sábado, 1 de dezembro de 2012

Acrílicos voos do fatídico inverno

Saboreava-te percebendo que na rua sofrimentos e cansaços emergiam da literatura que sentados na esplanada em frente ao rio, ele, pegava na tua mão, silenciava os teus gemidos, e

- viste as minhas calças amor?

e percebia-se que lentamente como se o vento fosse uma lâmpada incandescente, covarde, lenta, e percebia-se que os outros miúdos de mãos na algibeira esperavam pelas quatro badaladas amorfas do relógio de água, Não, Não via as tuas calças e nem saudades tenho delas, às vezes, entra no quarto disfarçado de cadáver, cruza as mãos e poisa-as no peito dissecado sobre o mármore frio e longínquo dos barcos de papel que o novo inquilino trouxe do outro lado do rio, levantas as mãos até construíres um cordão de pedras preciosas à volta do meu pescoço, e novamente a tua voz de malmequer abandonado no jardim da saudade

- viste as minhas calças meu amor?

chaleiro, filho da puta, agora já sou o amor dele, Meu amor, Meu querido, grande cabrão este, da saudade até chegar ao Chiado, as ruas desertas, nuas, abruptas dentro dos lençóis levantes que as madrugadas de Belém deixavam na insónia entre espelhos e sofrimentos e cansaços emergiam da literatura que sentados na esplanada em frente ao rio, e não, Não vi as tuas calças nem desejos beijos às janelas sobre a cidade verde e ténue de cinza quando os orgasmos nocturnos subiam a Calçada da Ajuda, à direita olhava-a cambaleada nos paralelepípedo de cintilações que os corpos transeuntes questionavam nos folhetos de apresentação para o sarau onde sílabas e pedacinhos de peixe frito mergulhavam na geada poeirenta que em Trás-os-Montes se alicerça nos ombros dos vultos gaguejares com plumas de avestruz sobre o susto que a noite provoca no amor,

- sabes o que é o mar, guardião das minhas calças? Nele percebia-se a ausência melancólica das andorinhas e dos grunhidos fósforos semeados nas planícies húmidas do Tejo quando pescava mãos com os lábios cor de veludo, e ouvia-os em cada suicídio imprimido no pavimento circular do ciúme,

saboreava-te percebendo que na rua sofrimentos e cansaços emergiam da literatura que sentados na esplanada em frente ao rio, ele, pegava na tua mão, silenciava os teus gemidos, e

- viste as minhas calças amor? E quando o desassossego aparecia e silenciava os teus gemidos questionados pelos transeuntes amorfos do espelho da morte, ouvia-te chamares-me de dentro dos livros que eu deixava esquecidos sobre a mesa-de-cabeceira, e nunca tive coragem de pegar em ti, e possivelmente as tuas calças fazem parte dos cortinados inventados por ele, quando o rio se sentava no colo emagrecido do fim de tarde, vodka em cada suicídio imprimido no pavimento circular do ciúme

e percebia-se que ontem te ausentaste de mim como fazem as gaivotas depois do pôr-do-sol, sobe em ti a maré nocturna das palavras, lá fora uma lâmpada incandescente, covarde, lenta, e percebia-se que os outros miúdos de mãos na algibeira esperavam pelas quatro badaladas amorfas do relógio de água, Não, Não via as tuas calças e nem saudades tenho delas,

- há em mim o cheiro intenso a cadáver,

sem perceber que o ciúme telegráfico da tua língua brinca docemente nas asas do vento, e a cidade adormece nos teus olhos de milhafre esquecido nas nuvens fictícias das palavras inventadas nas tuas calças,
desejarei o amor ilimitado dos plátanos magoados pela noite teus abraços em pedaços de aço inoxidável pigmentado com acrílicos voos do fatídico inverno, e um dia desenharei o amor dentro de quatro paredes de vidro,

- viste as minhas calças meu amor?

experimenta na biblioteca, na prateleira do Lobo Antunes ou do AL Berto.


(texto de ficção não revisto)

Caravelas


Regressam as caravelas aos teus lábios cidade adormecida
na madrugada fundeada nas amarras do silêncio
há nas tuas poucas palavras
palavras
encantos
que fazem sorrir as caravelas,

regressam a ti de longe as minhas mãos guiadas pelo vento
dos suspiros que fingem espelhos de ternura
há nas tuas palavras
palavras
dor
amargura.

(poema não revisto)

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

morte inventada de ti em pedacinhos de amêndoa


a minha morte inventa-se dos papeis emagrecidos da poesia não escrita
a fogueira alimenta-se indecisamente como se eu fosse uma árvore
uma simples palavra
ou uma erva daninha
que brinca no recreio da escola,

metes-me medo
quando apareces no espelho do tecto da insónia
oiço-te chamares-me gritando para as flores verdes
e castanhas
e não esquecendo as cinzentas que colocaram sobre o meu peito,

e eu não vou
nunca irei
a minha morte entre três pedacinhos de vidro
obrigam-te a desceres as tuas lágrimas
e nunca mais gritarás o meu nome,

e dos teus olhos de purpura manhã engasgada no oceano
renascerá a voz melódica do uivo circular em medos negros
castanhos
as raízes do teu coração
vagueando na areia desgovernada da solidão.

(poema não revisto)

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

os barcos de esferovite

a velha máquina de escrever sussurrava sílabas contra os vidros indefesos da janela com vista para o jardim, nua, a candeia zarolha e com um dos bracinhos engessados devido à estrondosa queda sobre o soalho sem tempo para escrever os ais e os uis no tecto da cozinha, nua, a candeia zarolha que comia as sílabas vomitadas pela velha máquina de escrever, comunista, ela, a máquina, fabricada na ex-URSS com a impressão a quente das inicias CCCP, das poucas caricias ouviam-se na lareira os estilhaços doentios do meu pai

- tem cuidado que as gajas

embriagado, sempre dentro do taparuer metálico onde escondia os cigarros e o álcool e em pequenas porções de saliva misturava na mão trémula pedacinhos de areia branca, snifava o açúcar desperdiçado nas chávenas do café e do chá e dizia que o excesso de açúcar

- tem cuidado com as gajas porque o excesso de açúcar provoca a diabetes e tem de ser snifado, se o engoles juntamente com o café ou com o leite, tem cuidado, com as gajas em voos sobre as oliveiras entre sombras e prostitutas do passeio com ardósias encarnadas e bâton labial, estavas linda,

hoje ouvi dizer que ia ser proibido ser louco, e que os loucos semeados nas jangadas de deus, iam deixar de serem loucos, por Decreto-Lei termine-se a loucura e a pobreza, felizmente pertenço aos dois e passarei a ser livre, Ouvia-o murmurar no quarto agarrado à porta do guarda-fato,

- está bem pai?
respondia-me que sim Na boa, mais feliz não posso, mas olha, tem cuidado com as gajas nascidas em Janeiro, as pessoas olham-te como se fosses um monstro porque és meu filho, pertences-me, tal como eu pertenço-lhes, nasci louco, irei morrer louco, e é tão lindo o mar quando desce do tecto, quando juntamente com a candeia zarolha me vêm visitar, dou-lhes um simplificado beijo cambaleado em palavras de merda, hoje não me apetece ver-te, hoje não me apetece falar-te, e no entanto, e no entanto gosto muito de ti,

e claro nada bem, não estava e nunca esteve bem, via-se quando se pegava na fotografia tirada momentos antes de começar a envelhecer, o cabelo fervilhava no cacimbo em camisola de alças e das barbas pergaminhos suores da chuva miudinha quando se ausentavam as gaivotas dos mastros moribundos, aos poucos começou a tropeçar na sombra das mangueiras, raramente sonhava, gritava pelo meu nome sem perceber que eu já não vivia ali, eu uma múmia enrolada nas páginas de uma lista telefónica, aproveitava para telefonar à Arminda, folheava a lista, nada, perdia-me completamente nas sombras das malditas mangueiras, tal como ele, desisti

