quinta-feira, 11 de abril de 2013

O Morcego de Prata

foto: A&M ART and Photos

Disseram-me se subisse a montanha eu ganhava o sono eterno, o morcego de prata que alimenta as noites de luar e estrelas em queda, anjos de gravata às gargalhadas pela plateia dos sonhos, onde estão sentados
(meninas, meninos, senhoras, homens e donzelas de extrema beleza, também tenho de reconhecer que perdi a paciência quando me dizem – Sistema fora de serviço, obrigado, seremos breves – e as meninas e os meninos e as senhoras e os homens e as donzelas prateadas, sentados, sentadas, numa cadeira de praia à espera que o palco da vida regresse das planícies de madeira coloridas com carpetes de veludo, vermelho, verde e cinzento, como os dias e as noites, depois de partirem as embarcações com velas bordadas por tais donzelas, ou são belas, ou... velas de estearina no altar da pureza e da digna virgindade do palhaço com três pernas e quatro braços, em pura madeira virgem, como a lã das camisolas com formato de cubo sem portas, ou janelas, salgadeira que hoje não se utiliza, que hoje nem para guardar o farinha de milho serve, a dita caixa de madeira, depois tínhamos um forno no quintal onde cozíamos o saboroso pão de milho, e hoje, todos e todas, morreram como morreram as amêndoas em flor)
Os palhaços, onde estão sentadas enxadas com unhas de gel e a depilação a laser, mais à frente, o engraçado do engaço ou ancinho ou pente para pentear as ervas ornamentais dos segredos depois de ultrapassarmos o muro, um buraco, tantos buracos sem gente, vazios, gira a cabeça, rodopia na cadeira, e enterra os cornos no estrume que alimenta as plantinhas e os anzóis comestíveis das galinhas de perdão perplexo, sinto frio quando converso com as janelas do insignificante desumidificador, e mesmo assim ainda há quem me queria convencer que tudo à minha volta não é verdadeiro, dizem-me – É apenas um visão – finjo que acredito, digo que sim, com o fiz quando queriam que eu subisse para cima do palco e metesse a minha mão dentro da boca de um tigre – Era o metias – não o posso fazer e perguntam-me – Porquê? - por nada... apenas porque sou alérgico ao pêlo do tigre, nada mais, e apenas isso,
(em pequenos quadrados cerâmicos o meu corpo alicerça-se e cresce em direcção à montanha)
“Disseram-me se subisse a montanha eu ganhava o sono eterno, o morcego de prata que alimenta as noites de luar e estrelas em queda, anjos de gravata às gargalhadas pela plateia dos sonhos, onde estão sentados”
(e depois voou sem saber que havia nevoeiro e pouca ou nenhuma visibilidade, desapareceu dos radares, e hoje perguntamos o que terá acontecido ao morcego prateado, que alimentava as noites e os dias, as horas e os minutos, e apenas do interior do clarão da Cinderela apaixonada pelo ilustre visitante da Ilha dos rochedos, nunca mais, nem a enxada com as suas unhas de gel, nem o engaço ou ancinho ou pente para pentear as ervas ornamentais dos segredos depois de ultrapassarmos o muro, um buraco, tantos buracos sem gente, vazios, gira a cabeça, rodopia na cadeira, e enterra os cornos no estrume que alimenta as plantinhas e os anzóis comestíveis das galinhas de perdão perplexo, sinto frio quando converso com as janelas do insignificante desumidificador, e mesmo assim ainda há quem me queria convencer que tudo à minha volta não é verdadeiro, dizem-me – É apenas um visão – finjo que acredito, foram vistos e avistados por estas paragens)
O burro puxa ordeiramente a carroça da miséria, elas, a carroça e a miséria, correm apressadamente quando são perseguidas pelas autoridades fiscalizadoras, a carroça não cumpre as normas Europeias de segurança Rodoviária e a Miséria é inconstitucional, ou não
(despeço-me com amizade, fraternidade e sinceridade, de quem ainda acredita na paciência humana, mas às vezes, como o leito dos rios, é ultrapassado o limite, e a água vai onde não deveria ir...)
E a paciência escorre calçada abaixo, ouvem-se os gritos dos vidros acabados de partir..., e mesmo assim, o grandioso espectáculo não é interrompido, os palhaços sobre uma bicicleta de arame voam sobre as cabeças ocas das sandália que também elas, como as unhas de gel, saltitam entre gargalhadas e sorrisos, o apresentador queixa-se-me que não me compreende, que não percebe o que escrevo, que não escrevo, queixa-se-me como se eu me importasse com a sua opinião, sua, dele, o apresentador do maior espectáculo do Mundo – O Circo? - nem mais, meu filho, do Circo...,
(vou-me embora)
E quando acordo, sinto um casal de pulgas amestradas em cima do meu ombro; foi a noite mais feliz da minha curta vida.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Palavras Mortas

foto: A&M ART and Photos

Há na tua pele o desejo da chuva
até às ondas que o vento chora
há em ti um coração em sofrimento
porque no mar vive a madrugada molhada
há na tua pele o silêncio
e a plenitude corpuscular que o amor semeia nas ardósias em migalhas,

Há nos livros do prazer
palavras mortas
cansadas
obviamente destinadas a envelhecerem
nas tuas mãos acorrentadas ao destino cansaço
e há sem o saberes as flores em esqueletos putrificados,

Há momentos de tristeza
suspensos em cortinados que a manhã abandonou nos caminhos de ninguém
há coisas que parecem belas
e não o são
porque elas
essas mesmas coisas não são mais do que as sombras empoleiradas nas árvores de ontem...

