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foto: A&M ART and Photos
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Sento-me nesta cadeira de gente, só, pego nas
palavras e semeio-as sobre uma fina toalha de linho, sentado, percebo
que sou um ignorante diplomado, sinto que lá fora, no meu jardim, há
pássaros novos, vê-se pela penugem, parecem ainda bebés, depreendo
que nasceram aqui, e aqui vão crescer, até se fazerem homens,
mulheres, e zás... desamarrarem-se do cais seus pais e nunca mais
regressarão, ou talvez um dia, quem sabe... regressem, visitem as
minhas já então velhas árvores, possivelmente, a figueira, deixara
de existir, possivelmente, o pessegueiro recheado de atrozes,
possivelmente, a cerejeira, essa, de coluna vertebral inclinada a
quarenta e cinco graus, e nada, ou quase nada, que, eu, possa fazer
para mudar o curso normal das coisas, estas, banais, e tudo, porque
estou sentado numa cadeira de gente, só, pego nas palavras e
semeio-as sobre uma fina toalha de linho, sentado, oiço-te quando
gritavas o meu nome do outro lado da rua, havia casas rasteiras entre
nós, um dia quis fazer de uma velha televisão um aquário para
peixes, abri-a, e queria abrir o velho embaciado ecrã do televisor
munido de válvulas e outros apetrechos, ligava-se e a imagem
aparecia segundos, minutos, depois, como das palavras do outro digno
Senhor “Precisa de aquecer as bobines e parece um poço a deitar
música”, neste caso, imagens, a preto-e-branco, além de parecer
uma bomba, fiquei com o rosto golpeado, tudo, porque o dito explodiu,
transformou-se em areia, finíssima, como a tua pele doirada depois
de bronzeada pelos dóceis dedos pertencentes à minha mão,
Que parvalhão acreditaria na possibilidade de fazer
um aquário do ecrã de um velho televisor?
Eu, sento-me nesta cadeira de gente, vejo-te entre a
roldana do tempo e a corda das cinzentas nuvens de fim de tarde,
oiço-te do outro lado da rua, das casas rasteiras, vozes, rádios
vomitando músicas, e músicas inventando imagens na minha ainda
cabeça de criança. Cerro os olhos, entro num longo túnel com
muitas cadeiras iguais às que hoje me sento, cadeiras de gente, só,
eu, pego nas palavras e levo-as comigo, sozinho, dentro do túnel com
uma das mãos enfiada na algibeira, porque perder as sementes de
palavras, certamente, o meu fim, assim, ainda me resta a esperança
de sobreviver às magoadas paixões de silício, semicondutores,
dentro de mim, aumentam-nos a velocidade, a aceleração multiplicada
pela minha massa, sinto-me sentado, mas realmente há muito que não
durmo, não como, apenas existo para guardar a algibeira das
palavras, e consigo ver a força expressa no espelho
(Nunca duvidei que F=m * a)
E é tão feia, velha, serão assim no futuro as
minhas árvores onde acabaram de nascer este belos pássaros?
Oiço-os, existe um melódico som como quando, às
vezes, oiço pela trigésima sétima vez elevada ao cubo, o projecto
Wordsong (AL Berto), e eu, sempre dentro do túnel, e eu, sempre de
mão na algibeira, posso perder tudo do pouco que me resta, mas
perder estas poucas sementes de palavras, minhas, inventadas para ti,
E pergunto-me?
Falo em ti e nem sei quem porra tu és...
És homem? És mulher? És pássaro, vento,
madrugada, esplanada, beijo, púbis, coxas? Não... possivelmente não
és nada,
E pergunto-me?
Falo em ti e nem sei quem porra tu és...
Sento-me nesta cadeira, de gente, só, embriagado
pelo silêncio dos Deuses adormecidos, pego na mão, abro-a, começo,
vagarosamente a semear as poucas palavras que me restaram sobre a
fértil secretária de madeira, oiço o soluçar do teu corpo, e
sinto-te, tu, do outro lado da rua, as casas rasteiras, tu, brincas
com uma roldana, és a responsável pelo andamentos dos relógios de
pulso, ou daqueles como o meu, suspenso na parede da sala, e de
quinze em quinze minutos...
Horrível, o horror de saber que existes, do outro
lado da rua, as casas rasteiras, e não sei quem és, como o serás
nua, se és homem, se és mulher, se és pássaro, vómito, canção,
poema, desenho ou apenas alguém a brincar numa roldana,
Sento-me nesta cadeira de gente, só, pego nas
palavras e semeio-as sobre uma fina toalha de linho, sentado, percebo
que sou um ignorante diplomado, sinto que lá fora, no meu jardim, há
pássaros novos, vê-se pela penugem, parecem ainda bebés, depreendo
que nasceram aqui, e aqui vão crescer, até se fazerem homens,
mulheres, e zás... desamarrarem-se do cais seus pais e nunca mais
regressarão, ou talvez um dia, quem sabe... regresses para olhares
pela primeira vez a minha sementeira de palavras.
(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha