sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Me grita, chora… a cada palavra sussurrada pelo teu olhar


Esta caneta de marfim

Que treme a minha mão,

Infinita na rasurada folha de papel,

Ela, absorve-me,

Como se eu fosse um filho obediente,

Capaz de rasgar todas as palavras escritas,

Esta caneta de marfim

Que às vezes dorme na minha mão,

E sonha na minha mão…

Esta caneta de marfim…

Cansada da minha mão,

Dor mar,

Do luar

E das estrelas,

Também eu me sinto cansado desta caneta de marfim

Que treme a minha mão,

Me grita,

Chora…

A cada palavra sussurrada pelo teu olhar,

A cada palavra assassinada pelos teus lábios,

Esta caneta,

Morre a cada final de página…

 

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 5 de Fevereiro de 2016

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

A fuga


Deixei de sentir as minhas palavras no teu corpo,

Fixei as tuas lágrimas no lençol de espuma

Que cobria o teu olhar,

Cruzei os braços,

Puxei de um cigarro… e disse-te adeus…

 

Como se nunca mais te visse!

 

Ausentei-me dos teus horrores,

Alimentei-me da solidão que proliferava nas tuas mãos,

Cerrei os olhos…

Esqueci que tenho um esqueleto,

Que sou humano como tu…

 

Da sombra embriagada do silêncio à medula espinhal do desejo…

 

Fui!

Fomos!

 

E nunca mais te vi neste jardim de aromas artificiais

Que habita este esconderijo de porcelana…

 

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 3 de Fevereiro de 2016

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Grito


Seus olhos voaram enquanto a tempestade se alimentava do vento,

A ténue Primavera não acordou, hoje, nem acordará tão brevemente,

O silêncio pertence à noite,

O desejo pertence-lhe, só a ela, ele… embainhado nas palavras…

Sofrendo como sofrem todos os poemas depois de lidos,

Seus olhos voaram…

E o vento no estômago da tempestade,

Gritava

E desenhava estrelas no luar,

E gritava,

Sem perceber porque dormiam os pássaros

Na janela encerrada…

 

Quando o mar,

Também ele, berrava,

 

E seus olhos voaram…

E seus olhos transformaram-se em luz divina,

 

Que nenhum homem consegue abraçar.

 

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 2 de Fevereiro de 2016

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Outros já tinham partido para outros destinos, e a porta de entrada ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela parte de dentro era unido por dois pregos, também eles, velhos, também eles, caducos, também…


Havia uma lanterna que basicamente nos servia para...

Afugentar as mentiras, minhas?

Sim, embriago o Artur encostado ao balcão de mármores com um livro em granito onde algumas palavras brincavam às escondidas,

“Aqui Jaz Artur Prior”, e nada mais do que isso,

Mentiras que eu entendo, que eu descubro e fico calado, cabisbaixo, envenenado pelas árvores com as pequenas folhas comestíveis, e bebíamos, e fazíamos como se de dois corpos suspensos na madrugada se tratasse, e não o éramos, porque há muito que deixamos de ser corpos, hoje somos caules brincalhões, balões de naftalina,

Porquê, Artur?

Não sei, sei... meu querido...

Porquê, quê?

Sabíamo-lo,

E não fizemos nada para terminar o sofrimento dele,

Havia uma lanterna que basicamente nos servia para...

Afugentar as mentiras, minhas? E devíamos estar loucos, tu, e eu, porque de nada havia para ancorar ao porto de embarque, perdi a âncora, abandonei as cordas de nylon, e travesti-me de petroleiro desgovernado, só, felizmente...

Só?

As gélidas escadas de sal dormiam abraçadas aos suspiros da fonte da Gricha e eu achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos que passava à janela a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos esquisitos, os vultos de pedra, simples moças a entrarem em casa de madrugada, congelados os tentáculos de cobre que reluziam e brilhavam debaixo das estrelas de cetim, a nossa casa não tinha vidros, alguns estavam vivos, outros, outros já tinham partido para outros destinos, e a porta de entrada ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela parte de dentro era unido por dois pregos, também eles, velhos

Eu

Eu achava normal os vidros das janelas estarem estilhaçados, alguns estavam vivos, outros, outros já tinham partido para outros destinos, outros já tinham fugido para outras direcções, como quem entra na cidade e perante a placa com a inscrição “outras direcções” ele fica sem saber como chegar ao segundo andar porque as velhas, porque as escadas em madeira terminaram a validade, rangem, têm cãibras nas pernas suspensas nos pinos de aço como o reumatismo felizardo que cintilavam nas paredes de gesso com rugas de vidro, pinos de aço, ele fica sem saber o que fazer