Impavidamente sinto-os e sei que dormem dentro do teu corpo
nu e deitado no cadeirão de milho
com barbatanas de chocolate
há na tua pele o esplendor do abraço
sabendo eu que amanhã nascerá um novo amor
sobre os teus ombros amordaçados.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Domingo se verá se o comboio...

foto: A&M ART and Photos

Subo a calçada em direcção ao cais dos alicerces desgovernados, casas desesperadas, entre lágrimas e madrugadas, uma porta de madeira, antiga, com um ferradura imprimida pela sombra da mão do Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, doutorado em literatura e vinho louco, quase sempre, sentado, numa tasca rasca, entra-se e ao lado direito há uma mesa velha com uma toalha de plástico, as cadeiras tremem e oscilam, parecem tartarugas sobre as areias movediças da cidade dos cães, acendiam-se as luzes que quase pareciam velas de sabão, e ele ali dormia as tardes, lia e escrevia, e bebia frases complexas e quase inacessíveis aos restantes companheiros de viagem, abria a janela, e deixava entra o ar da ruela meia escura, cinzenta, nunca mais do que dois metro de largura, e quase que se tocavam as fachadas, diria mesmo que em altas horas da madrugada. Elas abraçavam-se e faziam sexo, elas desejavam-se como se desejam os orgasmos das flores depois de colhidas pelas mãos da empregada, vestida com uma saia não mais comprida do que o joelho, e vestia uma camisola onde nem os alicerces dos seios eram visíveis a olho nu, e talvez só com uma lupa se conseguisse determinar os pontos exactos onde começavam e acabavam, e pegava-se no teodolito e ele todo inclinado, meio embriagado, dizia-nos que os seios da empregada do senhor Doutor começavam em Cais do Sodré e terminavam em Santa Apolónia, meia-noite, comboio até ao Porto, ele dormia, ressonava, fumava cigarros até que um deles ficou-se a dormir e queimou-lhe dois dos cinco dedos da mão direita, a princípio tinha o vício de segurá-los com a mão esquerda, começaram a insinuar-lhe palavras de repúdio, e ele, começou depois disso a pegar-lhes com a mão direita, apesar de ser mais firme, sempre é outro estilo
(um outro odor, belo o perfume das coxas da menina Andreia, quando, por engano o Senhor Excelentíssimo Doutro Francisco Cagarolas, e volto-o a frisar, por engano, sentou-se no colo dela, e beijou-a e quando acordou, estava no cais dos alicerces desgovernados, casas desesperadas, entre lágrimas e madrugadas, uma porta de madeira, um janelo tão pequeno que só, e nunca mais do que dez abelhas, conseguiam atravessá-lo, e depois, sobre a mesa, em cima do plástico em toalhas de saudade, gotas de vinho misturadas com água da chuva, e escrevia, e escrevia, que sendo assim, até à próxima, não sei, quando será a próxima viagem a – Belém? - sim, Belém, Tejo adormecido, cadeiras de viagem dentro de malas de cartão, roupa vendida, trocada, roubada)
Na feira da Ladra, vestiam-se de mendigos e recolhiam moedas de escudo, hoje, nem para o “Passe” dos transportes públicos dá, não chega, quando chego eu, ele nunca está, e quando vem ele, eu não sei por onde ando, dizem que se chama Euro, mas poucos começam a colocar-lhe a vista em cima, corre-se a cidade, atravessa-se o rio, e ninguém acredita que depois de amanhã, em Alijó, um Circo famosíssimo vai apresentar o seu grandioso espectáculo, gosto
(apaixonado por Circo desde as idas em Luanda, à vinda, passávamos pelo Baleizão, sentávamos-nos na esplanada e eu saboreava gelados de gelo, porque dos outros – Não gosto desses! - e quis o destino que com quinze anos ele, o Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, apaixonado por uma trapezista, também ela, pobre, oriunda das roulotes em chapa folheada, como as barbas de milho do espigueiro de Carvalhais, não abandonasse a infância e rumasse ao desconhecido casino ambulante das cidades de vidro, a tasca quase que dorme, e das palavras, uma ténue respiração com cheiro a vinho tinto e a pataniscas de bacalhau, acabadinhas de fritar, que maravilha José, sim, sim Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, sim...)
“ o autor sabe perfeitamente que não devia escrever Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, mas sim, Excelentíssimo Senhor Doutor Francisco Cagarolas, mas quer o destino que hoje me apeteça transgredir as regras, todas, da escrita, das palavras e da boa-educação, também hoje não me apetece dormir, comer ou tomar banho”
E depois?
(sinto-me liberto, livre, com asas, e... - Vais-te embora, meu querido? - vou, decidi que vou com o Circo, sempre tem pessoas que me ouvem, compreendem, que pensam como eu, e quem sabe, talvez eu regresse ao passado e encontre a trapezista novinha, na altura, apenas com ossos e pouca ou quase nenhuma carne, abraçava-a e sentia nas minhas mãos, também elas muito frágeis, as costelas, todas, como se tivesse na mão a radiografia do tórax de uma menina que andava sobre um arame e atravessava as ruas em direcção ao pôr-do-sol...)
E depois invento qualquer coisa,
E hoje ainda só é quarta-feira,
Domingo se verá se o comboio...