- tem cuidado com as gajas porque o excesso de açúcar provoca a diabetes,

desisti de deambular pela cidade embrulhado em paginas de uma lista telefónica, folheava, folheava, e quando chegava ao ARM saltava para o BR, faltavam-me páginas, sempre, nunca percebi a ausências de algumas páginas que durante a minha vida desapareceram, umas em Angola, outras, outras em Lisboa, e outras..., entre parêntesis do vento loiro que às vezes beijava loucamente a candeia zarolha,

- nascidas em Janeiro, os destroços do mármores que alguns constroem sobre a sepultura da alegria, cuidado com elas, as gajas nascidas em Janeiro e com flores esdrúxulas na lapela, cuidado com as gajas com o coração de xisto e pedaços de socalco nos seios, Está bem pai?, e não estava, e nunca esteve desde que ouvia-o murmurar no quarto agarrado à porta do guarda-fato, olhava-se no espelho e do outro lado um palhaço com uma cabeça de xisto, e cuidado com as gajas, com elas, e pedaços de socalco nos seios, amanhece, é dia, a candeia transparente habita sobriamente no soalho da casa louca habitada por loucos, e por Decreto-Lei acabe-se com a loucura e com a pobreza, e serei livre como os pássaros que brincam nos plátanos das traseiras, as janelas sem grades, o almoço despido de drágeas, menino Francisco a mãozinha, coitado de mim, ausente, perdido entre páginas de uma lista telefónica, abro a mãozinha e o velho com a barba mergulhada no suor do capim grita-me FRANCISCO POR DESCRETO-LEI FOI BANIDA A LOUCURA E A PROBREZA, não acredito, é impossível, é verdade rapaz, e claro que não era verdade porque à minha volta existiam grades de finíssimos fios de luz, cambaleados os medos desenhados pela tua mão enquanto beijavas a candeia zarolha,

tão longe a tua mão de velho marinheiro sentado no cais imaginário dos barcos de esferovite, éramos novos, crianças, e era a primeira vez que víamos um barco com motor, e às voltas no tanque onde as mulheres passavam as tardes a pentear a roupa suja da semana, metias a mão na algibeira, tiravas duas pilhas, colocavas-as na parte traseira e ele desaparecia na neblina do sabão esbranquiçado que a pobreza construía nas tardes de Inverno, e ele

- tem cuidado que as gajas,

em círculos de revolta em revolta até pegares nele, retirares-lhe as duas pilhas e ele adormecia enquanto tu ias docemente encontrares-te com a candeia zarolha com os bracinhos engessados, nos lábios o bâton silábico das manhãs de ausência, cambaleados todos os desejos da infância, ao teu lado, o meu pai

- tem cuidado com as gajas nascidas em Janeiro,

porquê pai pergaminho rasurado embebido em fotografias completamente abandonadas no alpendre de madeira mutilada pelas balas transparentes da húmida vila transmontana, e sabia que a minha mãe

- a brincar às escondidas com uma criança que eu nunca conheci,

endoideceram as acácias e as amoreiras e todas as mangueiras que os meus olhos viram durante as tardes, porquê pai?

- FRANCISCO POR DESCRETO-LEI FOI BANIDA A LOUCURA E A PROBREZA,

e nunca mais voltamos a brincar com os barcos de esferovite.

(texto de ficção não revisto)

Livremente eu em voos telegráficos aos teus braços


Verdes olhos que o espelho da noite constrói
os meus
nas cinzentas fitas de mel
sobre as árvores cansadas e teus
braços o fogo destrói
as finíssimas estrelas de papel

malvadas distâncias entre as duas margens encalhadas no vento
não pontes nem barcos nem as palavras badaladas
debaixo do céu
não me oiças quando descem as madrugadas
e as janelas mergulham no salgado sofrimento
da leitura Cartas Ao Léu (Luiz Pacheco)

verdes olhos que o espelho da noite constrói
no momento vácuo dos versos a dois
em teu corpo desenho a manhã penhorada
pois
que nas pedras a dor se mói
e o mar se esconde na tua boca doirada...

(poema não revisto)

8 milímetros de tédio entre quatro paredes de vidro


A cena passa-se dentro de um carro
uma avenida despida
duas miúdas giras
e um charro
o charro come o carro
e sem roupa
a avenida
finge orgasmos no rosto das miúdas giras
eu estou sentado
na pastelaria
à janela
à deriva
espero espero e espero
e ela não vem
e ela sentada invisível na minha mesa
choram choram choram as luzes cansadas do silêncio meu destino
as duas miúdas giras
e um charro
dentro de um carro
à deriva na avenida
sem roupa
despida
que puta a minha vida
sem carro
sem miúdas giras
que fingem orgasmos no rosto do charro
que puta
a minha
que puta de vida esta de estar sentado na pastelaria
abandonado
nos cornos da avenida...
nua
tua
perdidamente despida
a avenida Sá Carneiro.

(poema não revisto)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Longínquas sombras amnésias que constroem a cidade


Gostavas de regressar das longínquas sombras
amnésias que constroem a cidade
dentro da cidade invisível do sono
e chegavas tardíssimo às pálpebras húmidas do sorriso de uma rosa
e chegavas
aos meus braços eternos do amanhecer doirado tua língua de silêncios,

acendias timidamente o candeeiro das palavras de ontem
como se eu fosse um dos teus livros parvos
insignificantes
abandonados
sobre uma mesa de cartão deixada nas traseiras da casa sem janelas
e nunca te ouvi um gemido,

e nunca prenunciaste um lamento
nas ardósias da insónia
gostavas de regressar das longínquas sombras
amnésias que constroem a cidade
e a cidade meu amor é toda nossa
e vive dentro da algibeira dos sonhos,

e chegavas e dentro de mim poisavas os medos
e os abismos de luz que carregavas nos ombros da vida
vivias numa rua destruída hoje pelo amanhecer que as gaivotas de aço
deixam ficar no térreo pavimento da solidão
e vive dentro da algibeira dos sonhos,

e vive
gostavas de mim
insignificantes
abandonados
os olhos da claridade clandestina que a morte
tua mão em mim semeava.

(poema não revisto)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

noite melancólica

bem-vinda saborosa noite melancólica do infinito inferno silêncio da luz construída entre dois orifícios, que a fechadura nocturna da mini-saia depravada voz inventa nas flores e limita limitadamente as palavras murmuradas, os cereais e o leite com chocolate, bem-vinda saborosa noite, internada num livro apavorado no medo clandestino das janelas suspensas no lençol equilátero semeado na ardósia de papel às árvores aventuras de uma esplanada em ruínas, procuras

- os fósforos, filtros, mortalhas, coisas poucas e comuns que procuro na algibeira e dou voltas circulares dentro da cidade, tenho vómitos, talvez excesso de palavras, talvez excesso de cachimbos vazios, sozinhos, cansados de mim para mim, ao cair a noite nas traseiras da semana tristemente cansada dos suspiros madrugadores que o palhaço e a trapezista desenham debaixo da tenda do circo invisível, os holofotes de tinta nos pedaços de aço que sobejam na calçada das abelhas singelas migalhas de desejo, ouvem-se triângulos de sombras nas paredes das patogénicos meninos de porcelana, bem-vinda, madrugada sem destino, descuradamente feliz nas mãos do Outono, ela dizia-se senhora dona da rua das flores e largo das eiras campestres dos dias passados à lareira, dizias-me, dizias-me, sussurravas-me

não venhas tarde, e

- e eu, perdia-me semanas a fio até desaguar no cais das âncora de papel e chocolates em amêndoa que a pastelaria azul servia nos intervalos da poesia nojenta que eu, e eu, eu escrevia amedrontado que as minhas palavras mergulhassem na ferrugem dos barcos apaixonados, e eu, eu ficaria também apaixonado loucamente perdido em ti, em ti às vezes eu sobejo os fios de sémen estupidecidos num qualquer banco do jardim, não me sento em ti, não me abraço a ti

porquê eu?

