Quando acordavam, o crucifixo suspenso na parede, que tinha como única finalidade, esconder as fendas que abundavam no gesso em ruínas, lacrimejava todas as palavras ouvidas durante a noite.
Esta noite devíamos ter
conversado muito, ele não pára de lançar palavras contra os tristes lençóis e
cobertores que sobre nós poisaram, lamentava-se ela enquanto ele escondia o
olhar no cortinado, velho, que mais parecia um campo de milho quando maduro,
E claro, vinha-me à memória
os campos de milho de Carvalhais, da amarela, do velhinho que contava estórias mirabolantes
sobre a primeira grande guerra, dos uivos do carro de bois e das manias que eu
tinha de andar sempre só; como as cabras em pleno monte.
Descia a noite e quando o
Branco ligava o moinho ecléctico, modernices, pois tinham um movido a água, enquanto
o cereal dançava, a lâmpada do meu quarto, o quarto do meio, começava a
cambalear, até que momentos depois, desmaiava por completo e só depois do tio
Branco desligar o dito é que voltava a ter luz para ler os poemas do Pessoa; e
quando a noite já levantava voo sobre o sino de Carvalhais é que eu começava a
escrever a um remetente inventado, pois quase nunca tive ninguém a quem
escrever, a não ser, no serviço militar, a cravar dinheiro à minha mãe. Um dia
perguntou-me quantas vezes eu era assaltado por semana, pois a razão de eu
pedir dinheiro era sempre a mesma. Mãe, fui assaltado.
Conversamos muito, disse
eu. Pois também estava de acordo com ela, à quantidade de palavras que o
crucifixo lacrimejava dava para perceber que tinham sido muitas. Ergui-me,
procurei um cigarro sobre a mesinha-de-cabeceira, e comecei a vomitar sinais de
fumo à janela com fotografia para o mar. Do segundo andar via uma réstia de
mar, a sombra de um barco e o uivo de uma gaivota, nada mais, em Carvalhais, já
noite dentro, ele escrevia em pequenos papeis que ainda hoje continuam
acorrentados aos quatro cantos de cartão, onde poisam, e quase nunca saem para
passear no jardim ou descer a calçada com acesso ao rio.
Quando ele olha em
direcção ao leito dos lençóis e cobertores poeirentos, ela já dormia novamente,
e ele, suspenso entre dois segundos, olhava-a, olhava o crucifixo que não
parava de lacrimejar as ditas palavras nocturnas do desejo e a velha espingarda
que apenas disparava às terças e quintas, durante a tarde; não ligou e esperou
que o cigarro terminasse o seu prazer, isto é, foder um gajo que acaba de
acordar. E diga-se, sou fodido por estes gajos há mais de trinta anos.
A noite estava calma. As palavras
fluíam nas rasuradas folhas que encontrei numa qualquer gaveta do avô Domingos,
naquela noite não me apetecia escrever no caderno, e os sons da noite entravam-me
quarto adentro; ouviam-se as lágrimas das sombras que eu sabia que habitavam no
campo de milho semeado junto à janela. Deixei de ouvir o avô velhote, um dia
finou-se.
Peguei na espingarda, e
percebi que ela jamais poderia acordar, depois soube que tinha ido para outro
aposento, mais limpo, onde não havia crucifixos a tapar frestas e dos papeis
escritos por mim, apenas algumas cinzas restavam junto ao cinzeiro em granito
que um grande amigo me tinha oferecido. Nunca mais fui assaltado.
O tio Serafim animava a
adega. Artista conceituado por aquelas bandas, brindava-nos com o vinho
morangueiro, confesso que nunca o bebi, porque detesto vinho, mas fazia-me
acompanhar por umas Cucas, o famoso presunto, a linguiça, e claro, o melhor pão
de milho que comi até hoje; o pão de milho da tia clementina.
O Serafim além de cantar
o fado, ser barbeiro nas horas vagas, cuidar das terras e do gado na companhia da
tia Clementina, ainda na juventude, tinha feito crer a muita gente que tinha
regressado do Brasil, sem que nunca tenha saído do Bairro Alto em Lisboa. Um verdadeiro
artista. Um homem galante, de fato, bengala e nunca deixava de se acompanhar
pelo famoso palhinhas e do respectivo sotaque.
E Carvalhais, aos poucos,
começou a ficar sem graça. Uns foram para ali, outros foram para acolá, ela
começou a ler umas coisas de AL Berto, e basicamente, todos eles mortos,
desaparecidos do combate da vida.
Às vezes, durante a
noite, oiço o velho moinho do tio Serafim, vou à janela e chegam a mim as
silenciadas sombras que brincam no campo de milho, mesmo por baixo dos meus
pés. Quanto à espingarda, também ela, morreu numa manhã de neblina…
Que assim seja.
Alijó, 10/10/2022
Francisco Luís Fontinha