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 9 de abril de 2013

A menina dos rebuçados

foto: A&M ART and Photos

O corpo do texto mergulha na espuma recheada com “Liberation serif”, anunciam que brevemente vai começar a Prova Oral (Antena 3) e sinto-me tão absorvido no diário que brevemente terminará com o regresso do jantar, que desconheço se é em directo ou em diferido, ou qual é o tema, oiço que a Troika vai-nos dar mais sete anos, e não percebi muito bem, mas que de certeza é para nos enrabar a todos, ou só a alguns,
(eu enrabo, tu enrabas, nós todos enrabados e eles enrabam-nos como pequenos grãos de areia sobre a praia das marés embriagadas, televisão, desisto, não vejo e não oiço, vou desligar-me das coisas perfeitas, e fartei-me de tantos comentadores, de política, futebol e afins limitada)
Risos em plena sala, o histerismo das flores sem cabeça (afinal já passou, foi-se e finou-se), página um de um, padrão, Português (Portugal) e clica-se sobre o botão perdido no bolso da camisa, um som melancólico perde-se entre os tijolos das cabeças inseridas nas ranhuras da pele enjoativa com saliências de pólen que as avenidas das cidade esconde, e procuro-me nas sandálias que a menina de chocolate calça, e descalça-se, e descalça corre pela praia, procura-me e não me encontra, perdidos, ao fundo da fotografia, uma rua sem nome, sem idade, eu, nada, apenas converso com os números de polícia, e descubro de no número treze, todos os homens vestiam-se de mulher, mais à frente, no número vinte e cinco, terceiro esquerdo, quatro mulheres trabalhavam em sociedade anónima, SA, cinquenta e cinco escadas, três vezes ao dia, quatro drageias com mel e água destilada...
(INSER – PAD)
A menina dos rebuçados – Coitado, passou-se da cabeça! - injectáveis, e das nádegas dele saem silêncios de luz, durante a noite, ouvem-se nada, nem água, nem telefone, nem carro, nem trovoada, e a menina, diz-se crucificada na parede de betão, vêem-se os ferros doirados com alguma ferrugem junto aos dentes de marfim que os barcos de papel deixam cair, um aqui, outro ali, outro... meninas SA, número vinte e cinco, cinquenta e cinco degraus, chega, fartei-me, cansei-me, e vou voar,
(dois vidros partidos e três telhas desgovernadas contra o automóvel do tio Joaquim, trezentos cavalos, barbatanas de néon, faróis de liga leve, oito metros de adereços sobre a esplanada junto ao rio dos segredos, estou preso na despensa, oiço o pulsar da cozinha, na parede, um calendário, tem uma menina, não tem roupa, a vizinha acusa-me de pornografia, eu discordo, um calendário serve para ver e ouvir os dias, as semanas, os meses, as luas, e claro, as coxas da Gaivota..., dois, ou quatro, e três telhas desgovernadas – Onde puseste as clarabóias da menina Gaivota? - não sei, depois de as ter na mão, voaram, sumiram-se, resumindo, todos)
Enrabados por eles,
(três por cinco)
Quando cinco contos ainda valiam cinco contos, quando o cigano – Primeiro o dinheiro – e eu, pensava, “fodi-me, literalmente”, e não, ciganos honestos,
(três por cinco)
A menina dos rebuçados – Coitado, passou-se da cabeça! - injectáveis, e das nádegas dele saem silêncios de luz, durante a noite, ouvem-se nada, nem água, nem telefone, nem carro, nem trovoada, e a menina, diz-se crucificada na parede de betão...
(INSER – PAD)
Desistes de mim? Eu, eufórico, diabólico, trave de madeira apodrecida, o caruncho mergulha-me nas mãos, oiço os orifícios e cavernas, há minhocas vestidas de Cinderela, trapezistas, malabaristas, e palhaços de gesso com pernas de milho, o circo chegou à cidade do Cio, e o rio, completamente desprovido da roupa tradicional, nu, como as aranhas vagarosas das tardes de literatura, havia barracas de Farturas, Pipocas – O Guru? - e Churros e Amendoins sem casca, eufórico, trave de madeira em suspenso porque o chão derreteu e desapareceu, O BURACO, O DERRADEIRO BURACO, enfim sós, eu e tu, nós, que às vezes
(INSER – PAD)
Que – Vai um pacotinho de Pipocas? - que os taludes da insónia deslizam sobre os lençóis da tristeza, hoje, não sei se voltava a levantar-me da cadeira, começar a caminhar, ir até ao cais, e ver ao longe uma ponte deslizante, como manteiga em fatias de pão, que – Pipocas? - que tudo começou quando ouvi pela primeira vez que havia barbatanas comentadores e lesmas de açorda, e inventam-nos palavras como se as ardósias das Primavera fossem jardins cobertos, uma enorme tenda, um trapézio e palhaços, há Farturas & Churros & Pipocas – Posso experimentar? - claro que não, e o – Lucro? - embrulhadas em folhas envelhecidas de prostitutas amarelas das antigas telefónicas páginas – Parvalhão! - é mais barato, higiénico, e lembra-me a infância, de feira em feira, de cidade em cidade, de mar em mar, de cachimbo em cachimbo, regressei ontem, e foi como se vivesse aqui desde sempre, nasci aqui, e fui concebido ali, mesmo ao lado, lá para as bandas da Vila Alice, - Chique ah – rés do chão, Luanda à esquerda,
(queria falar-vos dos meus passeios de lambreta, eu, o meu pai e a minha mãe, mas o tempo de chuva, inibe-me, e lembra-me as noites junto ao Tejo embrulhado em saliva de charros e eu à frente, em pé, e se me pedisses em casamento, responder-te-ia que... prendia as duas mãozinhas no volante e inventava curvas na Baía de Luanda)
Luanda, a mesma Luanda à esquerda da Vila Alice.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Blogue Cachimbo de Água em destaque - Sapo Angola