- abraçado a ti, e dentro de ti vive um poço infindável de luz com cerejas e mel, porquê eu, não me abraço a ti acreditando que na ardósia de papel existem números complexos, matrizes, equações diferenciais, porquê eu vestido com cetim e fitas encarnadas no cabelo loiro indesejado pelos homens dos desertos bares da escuridão,

de que tens medo Perguntas-me todas as alvoradas quando regressas com os cereais e o leite com chocolate, olho pela janela a verdadeira vida vivida vivendo eu nas tuas mãos de manhã ensonada, os sexos orgulhosamente felizes, também eles, nós, os sonhos

- porquê os sonhos?

se amanhã é sábado, e os rios estão encerrados para descanso do pessoal.

(texto de ficção não revisto)

As mortas mãos da paixão


As mortas mãos da insónia
prisioneiras do meu silenciado peito
da dor
o odor suspeito
de uma flor em decomposição,

As mortas mãos
coitadas em esqueletos coração
da flor
o amor
que o desejo tece no tecto da paixão.

(poema não revisto)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Só cinco minutos

Tínhamos acabado de perder todas as janelas da nossa misera casa e o meu pai cambaleando dentro dos suspensórios da tempestade murmurava

- paciência é da maneira que não vai faltar-nos o ar, e a ventilação funcionará perfeitamente sem o constante medo da lareira acesa, da porcaria da braseira, assim, assim não nos faltará o ar,

murmuradas as listras do avental, a pobre mulher estritamente ausente na minha presença a quem eu chamava de mãe, chegava-se a mim, colocava um dos braços na minha cintura e perguntava-me Então filho como vão as coisas? Quais coisas nunca eu percebi a que se referia ela, mas respondia-lhe que mal, as coisas, as suas coisas, as coisas vão muito mal, E como mal?, Mal, Mal, Tudo vai mal, até as janelas acabamos de perder com o maldito vento, e às vezes, e às vezes ainda tenho coragem de fazer poemas ao vento,

- puta que o pariu

cambaleando nos alforges malignos do intestino grosso, a cidade corria dentro da algibeira e quando chovia, uma fina película de incenso aparecia junto ao soalho, ajoelhava-se e eu pacientemente esperava que ela terminasse de rezar o terço, Questionar-me porquê? Nunca tive coragem de lhe dizer o que pensava sobre isso, Isso o quê? Nada meu filho, coisas, coisas minhas, Amo-te sabias, Sim mãe, sei sempre soube, cambaleando dentro dos suspensórios da tempestade murmuradas as páginas perdidas que fui escrevendo quando dentro de minha casa era noite, porque nem todos os dias era noite dentro de casa, umas vezes

- paciência é da maneira que não vai faltar-nos o ar, e a ventilação funcionará perfeitamente sem o constante medo da lareira acesa, da porcaria da braseira, assim, assim não nos faltará o ar, puta que o pariu,

umas vezes era noite dentro de casa e lá fora estava sol, lembrava-me de Carvalhais quando me deitava sobre as lajes maciças da preguiça e olhava o sol radiante, outras vezes, dentro de casa brincava o mar e a maré de Março, cresciam as flores, sorriam os pássaros acabados de acordar, e chovia torrencialmente e na rua, chovia torrencialmente na rua, e os candeeiros de néon aprisionados ao cais de engate, ficava confuso, muitas vezes, era noite dentro de casa, e ou devia estar com atenção ao jorro urinário no mictório ou a guardar os olhos do vizinho do lado, Belém era assim, estranha, bela, com um rio deslumbrante que só voltei a encontrar dentro de casa quando comecei a folhear as fotografias da infância, havia barcos com pernas de marfim e olhos de diamante, e eu pensava ser a criança mais rica do universo, afinal sem janelas a misera casa, docemente me abraçava e ao ouvido sussurrava-me Amo-te meu filho, e eu, e eu sei que sim,