Eu também,

Outros já tinham partido para outros destinos, e a porta de entrada ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela parte de dentro era unido por dois pregos, também eles, velhos, também eles, caducos, também

Não tínhamos água e só, eu só, e só da velha Gricha jorrava a glicerina fresca com o diabo no rabo ao ditado corrigido pela senhora professora com a bata branca e a menina dos três olhinhos poisada na secretária, olhava-nos, sorria-nos, gostava de nós a gaja

Também eu,

Também eu gostava da gaja que subia a calçada de madrugada, e juro, não era senhora casada nem a menina dos três olhinhos, mas tinha um corpo esculpido num pedaço de granito que eu tentei copiar e desenhar na parede da sala, não, na parede do quarto, não, na parede da cozinha, não

Só tínhamos um compartimento amplo, enorme, com bolinhas coloridos ao bolor que descaiam do tecto como se fossem dois mamilos acabados de nascer, e balões, e serpentinas, e perguntavam-me

Vivem num circo? Respondia-lhes que não, Não vivo num circo, mas a nossa vida é um espectáculo colorido, tínhamos uma casa com muitas janelas e poucos vidros, tínhamos uma sanita velhíssima que quase sempre estava com gripe e tínhamos que a levar às urgências do hospital, no tempo que ainda havia

Hospital?

Não sei se amanhã, cedo, recordarei os teus olhos de hoje, amanhã, não sei, se recordarei, cedo, os lábios teus que percorreram o meu corpo invisível, como uma cortina de fogo, dentro de um copo com água, um cilindro, o cubo, não, sei talvez que não recordarei, porque não sei o significado de recordação, perdi o sentido de navegação, e hoje, como ontem, sou um pedaço de madeira desgovernada sobre os teus ombros penumbrosos e frios que o Outono provoca em ti com as canções de pequenos silêncios, sei, ou será que me esqueci? Como seriam os teus lábios, de cedro, antes de mergulharem em mim, coitado, um transeunte doente, e enfeitiçado, mal-educado, ausentado

não

Cedo, amanhã, preguiçarei como um marinheiro à procura de um corpo homem para poisar as desejosas insónias que vivem nos homens com cheiro a oceano, o sal entrava em nós, e vivíamos como dois camarotes partilhados mutuamente como duas pequenas divisões de uma casa flutuante, germinados, os nossos corpos de vapor nas asas de uma triste gaivota, o covil como nunca o tínhamos visto, não, sei se amanhã, cedo, alguma coisa em mim para recordar, mas o quê, concretamente?

nuvens? pratos com sopa mais parecendo copos com água? ou... as tuas mãos sobre mim, como uma caneta de tinta permanente, sempre e sempre e nada, ausente de ti porque eu desconhecia as cavernas que o medo provocava em nós, porque tu sentias o meu peso como simples gramas de poeira depois de o vento desaparecer entre candeeiro a petróleo e bananeiras de regresso a S. Pedro do Sul, havia muitas, nas termas, uma fonte, circular, cheirava a enxofre, borbulhavam pequenas partículas de sémen, e tu, sempre o tu, sentíamo-nos felizes como dois pássaros voando entre Carvalhais e Favarrel, e nunca vi as tuas mãos entranharem-se-lhes no tronco resinoso do pequeno pinheiro manso da tapada do meu avô, chegávamos lá, e sempre lá, ouvíamos os sussurros expeditos das vozes enlatadas do atum e da sardinha, até que me pedias para um dia

Juras que um dia me recordarás?

 

 

(Ficção)

Francisco Luís Fontinha

in “Noites de Mim”

segunda-feira, 1 de Fevereiro de 2016

domingo, 31 de janeiro de 2016

Que nunca tive um ombro para chorar…


O sofro nesta vida desesperada

Que nunca tive,

O sono velozmente

Nesta triste rua transparente,

Que sente

E sofre

Os dias clareados,

O sofro do sofrimento

Nos sonhos abandonados,

A sorte,

O desejo envenenado,

Amados

Os transeuntes invisíveis da madrugada,

E vive

E sofre

A vaidade encarcerada,

As metáforas do teu olhar

Embainhadas nos silêncios de ontem,

E hoje acordei

Desenhando o teu rosto no meu rosto,

Sofri,

Sonhei

E senti a verdade dos alicerces de prata,

A cidade enraivecida,

O vício encurralado nas avenidas

Sós

Com soníferos de lata,

O bairro de sucata,

A rua deserta

Como só tu sabes amar,

E viver,

O sofro sofrido

No “foda-se” empobrecido,

No “foda-se” libertado

Deste verso comprido,

Saboreio-me nos teus lábios,

E pinto os meus lábios de sonolência,

Revejo todas as fotos de infância…

Um magricela doentio,

Em cio,

Com palavras em chapa,

Sofro,

O sofro nesta vida desesperada

Que nunca tive,

Que nunca tive um ombro para chorar…

 