segunda-feira, 8 de abril de 2013

A rua dos Caracóis

Não, tenho medo de perceber que a noite acontece, apenas, e só, porque nos teus olhos cresceram as margaridas das madrugadas em flor – Desculpa, onde colocaste a pilha de livros que estavam sobre a mesa da cozinha? - sei lá, talvez, e... - Porquê? - Olha... já viste na casa de banho? Não, tenho medo de
(trazias no bolso a caixa de fósforos, na camisa, sempre acreditei que fossem cigarros, não, não eram, e medo, só, a escrever, sentado sobre um pedaço de xisto, só com duas, colheres, de, prata, sim, eram de prata, e depois ouviam-se-lhes os guisos melódicos das palavras por escrever, mortas, nunca escritas, porque a saudade é de borla, pintavas as telas com acrílicos mergulhados em bagaço, o Conhaque sabia-te a Primavera sem nuvens, sem lágrimas, sem...)
Eras bela, diziam todos os espelhos dos guarda-fato da rua dos Caracóis, e – Porquê? - e porquê o quê? O amor, sabes o que é? Sei o que são rios fingidos como as ervas junto à eira de Carvalhais, e tu
(sentava-me no degrau do palheiro, e quando o vento batia no espigueiro, ouvia, tenho a certeza, ouvia poeticamente os Fingertips sobre a ponte do rio Sul, nas Termas, os patos silenciados pelas cascatas de areia dos olhos tricolores das meninas que brincavam junto às ruínas dos balneários Romanos, e além de ouvir os Fingertips, via o Rei e a Rainha, coitados, tão tristes, e tão belos, e assim se curou o primeiro Rei de Portugal e a última Rainha de Portugal, eu olhava a ponte e apetecia-me abrir os braços e...)
E tu parecias janelas construídas em madeira envelhecida, e sempre encerradas, perdoa-me, mas... tenho medo, do vento, das palavras, das ruas e dos gritos dos pinheiros em castelo – E do silêncio que vinha dos espigueiro recheado de espigas de milho... - e não havia luz que iluminasse as tristes mercearias da rua dos Caracóis, sem candeeiros, sem transeuntes, sem palavras ou traficantes – Uma rua sem traficantes é como um jardim sem flores – ou como um homem sem mãos, ou uma mulher sem pétalas de rosas, e nós tínhamos as canções de Outono regressado dos perfis laminados do inferno complexo de rochas em papel, desenhos na traseira das portas das casas de banho – Fulano é um corno – ou – Imagina a mulher da tua via... agora, imagina-a a cagar – ou – Me liga amor, me liga – e mentalmente fotografava a preto-e-branco as imagens sem literatura, poucas palavras, como as ervas junto ao palheiro, que, de vez em quando, olhavam, acariciavam... o velhinho espigueiro de
(Carvalhais à solta, terreno abaixo, ribeiros submersos em musgo caligrafado pelos olhos das moscas em delírio, e assim, quando o relógio de pulso abria a boca, quando abria, sorria-me em trinta e cinco suaves prestações, e eu, eu recordava-me da tapada com o pulmão ensanguentado de pinheiros, fieitos, e pequenas coisas que o avô guardava dentro de um envelope, e depois, enviava, pelo correio, sem destino, sem direcção, sem nomes, até que um dia descobriu o casebre do monte Desgraçado, e chegava derreado, o Domingo de Páscoa)
Endurecido pelas chamas do insignificante poema à menina Sem Nome, com uma simpática estrutura de madeira assente sobre um esqueleto de pedra, os ossos rijos – Como vão esses ossos Avô Velhinho? - e ele dizia-nos – Tal como quando regressei de França, da Primeira Grande Guerra, meu rapaz – e apenas com uma mão fazia o que eu nunca consegui fazer
(fazer um cigarro)
Tentei, tentei... e desisti quando percebi que os carris onde circulava um comboio de espuma, aquele que às vezes aparece nos sonhos dos meninos, tinha desaparecido, como desapareceram, o palheiro, a eira, o espigueiro e a casa, e quanto à tapada
(fugiram todos os pinheiros mansos)
E os cigarros em prazer de ácidos e argamassas com chocolates embrulhados em telhas de vidro, e sabíamos que as bolas de golfe brincavam sobre a secretária, depois, tínhamos os cachimbos, uns em madeira, dois em vidro e outros dois de espuma do mar, um de água, e um livro com fotografias onde habitavam corpos despedaçados, horrível, horrendo, frágeis as minhas tuas mãos quando nos sentávamos no banco de madeira em frente aos Correios... e não, foi fuzilado por promover o amor, condenado, foi mandado destruir pelas mãos do Presidente da (de) Câmara, e hoje apenas uma fileira de árvores solitárias caminha nocturnamente depois de cair o cortinado da lua, baixam-se as persianas, retiras o penoso soutien de veludo... e – Apetece-me pegar-te na mão e inventar o mar no teu peito! - e eu, apressadamente, erguia âncoras e íamos até ao infinito...
(fugiram todos os pinheiros mansos).