que as coisas iam de mal a pior, o vento não cessava, as árvores todos os dias tombavam sobre nós, nós refiro-me a mim e aos meus três irmãos, dois rapazes e uma rapariga e um que era rapaz e rapariga ao mesmo tempo, começou a chamar-me de mestre e quando lhe ensinei as primeiras letras escrevia nas paredes do quarto, desenhava, desenhava muito, e eu sentia-me triste porque não percebia as suas palavras nem os seus desenhos, olhava-o, e ele era tão frágil, débil, tão..., tão lindo queixava-se a minha mãe a chorar quando adormeceu em pé com ele ao colo e só acordou quando o miúdo/miúda devido às leis da gravidade... pum, pavimento, tão duro o gajo, paciência é da maneira que não vai faltar-nos o ar,

- assim, assim não nos faltará o ar, puta que o pariu

eras loiro,

- os gajos e as gajas com alicerces de silêncio nos lábios,

eras loiro das minhas mãos verdejantes quando lacrimejava o teu rosto de papel vegetal, a chuva espessamente dentro de um cubo de vidro, tu ausente de mim, dentro de mim, aos poemas imaginados pelos penhascos vadios da dor, amava-te e aprendi que os poemas são rosas com muitas cores, amava-te e aprendi que os poemas são rosas vestidas de noite, quando dentro de casa, sem janelas, as lâminas das estrelas caiem sobre os timbres morfológicos do medo, o medo eterno de perder-te e de nunca mais encontrar a tua cidade dos sonhos, a cidade onde passeávamos antes de se despir a madrugada

- os gajos e as gajas com alicerces de silêncio nos lábios, havia uivos, havia literatura em todas as paragens do autocarro, lambia-te docemente as mãos de seda com que me tocavas quando líamos qualquer coisa de AL Berto, e no entanto, e outras vezes apenas ficávamos a contemplar a noite que só existia dentro de casa, a noite da casa que vivia na cidade dos sonhos,

acordava tarde, só cinco minutos, e os amantes nocturnos viajavam rio adentro até desaparecerem na neblina, a cidade onde passeávamos antes de se despir a madrugada, cerrava os olhos e tínhamos acabado de perder todas as janelas da nossa misera casa.

(texto de ficção não revisto)

Juro, Juro que eu trocava.


Trocava as minhas asas
pelos teus lábios
doce madrugada
trocava o silêncio do mar
quando a chuva em gotinhas de amanhecer
poisa nos jardins do prazer,

juro,
juro que eu tocava,

trocava a doce madrugada
às minhas asas
proibia-me de voar
proibia-me de sonhar
só para te ver sorrir
sem sofrer,

juro,
juro que eu tocava,

a doce madrugada
trocava as minhas asas
com o vento que acorda na janela do teu amor
a doce maré em sílabas de amar
eu trocava
as minhas asas com o mar,

juro,
juro que eu tocava...

(poema não revisto)

Blogue Cachimbo de Água em destaque – Sapo Angola


domingo, 25 de novembro de 2012

O bisturi entre os gemidos da alvorada

Parecias-me cansado e raramente entraste no quarto escuro, não chovia, dormitava às vezes, e ouvia através das fendas das paredes caquécticas os uivos do mar, raramente entraste no quarto escuro e encostavas a cabecinha loira no ouvido de gesso e ao longe ouvia-se o mar a descer as escadas da noite, pensava em ri, raramente me vinhas visitar, frágil o meu corpo retalhado e ausentado das manhãs chuvosas de Outubro, raramente, oiço-te em sombras tracejadas e caminhavas no passeio junto à paragem do autocarro, queria tocar-te e tu escondias-te dentro de um silêncio de luz, não, juro que não me importo, nunca, me importei ou importarei com o teu corpo retalhado pelo bisturi entre os gemidos da alvorada,

