foto de: A&M ART and Photos
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sentia-me perdido dentro da cidade dos
cães
ouvíamos os sofridos mendigos de prata
tactearem as paredes dos abandonados
barcos de papel
sentia-me esquecido no teu corpo de
porcelana
envidraçado e comido como os ossos do
esqueleto negro
depois de partir o luar
sentia-me nos latidos embebidos nas
palavras que jaziam no cobertor da lareira
e sobre a mesa
a tua fotografia parecendo uma montanha
um penedo monstruoso vagueando sobre as
pedras ao aço envergonhado
de que se fazem estátuas
e homens com corpo musculado
(e sussurras-me à ardósia tarde que
sou uma tábua que sobejou do caixão das merendas quando o cais
abraçava comestíveis corações em molho de solidão
sentia-me parvamente só
como se devem sentir os restantes
barcos da família dos pássaros
releio e leio e sinto
dentro de mim
“O Cais das Merendas”
e sentia-me embriagado com os cheiros
das letras em flor)
[“O Cais das Merendas” de Lídia
Jorge]
sentia-me perdido dentro dos
contentores amovíveis dos sonhos nocturnos
tínhamos acabado de descobri os beijos
e o perfume dos Plátanos do jardim
(em Alijó também há Plátanos)
bancos em madeira vagueavam na Baía e
de longe regressavam as perdizes cinzentas
das imagens a preto-e-branco que o
esqueleto negro trazia na lapela
sentia-me só na cidade dos cães
e percebia os vómitos angustiantes das
canções que saltitavam num bar da rua das andorinhas
havia meninas
e livros disfarçados de meninas
e meninas comendo livros e livros
como as tuas palavras...
zangadas com o presente
procurando o inferno passado dos
caixotes sonolentos
[não sei quem sou e como sou e tudo
começou quando eu me sentia perdido na cidade dos cães]
(não revisto)
Domingo, 24 de Novembro de 2013
Francisco Luís Fontinha – Alijó