terça-feira, 27 de agosto de 2013

ténue nua luz

foto de: A&M ART and Photos

dois pontos de ténue nua luz
esperando pela abertura da triste janela
dois corpos vestidos de onda
caminhando nas tuas costas de porcelana
voando sobre a doce cama
onde se escondem os homens de palha com palavras inaudíveis
fracas
terríveis

dois pontos teus hoje na roda da fortuna
rodando como milagres indefinidos no altar das Marias adormecidas
vaiadas
cansadas
correndo ruas despidas
descendo e subindo calçadas
como tu
como eu

à sombra
dois pontos de ténue nua luz
comendo sílabas enlatadas
e bebendo
chá de ervas enraivecidas
sumarentas
na caverna da Dona Joaninha...
e uma ferradura pendurada à porta

e um velho letreiro recordando
barbas e cabelo
barbeiro
oficina de beleza
pintor de jóias roubadas...
barbeiro feiticeiro
barbeiro literário... poeta
dois... dois pontos de ténue nua luz


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 27 de Agosto de2013

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

E a cidade crescia como uma seara na longínqua Carvalhais

foto de: A&M ART and Photos

Tinhas-me inventado numa noite de copos, éramos leves como as lágrimas das tuas madrugadas, éramos finos como os beijos atravessados pelos teus lábios e fundeados na tua garganta, e éramos de aço que corríamos sobre os andaimes que vomitavam a cidade em pedaços de granito, éramos loucos e loucas, e tínhamos dentro de nós o jardim da saudade, tinhas-me inventado como inventaste tantos outros bonecos de palha, como tantas outras flores em papel crepe, coladas numa cepa envelhecida e envernizada, ofereci-te o meu primeiro ramo de flores, ainda em criança, e diziam-nos que os morcegos roubavam-nos os sonhos, que os morcegos roubavam-nos os suspensórios onde prendia-mos as poucas palavras que sabíamos pronunciar, e vagamente adormecíamos sobre a bandeja da empregada do bar,
Matilde... olhava-nos e tinha dó, pela nossa tristeza, pelo nosso desespero... pela nossa infinita solidão como os cordões brancos das malditas botas da tropa, que aos poucos se afundavam dentro do Tejo e os velhos Cacilheiros dormiam envenenados pelas Ratazanas de duas patas, de tão grande porte... que quando aparecia o vento, quase sempre estas ficavam em terra, pesadas, os pés recheados de pequenas bolhas, era Verão, era Verão e tinhas-me inventado depois de um pequena brincadeira de adolescentes, prometeste-me o Céu, e eu, eu nada te prometi, um grande sovina, sempre de algibeira vazia, sempre depenado, após uma noite de jogarmos ao montinho
Azar ao jogo, sorte...
Maldita,
Tinhas-me inventado numa noite de tempestade, jogávamos ao montinho, bebíamos Moscatel de Alijó, estávamos em mil novecentos e oitenta e oito, Julho, quase, quase a despedirmos-nos das Ratazanas, desta vez, as de quatro patas, era noite, e tu dançavas sobre um lençol branco suspenso numa parede triste, desprovida de qualquer cor, chamávamos-lhe a parede dos sonhos, nas traseiras do triste lençol ardia um prato com chouriço embebido em aguardente, o cheiro intenso espalhava-se pela janela e poisava nas sombras adormecidas da vida, havia uma ruela estreita, onde a empregada da esplanada, a querida Matilde aparecia em altos voos, descia, tão vagarosamente... que quando chegava até nós...
Olha... adormeceram,
Cansados,
Embriagados do intenso cheiro das Ratazanas,
E a cidade crescia como uma seara na longínqua Carvalhais, um parvalhão questionava-me
Ouve lá pá, onde fica Carvalhais?
Timidamente... perto de Viseu,
(puta que te pariu)
Claro que Carvalhais pertence a S. Pedro do Sul, claro que Alijó é Alijó e tinha de me explicar mil vezes que Alijó
Fica em Vila Real,
Trás-os-Montes?
Sim, (cabrão), sim, sim em Trás-os-Montes,
Sacana,
Eu, eu sacana?
Sim, sim você seu grande cabrão...
Tinhas-me inventado numa noite de copos, éramos leves como as lágrimas das tuas madrugadas, éramos finos como os beijos atravessados pelos teus lábios e fundeados na tua garganta, e éramos de aço que corríamos sobre os andaimes que vomitavam a cidade em pedaços de granito, comíamos comboios ao pequeno-almoço e espingardas ao almoço, éramos todos tímidos, e todos fumávamos charros nas vagas horas, depois
Tombavam na formatura como toupeiras,
Matilde aparecia, abraçava-me, dilacerava-se nos meus cabelos inexistentes, dava-me um beijo, e desaparecia como tinha aparecido, sempre pelo buraco da chaminé,
E chorei,
Quando tudo ardeu semanas depois de eu regressar, arderam as minhas memórias, arderam os meus passos pesadíssimos com cordões brancos, arderam as livrarias onde comprava os meus livros, e ardeu também a querida Matilde, depois ainda a vi em sonho, vestida de cinza passeando em frente ao Tejo e em pequenas despedidas,
E adeus querido Chiado, e adeus, adeus minha querida Matilde...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 26 de Agosto de 2013

Blogue Cachimbo de Água – Em destaque no Sapo Angola

casa imaginária

foto de: A&M ART and Photos

encerraram-se as torneiras da saudade
como se evaporaram os cortinados do desejo
num ápice
entre nuvens e corações de pétalas encarnadas
fiquei sem o jardim da felicidade
e apenas um banco onde me sento
e observo a triste paisagem
nua
escura
sombria
como um calendário esquecido no tabique adormecido
da casa imaginária onde apareceste pela primeira vez