- o teu corpo meus deus, o que fizeram ao meu corpo flor dissimilada que o rio transporta para longe, para longe onde fica o cais de desembarque, e todos os destinos regressam da viagem, é terça-feira e reconheço que hoje, hoje esperava um abraço teu, hoje apetece-me mostraste as costuras do bisturi entre os gemidos da alvorada, e hoje, hoje percebi que perdi o medo do meu corpo, que é teu, nosso, como se um poema esteja a crescer nas minhas coxas húmidas que os sons nocturnos desenham nos candeeiros semeados na seara do medo, perdi o medo, e hoje, hoje tua, eternamente tua

parecias-me cansado

- posso tocar-te?

a cabecinha loira no ouvido de gesso e ao longe ouvia-se o mar a descer as escadas da noite, pensava em ri, com a tesoura da costura recortava as estrelas de papel e colava-as no tecto da saudade, olhava incessantemente a janela, desenhava-te nos vidros opacos e sujos do hospital, inventava beijos e carícias, e tu não deixavas que me aproximasse dos loiros ouvidos de gesso onde se percebia os gemidos do mar, ao longe, inquietantemente do outro lado do túnel de luz, os barcos em pequenos orvalhos transportavam as dores que entravam no meu corpo e raramente, raramente entraste no quarto escuro, não chovia, dormitava às vezes, e ouvia através das fendas das paredes caquécticas os uivos do mar,parecias-me cansado,

- posso tocar-te? E nunca percebi o teu mau humor, e eu, eu não percebia que cada pedacinho do corpo de uma mulher tem significado, existe, e não percebia o teu medo, repulsa, ausência, o medo que nunca existiu em mim, posso tocar-te? Não, e escondias-te dentro do guarda-fato e eu ficava a imaginar os teus lábios no sofrimento das madrugadas sem dormir, trocava o sono pela insónia, revolta-me comigo, contigo, com deus, com o caralho que me foda..., porquê tu? E não percebia, não percebo, olho-te e oiço-te, e nunca percebi o bisturi entre os gemidos da alvorada,

frágil, cuidado, não inverter, os lençóis enganchavam-se nos orgasmos das avenidas que terminavam no rio, fumava, adormecia sonhando sentir-te sentada sobre os meus joelhos de vidro, pensava para que me serve um cachimbo de água se eu deixei de fumar, Posso tocar-te?

- às vezes,

e tinhas medo das minhas mãos, o teu corpo meus deus, o que fizeram ao meu corpo flor dissimilada que o rio transporta para longe, para longe onde fica o cais de desembarque, e todos os destinos regressam da viagem, é terça-feira e reconheço que hoje

- às vezes,

que hoje percebo os teus medos, e que hoje, às vezes, os barcos sentados no estuário das garrafas de vodka mergulhadas em qualquer rua em Cais do Sodré, o teu silêncio, desaparecias e via-te nas paredes invisíveis do meu medo, perder-te, não tocar-te sabendo eu que não era importante tocar-te, para mim não, talvez o fosse para ti, e sabes, sou simples, humilde, também frágil, e às vezes, preciso de ver os barcos a regressarem do longínquo que só tu percebes, parecias-me tão cansada, moribunda, e construías sorrisos nas lágrimas doces das abelhas em flor,

- e às vezes, às vezes acreditei que nunca me ias tocar, perdi o medo, tocaste-me, e como é bom ser tocada pela tua finíssima pele de Outono, hoje, ontem, não chove, talvez amanhã, mas hoje sei que nunca tiveste medo do meu corpo...

Sei que sim.

(texto não revisto)