Parecias-me cansado e
raramente entraste no quarto escuro, não chovia, dormitava às
vezes, e ouvia através das fendas das paredes caquécticas os uivos
do mar, raramente entraste no quarto escuro e encostavas a cabecinha
loira no ouvido de gesso e ao longe ouvia-se o mar a descer as
escadas da noite, pensava em ri, raramente me vinhas visitar, frágil
o meu corpo retalhado e ausentado das manhãs chuvosas de Outubro,
raramente, oiço-te em sombras tracejadas e caminhavas no passeio
junto à paragem do autocarro, queria tocar-te e tu escondias-te
dentro de um silêncio de luz, não, juro que não me importo, nunca,
me importei ou importarei com o teu corpo retalhado pelo bisturi
entre os gemidos da alvorada,
- o teu corpo meus deus,
o que fizeram ao meu corpo flor dissimilada que o rio transporta para
longe, para longe onde fica o cais de desembarque, e todos os
destinos regressam da viagem, é terça-feira e reconheço que hoje,
hoje esperava um abraço teu, hoje apetece-me mostraste as costuras
do bisturi entre os gemidos da alvorada, e hoje, hoje percebi que
perdi o medo do meu corpo, que é teu, nosso, como se um poema esteja
a crescer nas minhas coxas húmidas que os sons nocturnos desenham
nos candeeiros semeados na seara do medo, perdi o medo, e hoje, hoje
tua, eternamente tua
parecias-me cansado
- posso tocar-te?
a cabecinha loira no
ouvido de gesso e ao longe ouvia-se o mar a descer as escadas da
noite, pensava em ri, com a tesoura da costura recortava as estrelas
de papel e colava-as no tecto da saudade, olhava incessantemente a
janela, desenhava-te nos vidros opacos e sujos do hospital, inventava
beijos e carícias, e tu não deixavas que me aproximasse dos loiros
ouvidos de gesso onde se percebia os gemidos do mar, ao longe,
inquietantemente do outro lado do túnel de luz, os barcos em
pequenos orvalhos transportavam as dores que entravam no meu corpo e
raramente, raramente entraste no quarto escuro, não chovia,
dormitava às vezes, e ouvia através das fendas das paredes
caquécticas os uivos do mar,parecias-me cansado,
- posso tocar-te? E nunca
percebi o teu mau humor, e eu, eu não percebia que cada pedacinho do
corpo de uma mulher tem significado, existe, e não percebia o teu
medo, repulsa, ausência, o medo que nunca existiu em mim, posso
tocar-te? Não, e escondias-te dentro do guarda-fato e eu ficava a
imaginar os teus lábios no sofrimento das madrugadas sem dormir,
trocava o sono pela insónia, revolta-me comigo, contigo, com deus,
com o caralho que me foda..., porquê tu? E não percebia, não
percebo, olho-te e oiço-te, e nunca percebi o bisturi entre os
gemidos da alvorada,
frágil, cuidado, não
inverter, os lençóis enganchavam-se nos orgasmos das avenidas que
terminavam no rio, fumava, adormecia sonhando sentir-te sentada sobre
os meus joelhos de vidro, pensava para que me serve um cachimbo de
água se eu deixei de fumar, Posso tocar-te?
- às vezes,
e tinhas medo das minhas
mãos, o teu corpo meus deus, o que fizeram ao meu corpo flor
dissimilada que o rio transporta para longe, para longe onde fica o
cais de desembarque, e todos os destinos regressam da viagem, é
terça-feira e reconheço que hoje
- às vezes,
que hoje percebo os teus
medos, e que hoje, às vezes, os barcos sentados no estuário das
garrafas de vodka mergulhadas em qualquer rua em Cais do Sodré, o
teu silêncio, desaparecias e via-te nas paredes invisíveis do meu
medo, perder-te, não tocar-te sabendo eu que não era importante
tocar-te, para mim não, talvez o fosse para ti, e sabes, sou
simples, humilde, também frágil, e às vezes, preciso de ver os
barcos a regressarem do longínquo que só tu percebes, parecias-me
tão cansada, moribunda, e construías sorrisos nas lágrimas doces
das abelhas em flor,
- e às vezes, às vezes
acreditei que nunca me ias tocar, perdi o medo, tocaste-me, e como é
bom ser tocada pela tua finíssima pele de Outono, hoje, ontem, não
chove, talvez amanhã, mas hoje sei que nunca tiveste medo do meu
corpo...
Sei que sim.
(texto não revisto)
Sem comentários:
Enviar um comentário