foto: A&M ART and Photos
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Sob o cinzento céu passeavam-se as gaivotas com
pequenas pinceladas de neblina que os barcos a vapor semeavam nas
ruas da cidade, havia algumas árvores, tristes árvores, havia uma
mulher com os braços cruzados que sonhava com o mar e com o vento
que transporta as gaivotas, as gaivotas que poisam sobre as árvores
prateadas, quando todas as luzes se apagam como quando os espelhos
cessam de projectar imagens, lágrimas que caiem da mesa-de-cabeceira
e rolam sobre as tábuas indolores do soalho, alguma parte dele,
apodrecida, outra, voando como as gaivotas, sob o cinzento céu de
Abril, e outra
doente
E da terra inclinada, projectam-se contra o tronco
débil das pequenas árvores, rochas e objectos de pequeno porte, os
vidros das janelas que ajudam a proteger do silêncio as pequenas
árvores, partem-se, estilhaçam-se e derramam-se como líquidos
vaidosos sobre a neblina porcelana dos vestidos das bonecas das
meninas que brincam debaixo das oliveiras, pequenos torrões de
açúcar aguardam pela sinfonia melódica das cantigas endiabradas
que aos poucos se vão ouvindo do pátio da escola primária, um
rapaz de calções
doente, com pequenas pedras da calçada, parte os
vidros da escola, joga ao espeto com um ferro pesado e aguçado, um
dia quase que ficou com o pé esquerdo prisioneiro no recreio da
escola, furou-lhe a bota e só abrandou quando quase atingiu o centro
da terra, aí, percebeu a razão de não caírem as árvores, os
edifícios das cidades, que em casos especiais, quase chegam ao céu,
e tudo à sua volta
Estranho, os calções baloiçavam entre duas cordas
de nylon, um travessão de madeira servia-lhe de assento, e depois de
um ponto final, um novo paragrafo e perdoar-lhe
amar-te-ei?
E o cinzento céu a misturar-se com o solitário
vapor dos barcos de cartolina, e porque as gaivotas de papel com
pequenas pinceladas de neblina não sentem o cheiro da nafta horrenda
que se ouvia nos portos de embarque, o miúdo de calções, quase em
pequenos vómitos, subiu as escadas do paquete abandonado, enorme,
com tantas janelas que quando tentou contá-las, desistiu, porque
eram muitas, porque ainda não sabia contar,
porque o cheiro envenenado da nafta parecia
madrugadas em bolor no tronco das pequenas árvores da menina com os
braços cruzados,
Amar-me-ás?
Porque o cheiro envenenado
Amar-me-ás? Perdoar-lhe como os marinheiros perdoam
às marés o sombreado dos cais e dos soníferos para a constipação
e dores de cabeça, e a diarreia, e para todas as desilusões do amor
depois de adormecer a tempestade, depois de adormeceres, deitares a
cabeça sobre uma almofada de xisto, e sonhares que
se amanhã fosse Sábado... pegava no vapor e
zarpava... abria a janela, borda fora com o diário de bordo, passava
pelas pequenas árvores onde uma mulher com os braços cruzados
brinca com as meninas das bonecas vestidas com a porcelana fina, e
depois
De chegar à cidade, percorrer todas as ruas como as
procissões de aldeia, fazia-me à literatura, imaginava imagens em
espelhos de guarda-fato que deixei numa pequena casa em Vila de
Migalhas, construía personagens do tamanhos das pequenas árvores,
com corações sofridos, com braços cansados, com pernas distantes
das temperaturas íngremes que os velhos termómetros de mercúrio
desenhavam nas ardósias da contemplação de uma fotografia em plena
Primavera,
doente
Amar-me-ás?
amar-te-ei?
E a bailarina, enquanto não descruzar os braços e
folhear o livros dos sonhos, não poderá nunca responder
Amar-me-ás?
Não sei, ainda não sei...
e eu
amar-te-ei?
Só depois do cinzento céu se alicerçar nas
pequenas árvores, e eu, tu, elas, e elas, deixarem de brincar,
despirem a fina porcelana e inventarem novas imagens nas ruas da
cidade encharcadas com o velho vapor do barco de cartolina
e eu, um rapaz de calções
doente, com pequenas pedras da calçada, parte os
vidros da escola, joga ao espeto com um ferro pesado e aguçado, um
dia quase que ficou com o pé esquerdo prisioneiro no recreio da
escola, furou-lhe a bota e só abrandou quando quase atingiu o centro
da terra, aí, percebeu a razão de não caírem as árvores, os
edifícios das cidades, que em casos especiais, quase chegam ao céu,
e tudo à sua volta,
Depois de subirem as escadas, tocam suavemente o
céu.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha