domingo, 26 de fevereiro de 2023

Cânfora adormecida

 Não sei, mãe, não o sei…

Estás tão ocupada na luta com (a puta dessa velha, essa caquéctica puta) que até te esqueces de mim,

Mas cá vou andando.

Tantas lágrimas, mãe, tantas lágrimas choraste durante a noite, e enquanto choravas, prendias-me no teu colo como se eu fosse um pequeno círculo com olhos verdes,

E só uma vez me deixaste cair ao chão… era tanto o teu cansaço, mãe, tão grande… o teu cansaço, mas sabes, admiro-te por nunca me teres abandonado.

Depois, corrias em direcção ao capim, deitavas-me no chão e puxavas as nuvens azuis para depois as poisares no meu peito,

Tudo, mãe, tudo para me protegeres daquela velha puta, tudo,

Fazias tudo por mim, que um dia, um dia resolveste desenhar o mar no tecto da minha alcofa, tão lindo mãe, tão lindo o mar, olha

Até me desenhaste a cidade da luz no triste sombreado do meu olhar.

E sempre me disseste que o segredo, o segredo, estava na palma da minha mão, e sabes mãe, abro a mão, e…

Segredo nenhum, nenhum.

E hoje sei que estou protegido pelos teus olhos, mas ela mãe, ela é mais forte de que tu.

Não faz mal, não.

Não o sei, não.

Levantava-me do chão, corria velozmente para a mangueira mais próxima e aos poucos, muito devagarinho subia, subia, subia até desaparecer dos teus olhos, e só aparecia no areal mais próximo,

Junto à portão de entrada do quintal que hoje está vestido de saudade, e onde está sentado o avô Domingos à nossa espera,

Nas ruas, mãe, nas ruas daquela cidade ainda se faz passear de machimbombo na mão, preso por um fino e débil cordel de sono, até que regressa a noite e a saudade desaparece,

Como tudo, mãe, como tudo.

Como tudo desaparece.

E sei que vais perder essa maldita guerra, como sempre mãe, como sempre, perdeste para essa velha caquéctica puta.

Hoje somos uma cânfora adormecida, dentro de uma pequena caixa de sapatos, sem janelas, sem porta de entrada, sem tecto, sem telhado, sem nada,

Sem nada,

Nada.

 

 

 

Alijó, 26/02/2023

Francisco Luís Fontinha

sábado, 25 de fevereiro de 2023

O menino amaldiçoado

 Coitado do Alfredo,

O menino amaldiçoado,

O menino coitadinho,

Do menino maltratado,

Coitado,

Coitado dele.

 

Do Alfredo nada se sabe,

Que o Alfredo tenha tido um pai,

Uma mãe,

Às vezes, o coitado do Alfredo,

Sobe às árvores,

Senta-se bem lá no alto…

E nada,

Nada.

 

Coitado, coitado dele.

 

Coitado do menino amaldiçoado,

Do Alfredo feito menino,

Menino de rua,

Da Rua ao Cabaré…

Do Cabaré ao Inferno.

 

Em menino,

Pouco ou nada teve,

Porque este menino,

De amaldiçoado…

Tudo teve.

 

Coitado.

Coitado dele…

E quando o menino amaldiçoado morrer,

Se um dia morrer,

Por ele todos vão chorar,

Coitado,

Coitado dele.

 

Coitado do Alfredo.

 

 

 

Alijó, 25/02/2023

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Sonhos de sonhar

 Às vezes, visitavam-me os barcos de brincar,

Depois, pegava num pedacinho de silêncio,

Subia mangueira acima…

E voava em direcção ao mar,

 

Sobre o mar, disfarçava-me de nuvem,

Corria, corria… corria,

E quando regressava a noite,

Ia até ao luar,

Sentava-me na lua,

E desenhava sonhos no teu olhar,

 

Hoje, não tenho mais barcos de brincar,

Nem pedacinhos de silêncio,

Nem noites de luar…

Tão pouco sei voar

Ou sonhar,

Mas tenho o teu olhar.

 

 

 

Alijó, 23/02/2023

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Universo

 Podia extinguir-se o Universo…

Podia,

Podia morrer o sol

E todas as estrelas,

Morrer o dia,

Podia,

 

Tudo podia acontecer,

Porque eu,

Não me erguia desta cadeira em frente ao mar,

 

Podia chover,

Podia nevar,

Podiam levar-me este mar…

 

Que eu continuava sentado nesta cadeira,

Nesta cadeira em frente ao mar,

 

(Podia extinguir-se o Universo…

Podia,

Podia morrer o sol

E todas as estrelas,

Morrer o dia,

Podia)

 

E o que eu fazia se tudo isso acontecesse?

 

Nada.

Absolutamente nada.

 

 

 

Alijó, 22/02/2023

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Cidade embalsamada

 Há-de nascer uma estrela pincelada de saudade

Em teus olhos de amanhecer,

Cidade embalsamada

Nas sombras amordaçadas,

 

Pássaro em papel,

Cor devastada do sombreado silêncio,

Sol dos pequenos cubos em vidro…

Há-de nascer o rio em teus braços,

 

Teus braços que transportam o meu esqueleto,

Este pobre esqueleto dos loucos luares,

Há-de nascer, em ti, uma estrela pincelada de saudade

Em teus olhos de amanhecer,

 

Em teus olhos de beijar…

Há-de nascer nos teus lábios

A primeira madrugada,

Cidade… cidade embalsamada.

 

 

Alijó, 21/02/2023

Francisco Luís Fontinha

Oceano em fuga

 Em teus lábios,

Exoplaneta em flor,

Ao cansaço em pedacinhos de mel,

Dos corredores onde me perco,

E me escondo do teu olhar,

Em teus lábios,

Onde poisa o sonolento mar

E as primeiras lágrimas da manhã,

Trazem a ti a ausência,

 

Uma máscara de sono,

Lentamente,

Em solidão,

Acorda a areia fina dos tristes luares que a noite assassina,

E do teu corpo,

Ergue-se o poema.

Escrevo-te, escrevo-te na lentidão do silêncio,

Quando colocas sobre mim,

As tristes imagens de um Oceano em fuga,

Onde se afoga o sonho,

Onde se esconde o sonho,

 

Em teus lábios,

Meu amor pedaço de mel…

Habita o lugar perdido

Que apenas as tempestades conhecem…

E do medo,

Vem a mim o teu corpo desejado.

 

 

 

Alijó, 21/02/2023

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Prisão solar

 Se sonhas,

Não sonhes,

Atira pedras às árvores e aos pássaros,

Aprisiona o sol na tua mão…

 

Se sonhas,

Não o faças,

 

Dorme dentro do quadrado,

Entre o silêncio do luar

E a pasmaceira das tardes junto ao mar,

 

O mar é uma merda,

Água,

Barcos em aflitas gargalhadas,

Depois…

Depois trazem a noite,

E com a noite,

A porcaria das estrelas,

Poeira cósmica,

Lágrimas de néon,

Pó,

 

Se sonhas,

Não sonhes,

Atira pedras às árvores e aos pássaros,

Aprisiona o sol na tua mão…

Cruza os braços,

Cerra os olhos;

Depois…

Desliga o interruptor que tens dentro de ti...

 

 

 

Alijó, 20/02/2023

Francisco Luís Fontinha

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Azul-mar em paixão

 Falhei,

Falhei quando mandei cortar as oliveiras do canteiro,

E em seu lugar,

Plantarem amendoeiras; são tão lindas na Primavera…

Depois,

Ficam tristes,

Magras, muito magras,

Esqueléticas no esquecimento do orvalho.

 

Falhei,

Falhei quando mandei pincelar o céu de azul,

Azul-mar em paixão,

Quando deveriam ter pintado o céu de negro,

Nero escuro como a noite.

 

Falhei,

Falhei quando trouxe durante a noite todas as estrelas do céu,

Hoje, hoje tenho-as dentro de uma pequena caixa em cartão…

Tenho-as aprisionadas,

Como se todo o mal que me acontece,

A culpa,

Fosse das pobres estrelas.

 

Falhei,

Falhei quando mandei cortar as oliveiras do canteiro,

E em seu lugar,

Plantarem amendoeiras; são tão lindas na Primavera…

São tão lindas, na Primavera.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 19/02/2023

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Estrelas

 Não me procures dentro deste buraco frio e escuro,

Onde habitam todas as estrelas em papel…

Estrelas que a minha mãe fazia,

Estrelas…

Que me oferecia,

 

Estrelas que arderam,

Labaredas de sono

No olhar de todos os Planetas,

 

Estrelas azuis,

Amarelas,

Estrelas encarnadas…

Da cor

Da dor,

Estrelas que deixaram de ser estrelas,

Nas mãos de uma flor,

 

Não me procures dentro deste buraco,

Frio,

Escuro,

Onde habitam estrelas;

As estrelas que odeio.

 

 

 

Alijó, 18/02/2023

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Noite ternurenta entre estrelas

 (ao meu filho Addendum Díodo de Zener)

 

 

Cai sobre o silêncio

O dente recto das primeiras chuvas da manhã,

Cai na tua mão, menino Addendum Díodo de Zener,

As palavras envenenadas que o teu pai semeia no vento,

 

Vêm a ti, meu pobre menino,

As estrelas em papel que o destino lançou sobre o mar,

Do teu mar tímido,

Do pequeno desenho tridimensional…

Onde dormem as Princesas,

 

E do Castelo com vista para a planície,

Onde brincam amendoeiras e abelhas,

Um pedaço de luar,

Muito sonolento…

Acaba de acordar,

 

E cai em ti,

Meu menino,

A primeira estrela em papel,

Onde o teu pai,

Escreve cartas ao silêncio.

 

 

 

Alijó, 15/02/2023

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Poema inverso do verso poema

 O inverso dos teus lábios

No meu peito em pequenos quadrados,

Círculos de sono,

Invisíveis luares,

Quando a janela do teu olhar

Se esconde na minha mão,

 

Inverso

No verso que deixo no teu cabelo,

Palavras vaiadas,

Palavras minhas nas tuas madrugadas…

 

O inverso dos teus lábios,

Em meus beijos desenhados,

Em pequenos quadrados,

Quadrados entre corpos nus,

 

O teu,

Nu corpo das noites junto ao rio…

 

O nu

Teu corpo nu,

Dentro de mim,

Na minha mão.

 

 

 

Alijó, 14/02/2023

Francisco Luís Fontinha

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Maquinação sonolenta

 Do vosso servo que sou,

Enquanto a luz brinca nos teus lábios,

Ponte para a eternidade,

Sobre o rio que se lamenta…

No esconderijo da saudade,

 

Que vem

E não voltará mais ao castelo,

Nem a esta pobre cidade,

 

Do vosso servo,

Que fui

E sou,

A sombra nocturna das lívidas paredes de xisto,

 

Corro para o mar

E sento-me sobre as ondas do teu cabelo,

Há um barco que me quer levar…

Mas não sei se o meu corpo é uma pedra

Ou uma pequena lágrima de sono,

 

Tão pouco sei…

Se o meu corpo vai aguentar

Esta longa viagem,

 

Do vosso servo,

Que fui

E sou,

 

Deixo-vos a maquinação sonolenta das noites invisíveis.

 

 

 

Alijó, 12/02/2023

Francisco Luís Fontinha

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Equação do sono

 Deste sono aleatório,

Equação invisível da paixão,

Teu corpo meu dormitório,

Teu corpo minha canção,

 

Quando o vento se recusa a erguer,

E escreve em tua mão…

Nas palavras de escrever,

As palavras do meu coração,

 

E do poema a voar,

No poema em pedaços de mel,

Teus lábios em mar,

 

Do mar pedestal;

Desta equação escrita no cansado papel…

Um dia, acordará do sono… o teu sono infiel.

 

 

 

Alijó, 11/02/2023

Francisco Luís Fontinha

Madrugadas

 Uma cegonha de luz poisa no teu doce olhar,

Como Cristo suspenso na cruz,
Da cruz onde pincela de lágrimas os teus lábios de mar,

 

E se o teu Deus o permitir,

Quando acordarem as manhãs ensonadas,

As tuas manhãs ensonadas,

Todos os pássaros vão fingir,

Todos os pássaros vão voar…

Voar em tuas madrugadas.