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 26 de Agosto de 2013

domingo, 25 de agosto de 2013

não te pertenço

foto de: A&M ART and Photos

hoje és um mendigo igual a mim
uma pérfida folha de papel não correspondida
hoje és um cadáver envergonhado deitado na minha sombra
uma triste e cansada sombra debaixo dos lábios do púbis incenso
hoje és um sexo amargurado
triste como as sílabas empapadas dos livros de nada dizer
como as noites a arder
dentro de ti o comestível prazer

hoje finges que não te pertenço
que sou um muro em xisto
balançando sobre a encosta
atiro-me e encontro o rio
hoje és um mendigo igual a mim
fugindo da claridade
e dos beijos zangados em cinzentos fios de sémen...
e dizes-me que sou um palhaço

um voador corpo com asas em papel
hoje desperdicei os abraços sobre a lua em fúria
que deus deixou na mão da madrugada
hoje não sou nada
como ontem
como amanhã
hoje és...
apenas uma defeituosa maré de linho com coloridos olhos em verniz...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 25 de Agosto de 2013

Nunca mais o branco fumo dele nos meus lábios

foto de: A&M ART and Photos

Porquê?
Os navios em fúria de apitos, amontoavam-se à porta de casa, lá dentro, eu e ele, tentávamos esconder as amarras dentro da gaveta da cómoda, eles cá fora, gritavam
Porquê?
Marinheiros famintos, procuravam qualquer objecto que servisse para derrubar a frágil porta, escondemos-nos junto ao corredor que dava acesso à casa de banho, o peitoril fumegava, alguém já nos tinha lançado algo de combustível, algo de destruidor, abracei-me a ele, e com toda a minha força
Porquê?
Fiquei não sei quantas noites pensando que nunca mais terminaria a sangrenta guerra de palavras da cidade dos desejos, multipliquei abraços, dividi beijos, e hoje
Porquê?
Hoje pareço um íngreme cavalo de areia correndo sobre o mar,
E com toda a minha força apertei-o como quem aperta o único filho, e pela madrugada, não sei qual delas, ele partiu, consegui desembaraçar-se dos meus abraços, e
Nunca mais o branco fumo dele nos meus lábios,
Nunca mais
Porquê?
O silêncio pergaminho das suas mãos no meu rosto,
Nunca mais a voz desajeitada dele no espelho da casa de banho, irritava-me
Vens jantar logo, meu querido?
Irritava-me
Três torradas chegam, meu querido?
Assim não, assim sentia dentro de mim uma escada rolante em direcção ao poço profundo da tristeza, irritava-me
Querido
Sim, diz?
Querido, logo chegas cedo a casa?
E apetecia-me gritar, não regressar, nunca, irritava-me
Sim, diz?
Que coisa... a tua...
Os navios em fúria de apitos, amontoavam-se à porta de casa, lá dentro, eu e ele, tentávamos esconder as amarras dentro da gaveta da cómoda, eles cá fora, gritavam
Porquê?
Eles cá fora pareciam um exército de mendigos, procuram-nos como quem procura o vento antes de levantar âncora, o veleiro poisava-se sobre um banco de areia, rodopiava em pequenos círculos... e dali não zarpava nunca,
Porquê?
Os marinheiros famintos, o azedume dos versos que o poeta louco tinha deixado sobre a mesa-de-cabeceira no quarto da amante voavam porque o vento que antes se fazia sentir no corredor começou aos poucos a avançar em direcção ao quarto, a amante tinha desaparecido, ele e o amante, também desaparecidos, apenas os famintos marinheiros enrolados em poemas de “merda” que o louco poeta ante de suicidar-se tinha esquecido, tal como a janela aberta
Porquê? Esta chuva de papeis com pequenas palavras...
Os marinheiros
Porquê?
O poeta louco
Onde está ele?
A amante do poeta louco
Irritava-se com as palavras do seu amado, algo de destruidor, abracei-me a ele, e com toda a minha força
Porquê?
Porque hoje é Domingo, porque hoje há quitetas e cerveja Cuca...
Porquê?
Porque uivam os navios quando estão em sossego?


(não revisto – ficção)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 25 de Agosto de 2013

(e o negro que alimenta a noite de ti)

foto de: A&M ART and Photos

Tinhas-me prometido o sono
o sossego
e o negro
que alimenta a noite de ti,

tinhas-me prometido o silêncio
e as pequenas árvores do bosque
perto
antes do amanhecer acordar e levar-te,

Tinhas-me a mim
e trocaste-me por um velho espelho recheado de ranhuras...
tinhas-me prometido o desejo
e apenas cacos e pedaços de beijos sobejaram sobre a mesa da sala,

tinhas-me e nada de ti era a verdade
nunca tivemos manhã
nunca existiu em nós alegres madrugadas...
tinhas-me e deixaste-me fugir pela fechadura do medo,

tinhas-me prometido o prometido
as palavras que escrevo
que tenho medo de escrever e
as palavras vorazes como um rio em ti perdido,

tinhas
tinhas-me prometido o sono
o sossego
o desejo,

(e o negro
que alimenta a noite de ti)

tinhas-me prometido o fogo
e todas as lareiras de todas as bibliotecas das casas abandonadas
tinhas-me
e deixaste-me suspenso no tecto da insónia...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 25 de Agosto de 2013