foto: A&M ART and Photos
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Subo a calçada em direcção ao cais dos alicerces
desgovernados, casas desesperadas, entre lágrimas e madrugadas, uma
porta de madeira, antiga, com um ferradura imprimida pela sombra da
mão do Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, doutorado
em literatura e vinho louco, quase sempre, sentado, numa tasca rasca,
entra-se e ao lado direito há uma mesa velha com uma toalha de
plástico, as cadeiras tremem e oscilam, parecem tartarugas sobre as
areias movediças da cidade dos cães, acendiam-se as luzes que quase
pareciam velas de sabão, e ele ali dormia as tardes, lia e escrevia,
e bebia frases complexas e quase inacessíveis aos restantes
companheiros de viagem, abria a janela, e deixava entra o ar da ruela
meia escura, cinzenta, nunca mais do que dois metro de largura, e
quase que se tocavam as fachadas, diria mesmo que em altas horas da
madrugada. Elas abraçavam-se e faziam sexo, elas desejavam-se como
se desejam os orgasmos das flores depois de colhidas pelas mãos da
empregada, vestida com uma saia não mais comprida do que o joelho, e
vestia uma camisola onde nem os alicerces dos seios eram visíveis a
olho nu, e talvez só com uma lupa se conseguisse determinar os
pontos exactos onde começavam e acabavam, e pegava-se no teodolito e
ele todo inclinado, meio embriagado, dizia-nos que os seios da
empregada do senhor Doutor começavam em Cais do Sodré e terminavam
em Santa Apolónia, meia-noite, comboio até ao Porto, ele dormia,
ressonava, fumava cigarros até que um deles ficou-se a dormir e
queimou-lhe dois dos cinco dedos da mão direita, a princípio tinha
o vício de segurá-los com a mão esquerda, começaram a
insinuar-lhe palavras de repúdio, e ele, começou depois disso a
pegar-lhes com a mão direita, apesar de ser mais firme, sempre é
outro estilo
(um outro odor, belo o perfume das coxas da menina
Andreia, quando, por engano o Senhor Excelentíssimo Doutro Francisco
Cagarolas, e volto-o a frisar, por engano, sentou-se no colo dela, e
beijou-a e quando acordou, estava no cais dos alicerces
desgovernados, casas desesperadas, entre lágrimas e madrugadas, uma
porta de madeira, um janelo tão pequeno que só, e nunca mais do que
dez abelhas, conseguiam atravessá-lo, e depois, sobre a mesa, em
cima do plástico em toalhas de saudade, gotas de vinho misturadas
com água da chuva, e escrevia, e escrevia, que sendo assim, até à
próxima, não sei, quando será a próxima viagem a – Belém? -
sim, Belém, Tejo adormecido, cadeiras de viagem dentro de malas de
cartão, roupa vendida, trocada, roubada)
Na feira da Ladra, vestiam-se de mendigos e
recolhiam moedas de escudo, hoje, nem para o “Passe” dos
transportes públicos dá, não chega, quando chego eu, ele nunca
está, e quando vem ele, eu não sei por onde ando, dizem que se
chama Euro, mas poucos começam a colocar-lhe a vista em cima,
corre-se a cidade, atravessa-se o rio, e ninguém acredita que depois
de amanhã, em Alijó, um Circo famosíssimo vai apresentar o seu
grandioso espectáculo, gosto
(apaixonado por Circo desde as idas em Luanda, à
vinda, passávamos pelo Baleizão, sentávamos-nos na esplanada e eu
saboreava gelados de gelo, porque dos outros – Não gosto desses! -
e quis o destino que com quinze anos ele, o Senhor Excelentíssimo
Doutor Francisco Cagarolas, apaixonado por uma trapezista, também
ela, pobre, oriunda das roulotes em chapa folheada, como as barbas de
milho do espigueiro de Carvalhais, não abandonasse a infância e
rumasse ao desconhecido casino ambulante das cidades de vidro, a
tasca quase que dorme, e das palavras, uma ténue respiração com
cheiro a vinho tinto e a pataniscas de bacalhau, acabadinhas de
fritar, que maravilha José, sim, sim Senhor Excelentíssimo Doutor
Francisco Cagarolas, sim...)
“ o autor sabe perfeitamente que não devia
escrever Senhor Excelentíssimo Doutor Francisco Cagarolas, mas sim,
Excelentíssimo Senhor Doutor Francisco Cagarolas, mas quer o destino
que hoje me apeteça transgredir as regras, todas, da escrita, das
palavras e da boa-educação, também hoje não me apetece dormir,
comer ou tomar banho”
E depois?
(sinto-me liberto, livre, com asas, e... - Vais-te
embora, meu querido? - vou, decidi que vou com o Circo, sempre tem
pessoas que me ouvem, compreendem, que pensam como eu, e quem sabe,
talvez eu regresse ao passado e encontre a trapezista novinha, na
altura, apenas com ossos e pouca ou quase nenhuma carne, abraçava-a
e sentia nas minhas mãos, também elas muito frágeis, as costelas,
todas, como se tivesse na mão a radiografia do tórax de uma menina
que andava sobre um arame e atravessava as ruas em direcção ao
pôr-do-sol...)
E depois invento qualquer coisa,
E hoje ainda só é quarta-feira,
Domingo se verá se o comboio...
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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