Tínhamos acabado de
perder todas as janelas da nossa misera casa e o meu pai cambaleando
dentro dos suspensórios da tempestade murmurava
- paciência é da
maneira que não vai faltar-nos o ar, e a ventilação funcionará
perfeitamente sem o constante medo da lareira acesa, da porcaria da
braseira, assim, assim não nos faltará o ar,
murmuradas as listras do
avental, a pobre mulher estritamente ausente na minha presença a
quem eu chamava de mãe, chegava-se a mim, colocava um dos braços na
minha cintura e perguntava-me Então filho como vão as coisas? Quais
coisas nunca eu percebi a que se referia ela, mas respondia-lhe que
mal, as coisas, as suas coisas, as coisas vão muito mal, E como
mal?, Mal, Mal, Tudo vai mal, até as janelas acabamos de perder com
o maldito vento, e às vezes, e às vezes ainda tenho coragem de
fazer poemas ao vento,
- puta que o pariu
cambaleando nos alforges
malignos do intestino grosso, a cidade corria dentro da algibeira e
quando chovia, uma fina película de incenso aparecia junto ao
soalho, ajoelhava-se e eu pacientemente esperava que ela terminasse
de rezar o terço, Questionar-me porquê? Nunca tive coragem de lhe
dizer o que pensava sobre isso, Isso o quê? Nada meu filho, coisas,
coisas minhas, Amo-te sabias, Sim mãe, sei sempre soube, cambaleando
dentro dos suspensórios da tempestade murmuradas as páginas
perdidas que fui escrevendo quando dentro de minha casa era noite,
porque nem todos os dias era noite dentro de casa, umas vezes
- paciência é da
maneira que não vai faltar-nos o ar, e a ventilação funcionará
perfeitamente sem o constante medo da lareira acesa, da porcaria da
braseira, assim, assim não nos faltará o ar, puta que o pariu,
umas vezes era noite
dentro de casa e lá fora estava sol, lembrava-me de Carvalhais
quando me deitava sobre as lajes maciças da preguiça e olhava o sol
radiante, outras vezes, dentro de casa brincava o mar e a maré de
Março, cresciam as flores, sorriam os pássaros acabados de acordar,
e chovia torrencialmente e na rua, chovia torrencialmente na rua, e
os candeeiros de néon aprisionados ao cais de engate, ficava
confuso, muitas vezes, era noite dentro de casa, e ou devia estar com
atenção ao jorro urinário no mictório ou a guardar os olhos do
vizinho do lado, Belém era assim, estranha, bela, com um rio
deslumbrante que só voltei a encontrar dentro de casa quando comecei
a folhear as fotografias da infância, havia barcos com pernas de
marfim e olhos de diamante, e eu pensava ser a criança mais rica do
universo, afinal sem janelas a misera casa, docemente me abraçava e
ao ouvido sussurrava-me Amo-te meu filho, e eu, e eu sei que sim,
que as coisas iam de mal
a pior, o vento não cessava, as árvores todos os dias tombavam
sobre nós, nós refiro-me a mim e aos meus três irmãos, dois
rapazes e uma rapariga e um que era rapaz e rapariga ao mesmo tempo,
começou a chamar-me de mestre e quando lhe ensinei as primeiras
letras escrevia nas paredes do quarto, desenhava, desenhava muito, e
eu sentia-me triste porque não percebia as suas palavras nem os seus
desenhos, olhava-o, e ele era tão frágil, débil, tão..., tão
lindo queixava-se a minha mãe a chorar quando adormeceu em pé com
ele ao colo e só acordou quando o miúdo/miúda devido às leis da
gravidade... pum, pavimento, tão duro o gajo, paciência é da
maneira que não vai faltar-nos o ar,
- assim, assim não nos
faltará o ar, puta que o pariu
eras loiro,
- os gajos e as gajas com
alicerces de silêncio nos lábios,
eras loiro das minhas
mãos verdejantes quando lacrimejava o teu rosto de papel vegetal, a
chuva espessamente dentro de um cubo de vidro, tu ausente de mim,
dentro de mim, aos poemas imaginados pelos penhascos vadios da dor,
amava-te e aprendi que os poemas são rosas com muitas cores,
amava-te e aprendi que os poemas são rosas vestidas de noite, quando
dentro de casa, sem janelas, as lâminas das estrelas caiem sobre os
timbres morfológicos do medo, o medo eterno de perder-te e de nunca
mais encontrar a tua cidade dos sonhos, a cidade onde passeávamos
antes de se despir a madrugada
- os gajos e as gajas com
alicerces de silêncio nos lábios, havia uivos, havia literatura em
todas as paragens do autocarro, lambia-te docemente as mãos de seda
com que me tocavas quando líamos qualquer coisa de AL Berto, e no
entanto, e outras vezes apenas ficávamos a contemplar a noite que só
existia dentro de casa, a noite da casa que vivia na cidade dos
sonhos,
acordava tarde, só cinco
minutos, e os amantes nocturnos viajavam rio adentro até
desaparecerem na neblina, a cidade onde passeávamos antes de se
despir a madrugada, cerrava os olhos e tínhamos acabado de perder
todas as janelas da nossa misera casa.
(texto de ficção não
revisto)
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