Eramos muitos. Eramos loucos. Amávamos muito… hoje, somos pequenos pedacinhos de tecido suspensos nas nuvens da manhã, dos livros às cores garridas abraçadas ao branco tela, de um banco de jardim até aos longínquos passeios junto ao mar, e acabávamos sempre a noite a falar de Dostoevsky, o que provavelmente seria melhor do que falar de plantas ainda não nascidas,
A lareira erguia-se na
cozinha desarrumada e aos poucos, poemas, desenhos, começaram a alimentar as
lágrimas da mesma, ele, sorria de tanta felicidade; finalmente tudo o que saía
dele começava a fazer sentido,
Sorriam as cinzas à
janela do silêncio,
Eramos muitos,
E não sabíamos que das
grandes árvores do destino, que o acompanham desde menino, um dia
transportassem os cadáveres que hoje habitam nas manhãs de sábado, nas manhãs
de segunda-feira, nas manhãs de quinta-feira, e mesmo assim, ainda existem
algumas limalhas de aço que deixaram de responder aos apelos de uma nova vida,
Começamos então a semear
as cinzas sobejantes nas tardes junto ao mar,
Eramos muitos. Somos quase
nenhuns,
Amávamos muito… hoje,
pertencemos aos esquisitos, não alimentados pela escura noite que nos abraça em
cada pequeno silêncio, e as lâminas do desejo, hoje, são apenas lâminas do
desejo. Nos livros, encontrávamos as margens pequeninas de um rio, rio que hoje
é apenas saudade, e dos livros, sentíamos as poucas alegrias que a madrugada
nos proporcionava,
Agora mesmo,
Sentimos o corpo
desfalecer, somos instantes dentro de um túnel infinitamente louco e
apaixonado, e quanto às cinzas dos poemas, dos desenhos, dos tristes silêncios
que apenas a noite nos trazia, hoje parecem pontos de luz em busca da
eternidade,
Movimentam-se dentro de
nós,
Todas as estrelas do
universo, e de infinito em infinito, há sempre uma recta à nossa espera, está
cansada, grávida e infeliz,
O menino dos calções
cresceu, vive dentro dos livros de Dostoevsky, o menino dos calções deixou de
passear junto ao mar, porque o mar, como outros mares, morreram junto aos
rochedos da infância,
Uma lágrima solta-se do
sorriso do sol, então porque crescem as acácias neste jardim despovoado de
meninos?
E choram?
Como choram todas as
manhãs as minhas fotografias ao saberem que os poemas, os desenhos,
Cinzas.
E não sabíamos que um dia
regressaria o sono, e não sabíamos que um dia se esconderia o sol e a lua, mas
sabíamos que das cinzas dos poemas e dos desenhos… eramos muitos, eramos
loucos, e amávamos muito, e não sabíamos que de um lindo dia de Primavera nasceriam
as pedras cinzentas onde nos sentamos ao acordar.
E choram?
São cinzas, menino…
Cinzas das suas estórias,
porque acabávamos sempre a falar de Dostoevsky, como sempre, sentados num banco
de jardim, à espera de que a noite nos levasse,
E levou-os,
Hoje, somos instantes,
somos poucos à mesa, e desconhecemos se o infinito existe. Hoje já não somos os
meninos que passeavam junto ao mar, porque o mar morreu, porque o mar sou eu,
porque o mar já não é o mar,
Então, decidimos subir a
montanha,
Das cinzas, os beijos,
Nas cinzas, as lágrimas
do poeta,
Cinzas, menino, cinzas.
E mesmo assim, sabíamos
que as gaivotas, como todos nós, eram apenas instantes dentro de um cubo de
vido com fotografia para o Outono; cinzas, menino. Cinzas de crocodilo…
Até que o mar voou da pequena
alcofa levando o pequeno sorriso.
Cinzas, menino.
Cinzas de crocodilo.
Alijó, 08/10/2022
Francisco Luís Fontinha
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