(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 7 de abril de 2013

Papel-químico

foto: A&M ART and Photos

Descia a rua e ninguém a cruzar-se comigo, sentia-me estranho e só, e todas as montras dos estabelecimentos comerciais, tapadas com jornais velhos, provavelmente encerradas, por ventura, há muito, pois as teias de aranha transpareciam para o exterior, havia um cheiro bafiento, penumbro, um cheiro a abandono, como aquele característico cheiro de quando somos abandonados por alguém e ao passarmos na rua – Coitado, cheira a abandonado – e aos poucos a tarde mergulhava no papel-químico para ser reutilizado na tarde seguinte, talvez amanhã, talvez depois de amanhã, ou... talvez nunca,
Tínhamos um cão rafeiro com olhos castanhos, pêlo curto, dentes afiados como lâminas de barbear, e quando se chateava comigo, eram os meus tornozelos que o pagavam, a fúria e o rancor, a maldição sobre a minha presença, e parece que nunca gosto muito da minha sombra, berrava-me e quando eu regressava tardíssimo a casa, lá esta ele à minha espera, como se eu precisasse de alguma coisa, ele, ele ajudar-me-ia... coitado do infeliz, coitado daquele que acredita que pode, e no entanto, pouco ou nada poderá fazer, a não ser, ladrar, ladrar e ladrar... coitado do Noqui I, como todos os cães, ladrar, ladrar e ladrar – Havia sorrisos de açúcar sobre a mesa das toalhas brancas – e hoje pergunto-me a razão de todos os rafeiros pertencerem a uma classe de fanfarrões, que não aguentam com um estalo no focinho, como os homens, e as pombas e as formigas
Pegava no papel-químico de anteontem, e colocava-lhe em cima um laço azul-escuro, e depois abria a janela e mergulhava-os no Sol de fim de tarde, regressavam as imperiais e o prato com tremoços, quatro o cinco, às vezes, seis, marinheiros sem embarcação definida – Queres dizer... desempregados? - não, não, marinheiros apenas de patente, marinheiros de esplanada, e quase no encerramento do dia, quando Deus com os seus assessores, faziam a contabilidade do dia... tínhamos sobre uma mesa redonda, e frágil, “cuidado – Frágil - “ aproximadamente oitenta copos de vidro, vazios, solitáriamente como andorinhas e botões de rosa,
E as formigas subiam árvore acima até encontrarem o fruto embrulhado em papel-químico, este, o de ontem, reviam o dia, visionavam as imagens sombreadas pelos lápis de cor das crianças da rua dos Alecrins, e uma senhora de bengala e óculos de sol, a que todos chamávamos de Dona Maria Dona, que vivia só, sem parentesco conhecido, pegava na bengala e corríamos como se fossemos moscas disfarçadas de gaivotas, deixávamos cair os lápis e quando chegávamos a casa, as nossas mães ao questionarem-nos – Os lápis de cor? - em uníssono respondíamos que...
Fugiram, mãezinha,
Hoje desço a rua e ninguém a cruzar-se comigo, sentia-me estranho e só, e todas as montras dos estabelecimentos comerciais, tapadas com jornais velhos, provavelmente encerradas, por ventura, há muito, pois as teias de aranha transpareciam para o exterior, havia um cheiro bafiento, penumbro, um cheiro a abandono, como aquele característico cheiro de quando somos abandonados por alguém e ao passarmos na rua – Coitado, cheira a abandonado – e quem nunca foi abandonado que atire a primeira pedra – É o atiras... -, e continuam lá, as frágeis mesas de esplanada, e continuam lá, as frágeis resmas de papel-químico dos dias passados desde mil novecentos e oitenta e sete, lá, como continuam lá, frágeis os queridos homens desesperados na ânsia de encontrarem companhia para as noites frias de Inverno, como continuam lá, as frágeis mulheres, com flores ao peito, com cabelos de chocolate, que se comiam nos intervalos do cinema,
