidas embriagadas
e ficávamos com as tangentes do sofrimento que sobejavam das flores do medo...)

então
então pensávamos que o seno hiperbólico da saudade vivia no mesmo quarto que os beijos cansados
dos triângulos insectos em teus cabelos mergulhados na geada cristalina da montanha dos peixes...
então...
então víamos o regresso da paixão em ensonadas linhas paralelas
então...
ouvíamos os uivos grunhidos dos corpos em movimento uniformemente acelerado
parávamos em frente aos telhados de zincos dos guindastes da pobreza...
então...
então percebíamos que as palavras escritas nos quadriculados cadernos...
eram os encarnados círculos disfarçados de cossenos parvos
disfarçados de senos loucos que a trigonometria inventou para nós...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 23 de Novembro de 2013

(serás feliz sem mim?)


entristece-me este poema não escrito
desenhado nas masmorras do teu sofrimento
entristece-me a tua boca construindo suspiros e lágrimas em palavras de pergaminho...
entristece-me a tua voz solicitando um abraço
nos distantes corredores do silêncio
entristece-me a tua solidão abismal dos sótãos embriagados em marinheiros vampiros
entristece-me quando te olho vagueando os rios sobre as pontes de madeira
merecias um sossego comediante
um sorriso
um beijo antes de partir... se vais partir sem te despedires dos azulejos cerâmicos do teu olhar
se vais abandonar as tuas pálpebras de cetim como cortinados da janela dos sonhos...
entristece-me este poema teu não escrito

(serás feliz sem mim?)

entristece-me ver-te entranhado nas gotículas de sémen que os pássaros deixaram nos jardins abandonados
entranhando-se os comboios sonâmbulos das avenidas repatriadas nos montículos de areia doirada
entristece-me os teus olhos malignos
em margaridas ruas repletas de crianças em pinceladas telas do amor apaixonado...
serás feliz sem mim?
entristece-me as cornijas do sono sobre o teu corpo dilacerado
dorido
sofrido
e magoado...
entristece-me quando gritas o meu nome
e não percebo se será a última vez que o fazes...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 23 de Novembro de 2013

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

as pigmentadas palavras...

desenho de: Francisco Luís Fontinha

pigmentas-me as palavras envenenadas pelo teu cansado suor
prometes-me o silêncio das prisões nocturnas do medo
sinto-o a cada milímetro de sofrimento na minha direcção
sei que não conseguirás chorar
sei que finges estar tudo bem
mas eu sinto-o dentro de ti
cada medo teu encalhado no espelho da vida
pegas nos álbuns fotográficos do teu passado
e brincas com as imagens minhas chapinhando canções sem estória numa praia de Luanda
e ouvimos o vento baloiçar nas mangueiras em sombras minguas do quintal sem telhado de vidro...
pertencemos aos pigmentos horários da cinzenta madrugada em pedaços mendigo
como serpentes de areia correndo sobre o cacimbo das algibeiras em flor

sofrerás tu?
pigmentas-me as palavras envenenadas pelo teu cansado suor
e pergunto-me se a solidão é um homem
ou o homem que existe em ti se veste de solidão
traiçoeiro condomínio da saudade
a fome das árvores quando os pássaros perdem a liberdade
e tu nada dizes...
e tu pareces serenamente feliz para sentires os cadeados em arame farpado à volta dos teus desejos como o eras quando atravessavas o rio e sentavas-te do outro lado da fronteira...
sofrerás tu?
olhavas a paisagem imaginária do antigo Congo belga...
e uma criança ainda não nascida... pegava na tua mão e sussurrava-te as pigmentadas palavras...

(envenenadas pelo teu cansado suor)


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 22 de Novembro de 2013

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

os pequenos habitáculos de gelo

foto de: A&M ART and Photos

deixarei de escrever
canso-me das minhas palavras
cansam-me as outras palavras
deixarei de ouvir o sussurro da madrugada
como cortinados embrulhados em pedaços de vento
e silêncios de nada
deixarei de me ouvir
de escrever
das outras palavras
cansam-me as flores quando brotam gotas de sangue
olho-me no gigantesco espelho da vida
e vejo os morcegos das avenidas sem saída

(os pequenos habitáculos de gelo
onde vivem as preguiçosas alvoradas do medo)

os pássaros são extremamente parvos
apaixonam-se facilmente pela Primavera
eu... outro suficientemente parvo
não me apaixono facilmente pela Primavera...
mas...
sou amante da geada
e canso-me das palavras
minhas
e as outras
deixarei de viver
vivendo dentro de uma fotografia a preto-e-branco
como uma janela envidraçada

(os pequenos habitáculos de gelo
onde vivem as preguiçosas alvoradas do medo)

deixarei de ser eu
quando partirem todos os palcos da tristeza em direcção ao mar
saberei reviver os cansaços tantos que me habitam como asseadas pedras de cinco esquinas?
(deixarei de escrever
canso-me das minhas palavras
cansam-me as outras palavras)
acordo e sinto-me um fantasma com plumas e pulseiras de pechisbeque...
sou uma puta contratada pela noite inventada
do espelho envenenado com o cianeto da paixão
sobreposto a mim
um insignificante petroleiro em delírio consumindo-me como uma lareira em ebulição...
e sou um boneco... travestido de morte


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 21 de Novembro de 2013

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

frio gelatinoso

foto de: A&M ART and Photos

o frio gelatinoso dos teus ossos de prata
quando se engrenavam no meu cansado esqueleto de lata
mórbido papel onde jaziam as alegres palavras da madrugada
tínhamos na mão o peso desmesurado da geada clandestina
que o relógio de pulso escrevia na alvorada
as sílabas envergonhadas da musa menina
o frio entranhava-se nos oleosos cobertores de menta
e havia sobre a mesa-de-cabeceira um livro cadáver com sabor a pimenta
a madrugada das palavras congelava como congelam as hélices dos cucos de porcelana...
havia mendigos à procura de uma cama
e tu desproporcionada
envergonhavas as gotículas suicidadas
que a tarde construía nos lençóis de pura virgem lã... doces línguas de desejo
(o frio gelatinoso das engasgadas bocas com flores de lábios charlatães
fundiam como chumbo no cacifo do corredor antes de acordar o pôr-do-sol)
o frio gelatinoso das mãos diurnas aquecem os dedos da palavra apaixonada
vagabundas pernas de aço descendo as calçadas
e no entanto... tínhamos um piano em sexo embrulhado no silêncio beijo


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 20 de Novembro de 2013

despedidas

foto de: A&M ART and Photos

apetece-me a chuva embrulhada em manhãs de neblina
ouvir os uivos sons das flores em harmonia
cantar os silêncios melódicos da insónia sinfonia
apetece-me ser a nuvem madrugada
a geada
noite dilacerada em papel transparente com pálpebras de vidro
apetece-me escrever no teu corpo versos loucos com olhos Margarida
e nos cadernos encornados das árvores embriagadas
abraçar-me as caravelas despedidas
loucas vãs noites de luar adormecido quando a alvorada desfalece
desiste de beijar as janelas de vidro fosco
há sombras dentro de ti e há palavras loucas dentro de mim...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 20 de Novembro de 2013