Francisco Luís Fontinha – Alijó

domingo, 31 de Janeiro de 2016

sábado, 30 de janeiro de 2016

Quando me sento na margem do Tejo e ao longe as luzes de Almada, o cigarro cresce na noite e o meu corpo parece um pedacinho de papel misturado no vento…

As escadas ingrimes levavam-me ao cubículo do segundo andar, lá dentro Matilde esperava-me, bato à porta na confusão da sombra do corredor, arrependo-me no medo de me ter enganado e por momentos deixo de ter a certeza se era o duzentos e dezasseis ou o duzentos e dezassete, a porta abre-se e o sorriso de Matilde abraça-se às frestas do gesso embebido no suor da tarde,
Da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
Crianças brincavam na ruela e mulheres discutiam porque o marido de uma dormia com o marido da outra,
O rio,
Da janela virada para a rua subiam os desejos do tejo e o cheiro a saudade alicerçava-se no tecto do cubículo,
Feio,
O rio deitado junto à esplanada de Belém e desciam gaivotas das nuvens de Outubro e subiam cansaços dos magalas invisíveis que marchavam numa parada militar invisível,
Matilde abraça-me,
E encosto a cabeça no perfume barato que adormecia no pescoço enfeitado de dálias e gladíolos, da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
O rio,
Feio,
Nas frestas que nos observavam e terminavam no espelho embaciado e que vezes sem conta e em silêncio e repetidamente folheavam junto ao rodapé as estórias de desejo do cubículo,
Um homem e uma mulher que ardem na fogueira da tarde,
Um homem e outro homem que suspiram no odor do corpo emagrecido e encharcado de gotinhas de prazer,
Uma mulher e outra mulher simplesmente deitadas, e uma o lençol da outra, beijavam-se e adormeciam sobre o nevoeiro que acordava no tejo e no final da tarde,
Da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
O rio,
Feio,
E frio,
Quando me sento na margem do Tejo e ao longe as luzes de Almada, o cigarro cresce na noite e o meu corpo parece um pedacinho de papel misturado no vento, a cama range tal como os suspiros de Matilde se enrolam no néon dos veleiros estacionados na vazante da maré e sinto-lhe os lábios de cereja adormecidos no meu pescoço, e frio, o rio,
E desciam,
Os braços dela até às minhas coxas argamassadas de estrelas,
- Amas-me?
E oiço sussurros no meu ouvido, amava-te muito se não tivesses os problemas que tens e não fosses quem és, e uma língua baloiça na minha face,
- Amava-te muito se não tivesses os problemas que tens e não fosses quem és,
E enquanto extingo o meu olhar nas luzes de Amada pergunto-me quem eu sou?
- Quem eu sou?
O rio que corre,
Frio,
Feio…
E da janela virada para a rua subiam,
E desciam,
Corpos ensanguentados no desejo do sémen,
- Amas-me?
 
Francisco Luís Fontinha
in “Amargos lábios do Poema”
sábado, 30 de Janeiro de 2016

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Na penumbra tua casa


Fontinha
 
Na penumbra tua casa
Me esqueço do viver
Me esqueço da Primavera
E dos pássaros a correr,
Na penumbra tua casa
Sinto o odor do sofrimento
Saltitando entre os cortinados da dor
E o vento,
E o amor?
Agachado junto ao mar
Esperando o regresso da maré,
Na penumbra tua casa
Sei que habitam esqueletos de papel,
Mãos de areia
E pedacinhos beijos ao luar,
Há na penumbra tua casa
O silêncio da morte
Sem sorte
Descendo a montanha do sonho,
E hoje, na penumbra tua casa,
Esconde-se uma gaivota colorida,
Engraçadinha,
Esperta
E que urge libertar,
Do medo,
Da noite
E dos telhados de colmo,
Na penumbra tua casa,
Meu amor,
Nada mais irá acordar…
 
Francisco Luís Fontinha
sexta-feira, 29 de Janeiro de 2016

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O mesclado silêncio


O mesclado silêncio do pensamento

Nas palavras proibidas,

O amor vergado no vento,

O amor dançando no jardim das esmeraldas cinzentas,

A paixão envergonhada

Nas mãos sofridas,

O mesclado silêncio voando na madrugada

Sem perceber o desejo que alimentas,

E em mim a desilusão de habitar o teu olhar,

Sofrer como sofro em cada livro perdido,

O mesclado silêncio adormecido

Nas catacumbas do luar,

E sendo assim,

As esmeraldas no meu jardim,

Sem cansaço nem avareza

Para disfrutar de tanta riqueza…

 