Fugiram, mãezinha,
Olá, sou o Francisco – Muito prazer, sou a Maria André! - mas entre, entre e esteja à sua vontade, faça de conta que está em sua casa – Sim, claro, sim – e as frágeis formigas, como os lápis de cor, que quase sempre se perdiam – Os lápis de cor? - respondia-lhe
Fugiram mãezinha, fugiram,
Que se comiam nos intervalos do cinema, à luz dos candeeiros a petróleo, - Sopa? - não, não gosto de sopa, nunca gostei, detesto, como detestava as formigas do quinto esquerdo, sós, sem acesso ao sótão, ele voltou, sinceramente, e hoje, ficava lá, e hoje não regressava, e hoje, pegava nas folhas de papel-químico do avô Domingos, que religiosamente guardava numa caixa, e confesso que nunca percebi para que serviam, e mais tarde vim a descobrir que eram a cópia dos dias passados, coitado, e pegava nas folhas de papel-químico e construía uma papagaio, o pulsar do cordel enrolado no pulso, como um cabo de aço a prender árvores à terra com cheiro a chuva e a fogo, ouvíamos o tilintar das carapaças dos caranguejos esquecidos junto ao circo – O que são mangueiras? - mesmo debaixo da roulote dos palhaços, sentia-lhes as patas da frente contra os rodados de borracha como tenazes nas lareiras de trás-os-montes, e estávamos tão longe, distante, e descíamos a rua, descia a rua e ninguém me cumprimentava – Bom dia senhor Francisco! - olá bom dia Dona Menina Dona, e seguia, olhava e não ninguém, não havia árvores naquela cidade, barulhos, pedras de encontro às montras escondidas pelas velhas folhas de jornal – Procura-se Francisco Luís Fontinha – e não acredito
(Olá, sou o Francisco – Muito prazer, sou a Maria André! - mas entre, entre e esteja à sua vontade, faça de conta que está em sua casa – Sim, claro, sim – e as frágeis formigas, como os lápis de cor, que quase sempre se perdiam – Os lápis de cor? - respondia-lhe
Fugiram mãezinha, fugiram),
E nunca mais o encontraram, e nunca mais regressou, e pergunto-me, se o jornal que enfeita a montra diz que “ Procura-se Francisco Luís Fontinha” e se isso aconteceu há mais de dez anos, logo
A cozinha não tinha janela para as traseiras – Não percebi – estava a brincar, porque se a cozinha fica na fachada da frente, isto é, a cozinha tem janela para o alçado principal, pela lógica, pela lógica a cozinha não tem janela para as traseiras do prédio, logo
Há mais de dez anos que este estabelecimento comercial está encerrado – Não percebi! - repara, logo a cozinha não tem janela, logo
Dou-me conta que caminho pelas ruas de uma cidade fantasma, uma cidade que existe e não existe, digamos que – Bom dia dia menino Francisco – olá bom dia, Dona Teresa, como está a netinha? - Crescida e preguiçosa – Pois, pois... - como os barcos esquecidos no Terminal de Cruzeiros da Rocha Conde de Óbidos, presos a um cordel e um velho parecido com o avô Domingos a passeá-los rua acima, rua abaixo, e ninguém, nenhuma pessoa, nenhuma sombra, nada
Que desinquietasse a cidade fantasma,
E nada, tal como os lápis de cor - Fugiram mãezinha, fugiram – e a cidade, quando começava a noite, embrulhava-se no papel-químico e entrava dentro da caixa de cartão, até que mais tarde, ele, quando se lhe entranhava a solidão nos ossos, a abria, retirava o papel-químico e começa a recordar imagens que nunca
Existiram,
E que ele acredita terem existido.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 6 de abril de 2013

