sábado, 22 de outubro de 2022

As palavras de amar

 Vão morrendo as palavras de amar

quando desperta no amanhecer
o quadrado silêncio mergulhado no círculo lunar,

Faço-me à vida,
caminho sonâmbulo sobre a fogueira dos meus poemas
até que eles se transformem em nada,
olho-me no espelho da agonia, sinto na garganta a tempestade da paixão,
carrego nos ombros o peso do meu próprio caixão,
em vidro, e com fotografia a preto e branco para o mar,
saboreio o teu corpo nas pálpebras verdes dos livros não lidos,
perco-me em ti... sem saber se amo, sem saber se estou vivo nesta campânula de lágrimas,
e o desassossego inventa-me como se eu fosse um papagaio de papel,
de muitas cores,
como muitas cartas de amor
destruídas pelas suicidas lâminas da geometria,

Tenho saudades de ti...
minha Lisboa, meu amado Tejo... meu amante Cais do Sodré,
perseguia nas paredes húmidas da noite um corpo em translação,
uma puta que procurava um ombro de gesso,
um gajo embriagado que cuspia finos fios de fogo...
e terminava quando a cidade acordava,
eu amava, eu não amava...
eu sentia nas amoreiras flores o beijo de ninguém,
o pavimento paralelepípedo da tristeza começava a transpirar,
ouviam-se os gemidos delas, ouviam-se os gemidos deles...
e ao longe,
um apito encurralado entre carris de aço em direcção a Belém,

(Vão morrendo as palavras de amar
quando desperta no amanhecer
o quadrado silêncio mergulhado no círculo lunar),

Esquecia as mãos na algibeira,
iluminava-me na fragrância madrugada quando um banco de jardim corria para o rio,
misturava-se com um velho Cacilheiro, às vezes... tossindo, às vezes... às vezes coxeando...
como um mendigo prisioneiro de um vão de escada,
como um marinheiro em busca de sexo, drogas... e um par de asas...
nunca voei,
e havia noites que sobrevoava a minha amada Lisboa,
como um louco,
como um prego de aço no barbear da manhã...
disfarçava-me de ponte metálica...
e desenhava sorrisos nos vidros pintados de negro embalsamado,
até morrerem todas as palavras de amar...!

 

 


Francisco Luís Fontinha
Quarta-feira, 22 de Outubro de 2014

Instantes num quarto de vento

 Meu querido,

 

Não sei como serias hoje, tão pouco se gostavas de Proust, e se mergulhaste “Em Busca do Tempo Perdido” ou “À sombra das Raparigas em Flor”, não sei, se tal como eu, enquanto a noite desce sobre mim, pensas como seria adormecer no colo de AL Berto ou estares uma tarde inteira a fumar cigarros com o Lobo Antunes ou como seria o rosto do Pacheco enquanto esgalhava uma.

Não sei, nem quero saber. Também não espero pedir-te perdão, porque o que está feito está feito e, se tivesse de pedir perdão a alguém, pedia-o certamente a mim, evidentemente.

Cansei-me muito, foram noites intermináveis e sem dormir, foram noites de ti enquanto eu pensava em mim, e quando percebi que jamais voltaria a ver os pássaros em pequenos voos de miséria, eis que esses mesmos pássaros voltaram para me atormentar e invadir novamente as minhas noites; não, meu querido, tu não tens culpa que as nuvens tenham regressado novamente.

Não sei o que pensaria Albertine de tudo isto, mas certamente pensaria o mesmo que eu, isto é, não pensava; talvez um dia percebas porque morreram os jardins da minha vida.

Naquela altura, meu querido, desconhecia o poder do fogo, porque a lareira onde me abrigava pertencia às manhãs submersas dos encalhados campos de milho de Carvalhais, e se pudesse estar sentado naquela pedra cinzenta, e se pudesse enquanto sentado fumar os meus últimos cigarros da tarde, e se pudesse olhar o Pacheco a esgalhar uma, à porta de uma qualquer casa de banho de um qualquer bar, acredita meu querido, fazia-o, mas não o posso fazer.

E como já te disse anteriormente, sim, cansei-me muito. Sim, chorei imenso. E sim, fui energúmeno para ti.

Mas… meu querido, como seria a madrugada se o vento tivesse morrido naquela noite fatídica em que voaste para o infinito; e talvez um dia, e talvez agora, te diga que foi melhor o vento não morrer.

Enquanto converso com a Adelina ou com a Maria Clara, percebo que fui um sacana para ti, mas depois regressam a mim as lágrimas infindáveis das três tristes serpentes sem cabeça, e quando converso com a Albertine penso como seriam os teus olhos; possivelmente iguais aos meus.

Mas os teus olhos um dia pertencerão às flores em cadáver que brincam no meu jardim, e pensando melhor, também não quero saber dos teus olhos, nem a cor dos mesmos.

Sabes Swann, tanta gente a quem tinha de pedir perdão, mas o tempo escoa-se pelas frestas da noite, e quando percebo que tenho sobre o corpo a espada da tristeza, oiço as vozes alegres dos monstros das noites em que te sentavas no meu colo enquanto te lia um poema de AL Berto, e do 14 de Janeiro, hoje, apenas tenho saudade de quando o mar entrava pela janela, e tu, sonhavas com as marés de silêncio que caiam sobre a mesa da sala de jantar.