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 27 de Janeiro de 2016

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

E tu, pai, e tu emprestavas-me os teus livros, e eu, eu dilacerava-me com o cheiro do papel, com as letras, com as imagens, com as tuas palavras…


O inferno estava próximo, do corredor entranhava-se no meu corpo o cheiro a enxofre e a gajas nuas,

Menos tabaco nesses cigarros…, gajas no inferno?

E canteiros recheados de malmequeres, crisântemos e orquídeas selvagens, imperfeito, o vidro estilhaçava-se, ficou sem cabeça, ficou sem coração, e ficou com o medo misturado nos óbitos grãos de areia, ainda hoje acredito que um objecto depois de crucificado… permaneça o mesmo objecto, mas com formas e cheiros e desenhos…

Menos tabaco, amigo, menos tabaco,

Diferentes, tornam-se ausentes, tornam-se miúdos brincando no musseque, os charcos, o capim descendo a rabina, o miúdo do bibe acreditava na liberdade, e é tão difícil ser-se livre nesse País, tão difícil meu pai, tu sabes

Menos tabaco, menos,

Tu sabes que vivi encerrado entre quatro paredes invisíveis, tu sabes que vivi entre três janelas sem vista para o mar, mas sentia-o no meu quarto,

Lembras-te, filho? Os Domingos junto ao Porto e os barcos pareciam cancelas suspensas na madrugada, lembras-te, filho? Os Coqueiros, as gaivotas comendo os Coqueiros, e tudo apenas imagens a preto e branco do meu imaginário, porque, meu filho

Sim, pai?

Lembras-te do Mussulo?

Sim, pai, sim… a areia recheada de lençóis brancos, a poeira do cansaço vomitando languidas lâminas de azoto, e depois, e depois regressava a noite, dormias, sonhavas, gritavas… e eu, eu sem dormir, comer,

Ao longe, meu amigo, ao longe o inferno, as gajas, as nuas gajas junto à porta do inferno,

Louco, menos tabaco nesses cigarros, menos,

Ao longe a agonia do fim de tarde agachado em cima de um telhado em zinco abraçado a um livro, não sabia ler ainda, mas lia-o, absorvia-o, como hoje o faço, e não sabia ler ainda,

E tu, pai, e tu emprestavas-me os teus livros, e eu, eu dilacerava-me com o cheiro do papel, com as letras, com as imagens, com as tuas palavras “estes livros não são para a tua idade” como se houvesse idade para se manusear e cheirar e “foder” um livro… vigava-me, riscava-os, tal como as paredes do corredor, riscos, riscos, um livro entre gemidos, um livro em pleno orgasmo… Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…

Desaparecem todas as palavras, o inferno estava próximo, do corredor entranhava-se no meu corpo o cheiro a enxofre e a gajas nuas, pensei (estou em cais do Sodré) não, não estava, nunca lá estive e nego-o, absolutamente,

Menos tabacos nesses cigarros, menos

Aproximava-me, lentamente a minha verticalidade diminuía, sentia-me um miúdo de bibe gritando, berrando, “fodendo” livros com uma caneta de tinta permanente, e nada, até hoje, nada, morreu ele, morri eu, morremos todos,

Os homens, os meus e os teus, quadriculados beijos entre equações de amor…

Só queria ter uma cabana no cimo do monte, uma mulher que falasse Russo e uma montanha embalsamada no meu corpo, a aventura, o silêncio na procura do abismo, o Natal, prendas, e que se “fodam” as prendas,

E o Natal!

Sabíamos que amanhã não haveria saudade, sabíamos que amanhã não gaivotas poisadas no Tejo, estou muito doente

E o Natal?

Tive um amigo que morreu de silêncio,

Paz à sua alma,

Tive um amigo que se cansou da melancolia dos dias, das noites, das noites sem noites depois das noites, vivia acorrentado a uma árvore, eu, acreditava na inocência dos seus lábios, encardidos pelo temporal, desgastos pela insignificante margem do rio onde brincavam gaivotas e marinheiros, e sucata de mim

Ontem fui a um bar em Cais do Sodré, sentei-me, viajei até mil novecentos e oitenta e sete, era dia, corríamos embriagados em direcção ao medo, havia conquilhas e cerveja à mistura, como sempre, este amigo, embriagado pelas minhas palavras,

Amo-te, dizia ele, quando percebia que a escuridão se entranhava nos meus ossos de veludo, que eu, semeado na seara do vento, tinha medo, sentia a solidão sobre o meu peito, havia noites de tortura, havia noites de desequilíbrio mental, a loucura, o Tejo no meu quintal,

E sucata de mim,

Que boiava nos teus cabelos, meu amor, e sucata de mim espalhada pelos sítios mais incógnitos da nossa casa, um palheiro, simples, e felizes, assim,

Acorrentado, tu, meu amor, nesta cidade de Cais sem destino, de barcos sem comandantes, ou cordas de nylon invisíveis, e mesmo assim, recordo-te, amar-te talvez, um dia, amanhã, depois de amanhã… ou ligo, talvez, talvez meu amor,

No meu quintal,

Uma sanduiche de sódio baloiçava nas minhas veias, sentia a morte, o fim, a despedida, não faz mal, meu amor, amanhã, talvez, no meu quintal, eu, em Cais do Sodré, abraçado a ti, sem ninguém, amanhã

Tive um amigo que morreu de silêncio, frequentava a minha poesia, uns dias aparecia outros…

Amanhã, não saberei se tu,

Outros… uma cancela de vidro,

Se tu me amas, se tu, se tu me recordas como recordas as tristes alvoradas em frente ao Tejo,

Outros, e mais outros, não sabiam que o amor é um cubo de chocolate, só, triste e só, como eu

Tejo?

Outros…

Amanhã, não saberei se tu,

Outros… uma cancela de vidro, um comboio em aço desgovernado subindo a Calçada da Ajuda, e

Ajuda nenhuma, sempre só, meu amor, sempre, sempre só nos teus braços, nos teus fantasmas, nas tuas coxas de silício mergulhadas na corrente eléctrica do sofrimento, Tejo?

Talvez, meu amor, talvez…

Tive um amigo.

Tenho a “Tara mais pesada que o Peso Bruto”, isso é grave, Doutor? Que sim, que nunca mais vou ver o Rio nem as montanhas nem as prendas, nem…

O Natal?

Quero lá saber dele, nunca goitei dele, prendas, e que se “fodam” as prendas, e todos os dias vinte e cinco de cada mês… estou muito doente, tenho a “Tara mais pesada que o Peso Bruto”, gravíssimo meu Caro, gravíssimo meu Caro, pronto, estou “fodido” a caminho dos cinquenta tudo aparece, é o Natal, é a Tara, é a porra da idade, e nem o Caracol me consegue valer, sobe, sobe… e puf… parede abaixo, capotou mesmo em cima da mulher que sabia falar Russo, tristeza, a Tara… e eu só queria ter uma cabana no cimo do monte, uma mulher que falasse Russo e uma montanha embalsamada no meu corpo, a aventura, o silêncio na procura do abismo, o Natal, prendas, e que se “fodam” as prendas, prendas,

Tínhamos prometido separarmo-nos naquela noite, inventamos partes da Teoria de Einstein para recordarmos o que era impossível de recordar, a separação, o fim, e o adeus

Ontem recebi carta dela, está tudo bem, os arrozais ainda dormem, os coqueiros soluçam entre os finos cortinados de tristeza e a claridade do fim de tarde,

Adeus, ontem recebi, a carta vinha amarrotada, cansada, e embalsamada como as rosas no interior de um livro, o parvalhão de um livro,

Se algum dia eu abraçava uma rosa embalsamada…

De um livro, muitos anos, Einstein para recordarmos o que era impossível de recordar, a separação, o fim, e o adeus das gaivotas a cada encerrar de uma janela que só a dor consegue fazer sobreviver,

Tínhamos,

Inventamos o amor “transtemporal” os catetos, a hipotenusa, a verruga, o cinzeiro a abarrotar de conversas sem nexo, nunca tive um sonho, morri sempre na praia, nunca, se algum dia eu abraçava uma rosa embalsamada…, nem eu, ouvia-a

Tínhamos, não sonhos, não sorrisos, não beijos, nem um simples calendário suspenso na cozinha, nunca sabíamos a quanto andávamos, se era terça-feira, sexta-feira… tanto faz, ouvia-a, irritava-me com a sua ausência, mas sempre que podia

Partia, levava todas as roupas e todos os livros, até as velhas cartas transportava na bagageira, e nunca me disse adeus,

Amanhã,

Me disse adeus, até amanhã, amo-te, nada, nada

Como hoje

Nada.

 

Francisco Luís Fontinha

in – “Amargos Lábios do Poema”