mil novecentos e oitenta e nove - quarto andar – sala um


Um verso desesperado
na tua mão solitária,
um vidro partido
na árvore dos sofrimentos
quando vem a manhã,
e ele ausente
de ti e de mim,
e ele mente
como toda a gente
quando chove torrencialmente
e caiem as estrelas do nocturno Céu
em desassossego,

O medo sabe escreve nos olhos da noite
como quando tínhamos os abismos segredos
em planícies de solidão,
agredias os meus tristes olhos
com o rancor das tuas lágrimas,
vestias-te de alegria
e dançavas,
comias,
brincavas sobre o meu corpo esmiuçado
entre os cigarros de tinta da china
que o merceeiro nos fiava,
e um pequeno panfleto de açúcar entranhava-se nas tuas veias...

Chegava o carteiro com palavras tuas escritas em papel de arroz
e uma andorinha saltitava no pequenos postal artesanal,
miúdo, pequeno morcego de luz,
e no entanto, vinham os insignificantes plásticos com as sandes
e os carnívoros sons das garrafas de vodka,
era festa lá em casa
bebíamos, comíamos... e dormíamos
e felizmente
sempre tivemos tempo para acordar,
outros
não acordaram nunca
e assim voaram até ao cais dos embalsamados ossos de penicilina...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
06/04/2013 - Alijó

A cidade das ratazanas em porcelana

foto: A&M ART and Photos

Uma cidade em chamas, um povo em alvoroço, as árvores balançam com a fome do povo em alvoroço, e tu, tu aí sentada, a fumar cigarros, como se não estivesse a acontecer nada de especial, está tudo bem dizes-me tu, não há problema, arreganha-me os dentes o teu pai, e no entanto, balançam as árvores, e no entanto, de tanto balançarem... poderão cair, sobre as mãos líquidas do povo em alvoroço, cansado de sofrer, e sem rosto, recomenda-se, e até diria que nunca vivemos como hoje, somos felizes, somos um casal feliz, sorridente, somos perfeitamente... os mais parvos do bairro onde vivemos – És tão pessimista, meu querido! - como fui pessimista quando fugi para cima de uma árvore, quando criança, e só consegui descer com a ajuda dos bombeiros, e tudo, porque, o Alberto meteu-me em cabeça que se eu estendesse um arame no caminho para o bairro, a meia altura do chão, era engraçado quando o senhor António passasse de motorizada, já noite dentro, e com algum desequilíbrio devido à falta de luminosidade ou porque o tinto da tasca da dona Francisca era do melhor que havia, não interessa, o problema foi que quando o pobre do homem vinha no seu rame-rame, pumba, ele para um lado e a pobre da motorizada para outra, conclusão – Quase que era degolado! - decapitado, poderá dizer-se, e ainda nós não vivíamos na Coreia do Norte, ou na China, que a família do pobre condenado à morte por fuzilamento, coitados, têm de pagar a respectiva munição – Queres tu dizer, meu querido, têm de pagar a bala? - sim, é isso, sim...
(os animais humanos sem direitos porque o direito do dinheiro fala mais alto do que a dignidade, tudo se cala, aqui e fora daqui, e assim vão enviando contas de munições a cada família que por azar, um dos seus queridos resolveu desafiar o sistema – E? - sim? - E se eles tiverem fraca pontaria, isto é, se o condenado precisar mais do que uma bala para voar até ao infinito amanhecer? - boa pergunta, minha querida, nunca tinha pensado nisso...)
Sim, talvez, talvez prendam as árvores com fios de aço para que não balancem tanto, mas... - Mas, meu querido, não há aço que aprisione o pensamento, e esse, vai sempre balançar... - mas esta cidade começa a ficar infestada de ratazanas, cabrões e pratos de porcelana...,
(depois dizes-me alguma coisa? - Sim, minha querida, digo)
Amo-te – Desculpa, não sabia, minha querida – e o “panasca”, desde miúdo que nunca gostou de sopa, papas, ou coisas similares, e agora – Obrigaram-te a comer sopa? - e agora digo-o, sem medo que te amo, e pergunto-me, questiono-me, adormeço pensando em ti, e a perguntar-me - E tu rapaz, sabes o que é o Amor? - desculpa, não sei o que são veredas cinzentas com fios de aço, desculpa, minha querida, não sei o que são fios de prata enrolados em pescoços feios, lânguidos, bronzeados cálices de azevinho, mórbidos, esfomeados como o fumo das sanzalas sem candeeiros de oiro, sem rios de magnésio, sem nuvens de chocolate, como a vida de “merda”, a nossa vidinha, de bairro de preferia,
(de uma cidade em chamas, um povo em alvoroço, as árvores balançam com a fome do povo em alvoroço, e tu, tu aí sentada, a fumar cigarros, como se não estivesse a acontecer nada de especial, está tudo bem dizes-me tu, não há problema, arreganha-me os dentes o teu pai, e no entanto, balançam as árvores, e no entanto, de tanto balançarem... poderão cair, sobre as mãos líquidas do povo em alvoroço, cansado de sofrer, e sem rosto, recomenda-se, e até diria que nunca vivemos como hoje, somos felizes, somos um casal feliz, sorridente, somos perfeitamente... os mais parvos do bairro onde vivemos – És tão pessimista, meu querido! - como fui pessimista quando fugi para cima de uma árvore, quando criança, e só consegui descer com a ajuda dos bombeiros...,)
Começo – Não percebi, minha querida! - ah... sim, quando lá passar eu digo-lhe, fica descansada, começo a ficar farto das palavras, dos poemas e dos textos que parecem poemas, começo a ficar farto, dos livros, e das coisas parecidas com livros, começo a ficar farto com o amor e com todas as coisas parecidas – Terminadas em dor? - ou isso, é-me igual, desigual seria se quando regressasse a casa e não encontrasse a porta de entrada, o pior seria se regressasse a casa, encontrasse a porta de entrada, entrasse, e lá dentro, nada – Como nada, meu querido? - nada, nem paredes, nem janelas, nem escadas, nem móveis, absolutamente nada – Imagino-o, meu querido, imagino-o... - e mesmo assim pedia à vizinha do lado – Vizinha, faz o favor de me emprestar a corda de nylon que serve para prender o seu burro à oliveira da terra funda? - ela meia mouca – Quer-se matar, menino? - e como posso eu explicar-lhe, a ela, à dona Francisca, que a corda era apenas para eu lançar ao ramo mais forte da árvore do quintal, e tentar subir até que não existisse mais árvore – Como o fizeste na infância? - e depois vinham os bombeiros, e eu descia
(sim, como o fiz na infância)
E descia, e descia, descia...

