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foto de: A&M ART and Photos
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Tinhas-me inventado numa noite de copos, éramos
leves como as lágrimas das tuas madrugadas, éramos finos como os
beijos atravessados pelos teus lábios e fundeados na tua garganta, e
éramos de aço que corríamos sobre os andaimes que vomitavam a
cidade em pedaços de granito, éramos loucos e loucas, e tínhamos
dentro de nós o jardim da saudade, tinhas-me inventado como
inventaste tantos outros bonecos de palha, como tantas outras flores
em papel crepe, coladas numa cepa envelhecida e envernizada,
ofereci-te o meu primeiro ramo de flores, ainda em criança, e
diziam-nos que os morcegos roubavam-nos os sonhos, que os morcegos
roubavam-nos os suspensórios onde prendia-mos as poucas palavras que
sabíamos pronunciar, e vagamente adormecíamos sobre a bandeja da
empregada do bar,
Matilde... olhava-nos e tinha dó, pela nossa
tristeza, pelo nosso desespero... pela nossa infinita solidão como
os cordões brancos das malditas botas da tropa, que aos poucos se
afundavam dentro do Tejo e os velhos Cacilheiros dormiam envenenados
pelas Ratazanas de duas patas, de tão grande porte... que quando
aparecia o vento, quase sempre estas ficavam em terra, pesadas, os
pés recheados de pequenas bolhas, era Verão, era Verão e tinhas-me
inventado depois de um pequena brincadeira de adolescentes,
prometeste-me o Céu, e eu, eu nada te prometi, um grande sovina,
sempre de algibeira vazia, sempre depenado, após uma noite de
jogarmos ao montinho
Azar ao jogo, sorte...
Maldita,
Tinhas-me inventado numa noite de tempestade,
jogávamos ao montinho, bebíamos Moscatel de Alijó, estávamos em
mil novecentos e oitenta e oito, Julho, quase, quase a
despedirmos-nos das Ratazanas, desta vez, as de quatro patas, era
noite, e tu dançavas sobre um lençol branco suspenso numa parede
triste, desprovida de qualquer cor, chamávamos-lhe a parede dos
sonhos, nas traseiras do triste lençol ardia um prato com chouriço
embebido em aguardente, o cheiro intenso espalhava-se pela janela e
poisava nas sombras adormecidas da vida, havia uma ruela estreita,
onde a empregada da esplanada, a querida Matilde aparecia em altos
voos, descia, tão vagarosamente... que quando chegava até nós...
Olha... adormeceram,
Cansados,
Embriagados do intenso cheiro das Ratazanas,
E a cidade crescia como uma seara na longínqua
Carvalhais, um parvalhão questionava-me
Ouve lá pá, onde fica Carvalhais?
Timidamente... perto de Viseu,
(puta que te pariu)
Claro que Carvalhais pertence a S. Pedro do Sul,
claro que Alijó é Alijó e tinha de me explicar mil vezes que Alijó
Fica em Vila Real,
Trás-os-Montes?
Sim, (cabrão), sim, sim em Trás-os-Montes,
Sacana,
Eu, eu sacana?
Sim, sim você seu grande cabrão...
Tinhas-me inventado numa noite de copos, éramos
leves como as lágrimas das tuas madrugadas, éramos finos como os
beijos atravessados pelos teus lábios e fundeados na tua garganta, e
éramos de aço que corríamos sobre os andaimes que vomitavam a
cidade em pedaços de granito, comíamos comboios ao pequeno-almoço
e espingardas ao almoço, éramos todos tímidos, e todos fumávamos
charros nas vagas horas, depois
Tombavam na formatura como toupeiras,
Matilde aparecia, abraçava-me, dilacerava-se nos
meus cabelos inexistentes, dava-me um beijo, e desaparecia como tinha
aparecido, sempre pelo buraco da chaminé,
E chorei,
Quando tudo ardeu semanas depois de eu regressar,
arderam as minhas memórias, arderam os meus passos pesadíssimos com
cordões brancos, arderam as livrarias onde comprava os meus livros,
e ardeu também a querida Matilde, depois ainda a vi em sonho,
vestida de cinza passeando em frente ao Tejo e em pequenas
despedidas,
E adeus querido Chiado, e adeus, adeus minha querida
Matilde...
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 26 de Agosto de 2013