 

 

 

Alijó, 11/02/2023

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Lágrimas de sol

 Abraça-te ao silêncio

Fingido da madrugada,

Abraça-te às primeiras lágrimas de sol…

Enquanto o mar se perde no teu olhar,

 

Abraça-te aos meus lábios,

Viajante lunar das palavras,

Abraça-te aos poemas

E às minhas madrugadas,

 

Abraça-te à minha noite,

Castelo sem janelas,

Abraça-te…

 

Abraça-te à água prometida

Dos sorrisos sem tristeza,

Das pinceladas mãos em desejo,

Abraça-te ao beijo,

No beijo natureza,

Abraça-te sem mais nada,

Porque das primeiras lágrimas de sol…

Nasce a alvorada.

 

 

 

 

Bragança, 10/02/2023

Francisco Luís Fontinha

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Viagem

 Poiso os meus braços

Nos teus braços,

 

Viajo nos teus lábios,

Pequena flor da madrugada,

Enquanto as árvores do meu jardim

Brincam nos teus olhos de mar,

 

Beijo o teu corpo,

Acendo a lareira do teu desejo,

 

Viajo nos teus lábios,

Incêndio das nocturnas noites de luar,

Presépio impresso em papeis de areia…

Poiso os meus braços,

Nos teus doces braços,

E a manhã é um cortinado colorido

Sem tristeza,

Sem nuvens…

Sem alarido.

 

 

 

 

Alijó, 05/02/2023

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Mão do sono

 Às vezes, são as palavras que não acordam,

Dormem profundamente no silêncio de uma flor,

Outras vezes, são as manhãs dos alegres sorrisos

Que descem do céu e poisam junto ao rio,

Às vezes, olho os pássaros que habitam no teu cabelo,

Árvore sofrida do Inverno…

 

E nas outras vezes,

Aquelas vezes em que esqueço, das vezes que recordo…

A mão do sono,

E percebo que de todas as vezes, tantas vezes,

O meu corpo balança nos teus lábios,

 

Dos teus lábios,

Que às vezes, de quase todas as vezes,

Roubo os beijos,

Todos os beijos que de tantas vezes…

Em todas as vezes,

Desenham em mim…

Escrevem em mim…

O pôr-do-sol,

 

Nas vezes que me sentei,

Nesta pedra de silêncio…

Desta pedra onde chorei;

Às vezes, são as palavras que não acordam,

Dormem profundamente no silêncio de uma flor,

Quando das tuas mãos, meu amor,

Das tuas mãos em delírio…

Regressam a mim as estrelas.

 

 

 

 

Alijó, 03/02/2023

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Sonho amar

 Se eu pudesse,

Desenhava o sol no teu olhar

Quando a manhã fria e submersa na minha mão

Corre calçada abaixo em direcção ao mar,

Se eu pudesse,

Poisava o luar nos teus seios prateados

Que durante a noite procuram os meus lábios…

Meus lábios… amordaçados,

 

Se eu pudesse,

Escrevia no teu corpo invisível das nocturnas noites em desejo,

Quando da janela do teu olhar

Regressam a mim as Primaveras em flor,

E num silêncio beijo

Erguia do chão as lágrimas de chorar,

E todas as palavras semeadas no teu púbis amanhecer,

 

Se eu pudesse,

Cantar, escrever, sonhar… ou voar na tua boca,

O sol que te vou dar,

O luar que em ti vou poisar,

Se eu pudesse adormecer,

Apenas…

Enquanto as sílabas estonteantes

Brincam nesta pequena folha em papel amarrotado…

 

Ai se eu pudesse…

Colher todas as flores deste jardim

E libertar todos os pássaros aprisionados,

Abraçar-te,

E por fim,

Pincelar o teu corpo com os poemas da madrugada,

 

Se eu pudesse, enfim…

Tudo o que desejo,

Tudo…

Sem mais nada,

 

Do sonho, acordava…

E tudo o que eu queria,

Que eu sonhava…

Já o faço,

Faço-o a cada dia.

 

 

 

Alijó, 02/02/2023

Francisco