(quase ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Porque não sonhas com...

foto: A&M ART and Photos

Acordei cedo, sonhei contigo, e a cabeça estoirava-se-me, alguma coisa que eu tenha deixado sem me aperceber, quero dizer, alguma coisa que eu tenha esquecido sobre a mesa-de-cabeceira, um parafuso, uma porca, um anel ou a pulseira de pechisbeque que comprei no ano passado na barraca do cigano zarolho, mas não sei, meu querido, talvez o copo de água, talvez devido a um dos vidros da janela do quarto estar quebrado, mas... esta dor – Dormes poucos, meu querido – e não, não durmo pouco, nunca dormi pouco, e recuso-me a admitir de durmo pouco, mas durmo, sonho, às vezes, com pedras – Acreditas nisto? Quem sonha com pedras? - mas é verdade, sim, eu sonho, porquê?
(domingo vou à penitenciária visitar o André)
Porque, meu querido, não é normal sonhares com pedras, as pedras não são, não fazem parte dos sonhos – Então com que objectos posso eu sonhar? Se existem objectos para o efeito... - ora, sei lá agora, podes sonhar com o mar quando desce a tarde – Não gosto mais do mar – podes sonhar com as gaivotas em voos triangulares sobre o Tejo – Também deixei de gostar do Tejo e de triângulos – olha, porque não sonhares com
(sinto-o muito magro, diz que não lhe apetece comer, diz que não dorme, que a cela é sombria e húmida, tem os olhos adormecidos, percebes? Parecem o romper da madrugada, mas por alguma razão externa à natureza, a madrugada ficou submersa no horizonte, meia sombria, meia adormecida, meia ensonada, são assim, os olhos do André, sabes? Tenho, tenho pena dele e da solidão que habita nele, tenho pena de ser eu a única visita que tem, a mãe, que não pode, sempre atarefada, a irmã, estuda à noite e trabalha de dia, o irmão mais novo, que não tem coragem para entrar numa penitenciá, tretas, meu querido, tretas, porque a mãe encontro com o amigo, de braço dado a passear no Rossio, à irmã, sim a que diz estudar e trabalhar, essa galdéria, vejo-a sempre com namorados diferentes rua acima, rua abaixo, e)
Experimenta sonhar com nuvens – Nuvens? - vou agora sonhar com nuvens...
(e o cabrão do irmão mais novo sempre com o rabo sentado na sala de jogos, umas vezes a jogar bilhar, outras a ver jogar bilhar, e quando está teso, sabes como é, faz-se à vida, e vai até Belém, engata aqui, engata ali... e o irmão que se lixe – Sabes, meu querido? - tenho pena do André...)
Depois lembrava-me de chuva, e a chuva faz-me recordar as árvores, e as árvores a terra, e a terra o cheiro, e o cheiro..., um quintal esquecido no meio do capim – Talvez consiga sonhar com as bonecas de porcelana da tia Clementina – boa, porque não tentas?
(sinto-o triste, coitado do André)
Às vezes, lembrei-me agora mesmo, tenho medo do sono, é isso, medo de adormecer e não acordar – Medo de morrer... - não, não é medo de morrer, é medo, medo de não acordar, ficar eternamente a dormir, sem pegar em livros, sem ver palavras, sem olhar as flores . Sem ires visitar o André! - sim, também, é esse medo que me preocupa, é esse medo que não me deixa adormecer, assim – Assim enquanto estiveres acordado... - claro, enquanto estiver acordado tenho a certeza que a terra não dorme, e tenho a certeza que a noite não termina nunca, e
(triste)
E consigo ouvir uns pássaros parvos que não dormem nunca, oiço-os toda a noite – Se calhar estás a sonhar que ouves pássaros...! - a sonhar, eu? Eu não sonho, deixei de sonhar, não acredito em sonhos, não
(estás tão pálido, meu querido)
Que não, porque a claridade existe para te proteger das embaciadas línguas de fogo que a maré lança para os barcos, e quando pensávamos que estávamos de mão dada, tu, percebias que eu tinha deixado de existir, estavas só, como sempre, só, e eu, eu nunca percebi a tua solidão, ausentava-me quilómetros de rio até desaguar nas rochas juntamente com o descarregador do esgoto, e
(misturavas-te com a cidade)
E como sempre, a cidade perdidamente perdida nas arruadas sem saída – Tens visitado o André? Como está ele? - uma cidade penumbra com janelas de vaidade, casas que chegam ao Céu, e automóveis que não cessam nunca de caminhar, não dormem, como ele
(triste, muito triste, mas vai-se aguentando)
E como ele, também os outros, aqueles que acordam cedo, e correm para a cidade, fazem-se à vida, às vezes têm azar, e é a vida que se faz a eles, outras vezes, são uns pássaros negros, muito grandes, maiores que os edifícios – Aviões? - sim, esses mesmo, que os levam e nunca mais regressam...
(e que nunca mais vou sair daqui – Claro que vais, André, claro que vais).

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha