domingo, 15 de março de 2015


A guerra,
Perdemos tudo, o meu pai morto em combate,
Amor de mãe,
Pai,
Não o conheci, apenas algumas fotografias de espingarda na mão, António sabia que seria a sua última noite, e mesmo assim, escreveu o seu último poema,
Dedicado a “Deus”,
Um Ateu, Pai?
Perdemos tudo, a fala, as palavras e os abraços do cacimbo, os cacilheiros em cio redopiando como cobras amestradas, o circo, a aldeia colorida de sapatos e sandálias de couro, os calções e o triciclo, ele
Dedicado a “Deus”,
Não guardo rancor, o ditador morto, felizmente cessaram as espingardas do ciume, vagamente oiço o teu respirar, ele
Pai,
Não o conheci, e ele embrulhado em quatro pedras de espuma, o cachimbo da solidão, partilhávamos todas as carícias do abismo, e ele
Louco,
Apaixonado.



(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 15 de Março de 2015

farrapos de vidro...


o engate suspenso nos anzóis da tarde
à mão
regressa a caneta da solidão
e há nuvens de papel nos olhos do poema
és livre
de voar
sobre os corações de xisto
que habitam as imagens a preto e branco
do Douro
navegar
subir ao luar
e,

e abraçar-se aos vulcões de areia
dos homens
e das mulheres
de sombra,

imaginar
desenhar nas entranhas pálpebras de amar
o silêncio do beijo
à janela
o mar avança e nos leva
somos dois
talvez...
três
o engate
à mão
suspenso nos anzóis da tarde
a tarde... a tarde dos farrapos de vidro...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 15 de Março de 2015

Árvore


Árvore
que cai no lamacento pavimento do sorriso
se deita
e fica
imóvel
tranquila
na árvore
a conquista não conquistada
o fervoroso sono da alquimia
o centro
o ponto imaginado pela mão do regresso
e fica

árvore
caída na circunferência do amor
e a paixão
imóvel
corre
corre...
porque a terra é um poço invisível
porque há nas palavras pequenos silêncios
a humidade
dos corpos
no chão
o cheiro

que parte
e não volta
o teu perfume secreto
nas pálpebras da manhã
e fica
árvore
sofrida
perdida nas pedras da calçada
desce e sobe
e senta-se...
no chão
dos narcisos em putrefacto esqueleto da escuridão nocturna...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 15 de Março de 2015
“Fodes comigo ou não...” o poeta para o poema, embrulhado nas sílabas da ira, o medo, a fome construída em cartão, um sonho de luz abrigado nos teus olhos, e ele
Pai, o que é “foder”?
E ele, pincelado de mendigo
Filho,
Sim, pai,
As palavras...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 15 de Março de 2015

sábado, 14 de março de 2015

África


África inventada nas minhas veias
um rio infinito de cheiros
sensações
sentidas lágrimas esquecidas numa qualquer sombra
o capim em silêncio
o musseque dorme nos braços do luar
gritam as almas dos muros invisíveis
como uísque voando sobre a planície dos sonhos
as gaivotas escritas nos livros da saudade
as cavernas secretas da paixão das pedras
em destaque
o orgasmo embriagado na penumbra madrugada
ouvem-se as migalhas do sofrimento
caindo no zinco empobrecido
que só os homens sabem construir...
as palavras de uma espingarda disparada pelo poeta
corações de chocolate em decadência
como princesas sem nome
sem Pátria...
os barcos comestíveis
nas mãos de uma criança
e sem o perceber
ela
África
um rio infinito de cheiros
sons
e beijos em lábios de serpente.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 14 de Março de 2015

Livros em viagem


O suicídio embrulhou-o na almofada do sono
como quem semeia numa fogueira
palavras
e desenhos
e corpos
e beijos
o desejo
meu amor
a saudade dos tentáculos teus braços
quando olhávamos petroleiros brincando no Tejo
o vento
levava o teu cabelo até à outra margem...
alguns minutos
poisava na minha mão
estrelas
os teus olhos
Belém fervilhava
como um campo de centeio
nos corredores da cidade
os livros em viagem
atravessavam a ponte
sem autorização
sós
o café
e a água
a esplanada em cio
quando ouvia o uivar de uma gaivota
em todos os finais de tarde
sós
o café
e a água
estrelas
nos teus olhos de rosa embalsamada
o jardim nos esperava
e abraçava
com corrente de aço pinceladas de silêncio...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 14 de Março de 2015

sexta-feira, 13 de março de 2015

Nascia, afogava-se nos soluços da madrugada, lá fora, as palmeira da Baía, os barcos abraçados às cancelas da solidão,
Pai?
Filho?
Solidão, nascia, em cada minuto de esperança as cinco cintilações da estátua de sombra, o sal, o pôr-do-sol perdido na claridade inventada por Miguel
Narcisos enganchados no desassossego, literalmente
Filho?
E Miguel imaginava barcos na parede do quarto, alguns risco, palavras desconexas, mortas, assassinadas pela loucura,
Filho?
Solidão, pai...
O que é?
Pois, filho, olha um vez li um texto onde uma mulher era amada por três poetas e um pintor, o pintor esquecia-se da flor, e a tela sempre vazia, branca, dia
Solidão, pai...
Dia da Poesia Nacional, 14 de Janeiro, homenagem a AL Berto e aos seus sonhos,
(Telegrama)
Odeia-me, eu sei pai,
Mas... a solidão, a morte, o camuflado desejo de Morrer
Miguel?
Sim, pai... quero,
O dia mais “fodido” da minha vida,
à tua morte... e das abelhas decalcadas no xisto, a pele da beleza...



(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 13 de Março de 2015

Bilhete na alvorada


No trajecto da insónia
um ponto embrulhado nas coordenadas do silêncio
percebe-se pelo movimento lento
que a parábola incendeia o pequeno quadrado
lá dentro o medo
viver ele
enquanto desenho na ardósia tarde
o significado das imagens nocturnas do prazer
o corpo é um pesadelo sem porto onde aportar
viver ele
no mar
e cansa-se do rasurado veneno que o vento semeou

a carta regressa
endereço insuficiente
ausente
talvez morto
talvez contente...
no mar
o luar pincelado de andorinhas marés
e ele
sempre ele
viver ele
e cansa-se
não o devia fazer

fugir
sem...
sem deixar um bilhete sobre a secretária
ou
ou apenas um traço no espelho embaciado da casa de banho
eu percebia
ausentou-se
foi-se
nunca mais voltará aos livros...
nunca mais acordarão as vozes das sílabas embriagadas
nos sonhos
da alvorada.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 13 de Março de 2015

quinta-feira, 12 de março de 2015

Não sei, António, não sei
Regressar, porquê?
Hoje acordei cedo, Margarida embrulhada nos lençóis do Pôr-do-Sol, e lá longe
Cintilações dos minguados beijos nos teus lábios, os seios de cera desenhados nas eternas mesas-de-cabeceira
Louco, ele?
E lá longe, murmúrios e incorrigíveis uísques brincando dentro de um livro, Margarida
Amor?
Amar...
Os homens tinham regressado da faina, olhava-me um barco, tive medo, confesso,
Eu confesso
Tu confessas
Ele confessa,
E confesso que fiquei perplexo, tão triste, tão triste como as flores de Inverno,
A faina, peixe... nenhum, nada, nada ao quadrado vezes seis a raiz quadrada de mil noventos e sessenta e seis, o pequeno-almoço, as torradas,
Para niguém, devolvida
Endereço desconhecido,
Ele confessa,
Um galão, escuro,
António?
Sim, amor,
Hoje,
Hoje o quê, meu amor?
Hoje não vou escrever palavras de chocolate...



(ficção)
Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 12 de Março de 2015

os livros


ausento-me deliberadamente das sombras envergonhadas
que habitam os socalcos da saudade
sou um ninho de cacos
e pequenas películas de silêncio
pela madrugada
oiço a tua voz aprisionada nas frestas deste cubículo
há entre nós um espelho cansado
e triste
ausento-me dos teus lábios
e perco-me nas palavras sem nome
como as ruas da tua cidade
ou da tua aldeia

o musseque
fervilha
transpira poesia
e o teu cabelo suspenso numa fotografia
tão distante
o mar
e as marés de sono
que me embrulhavam
hoje
não mar
não sono
nada

amar
amar
amar as flores e os desenhos embalsamados
correr montanha abaixo
deitar-me sobre ti
apenas
o peso das nuvens pinceladas de alfazema
a aceleração
acorrentada a uma equação
a física
a matemática
e... e amar

nada
os separa
os fios de sémen perdidos no cacimbo
o cachimbo em brasa
lúcido
de braços abertos
e abraça-me
e beija-me
como se beijam todos os livros
folheados
e no entanto
ausento-me deliberadamente das sombras envergonhadas...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 12 de Março de 2015