Na algibeira levávamos os pregos sem cabeça, sem braços, apenas um corpo mortificado e doente, depois, tínhamos as Pachecadas que alimentavam as nossas tardes depois de voarmos sobre uma cama de nódoas num qualquer segundo andar, num qualquer quarto, de uma qualquer cidade.

E sabes, Albertine, depois da morte apenas ficam as fotografias.

Mas tu não percebes, claro que nunca vais perceber porque o fizeram; acredita que nem eu percebo porque não mataram o vento naquela triste madrugada.

Pertenço-te e não te peço perdão, de qualquer forma, o vento ainda ronda pelos campos de milho de Carvalhais.

E depois de levar o almoço à tia Adosinda, ela carinhosamente, dava-me dois e quinhentos ou cinco escudos, descia a rua, estacionava no Sr. Grifo e mergulhava nas carteiras de cromos ou nos chocolates.

A tarde separa-se das tuas mãos e da janela ouvem-se as crianças em pequenas brincadeiras, sobre o meu peito, poisas a cabeça, e num ápice, tal como o vento que não morreu naquela madrugada, percebemos que somos instantes, instantes num quarto de vento.

E não, não te peço perdão.

Nunca te vou pedir perdão.

 

 

 

 

Alijó, 22/10/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

Francisco Luís Fontinha – Alijó

 


















Livros de Francisco Luís Fontinha

 





Este livro

 Este livro não me pertence.

Procuro nos teus lábios

As palavras dos Invernos infinitos,

Quando dos teus olhos prateados

Emergem as planícies da manhã,

 

E percebo que durmo.

Dumo amarrado aos sonhos

Onde acordam os monstros de outrora…

Alicerço-me aos rochedos envenenados

Que transportas nas mãos,

 

Finas e débeis,

Onde o cansaço se ergue

Como se erguem em mim

Estes tristes esqueletos de sémen…

E enquanto espero o novo dia,

 

Morro.

Este livro não me pertence,

Este livro não fui eu que o escrevi…

Este livro que trago em mim

Parece a silenciada tempestade,

 

Que acorda em cada madrugada.

E das finas e débeis palavras

Que folheias com as tuas mãos…

Uma lâmina de desejo

Poisa no meu corpo!

 

 

 

 

Alijó, 22/10/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A princesa Lunar

 Abraça-se aos meus braços

A constelação de Apus.

Deita-se na minha mão trémula e fria,

Esta cansada caneta de tinta permanente,

E se eu quisesse voar,

Voava nas palavras perdidas,

Das sombras sem imaginação,

Onde se passeiam as lágrimas estrelares

Da Princesa Lunar; é tarde, meu amor,

Correm para mim as minguadas árvores

Dos teus silenciados cabelos…

E percebo que nos teus olhos

 

Habita a triste saudade.

Este livro que poisa na minha mão,

Arde, como ardem todos os livros que poisam na minha mão…

E do espelho onde escondo as estrelas em papal

Que recortava nas sombras de antigamente,

Um beijo de mar brinca na pequena gotícula de suor

Que dome na tua pele.

A jangada que nos permite atravessar

Esta Ribeira que apelidaram de Tranquilidade…

Engasga-se quando olha os teus lábios,

E descem sobre nós

Todos os pássaros da Primavera…

 

Cerramos os olhos,

Rezamos em frente ao altar do desejo

Para que o vento nos leve para longe;

A maré esfomeada, morre,

E do outro lado da montanha

Temos as pedras envenenadas da manhã,

Onde se sentam os alegres enforcados…

Tristes, as paredes que beijam as sombras

Que a noite lança sobre o teu corpo de espuma,

E mesmo assim, elevam-se sobre ti

As magoadas palavras do destino; as almas

Das tardes junto ao Mussulo… são hoje meia-dúzia de fotografias.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 21/10/2022

O mendigo da cabeça cortada

 

Ordenou-lhe que se ajoelhasse, ele fê-lo sem hesitar, e só depois de sentir no pescoço o frio da lâmina da espada que o Rei Nu segurava com as duas mãos, percebeu que este lhe ia cortar a cabeça; durante alguns segundos viu-a rolar calçada abaixo, depois, acordou sobressaltado e deu-se conta que estava a sonhar.

Algo de errado se passava com a sua vida, pois o Rei nunca cortaria a cabeça a um mendigo, e este último não sonha.

Então mergulhou na sombra e questionou-se… porquê eu?

Será porque escrevo nas paredes da casa de banho?

O dia estava frio. Na silenciada manhã ouviam-se os gemidos dos primeiros cigarros em combustão, aos poucos, muito devagarinho, as primeiras crianças deslocavam-se para a escola, e num ápice, como se tivesse caído do céu uma montanha de pássaros, toda a rua ficou intransitada; chovia torrencialmente e apenas de barco era possível chegar ao cais.

Sabes, ouvi dizer que todos os mendigos são felizes…

Eu sei!

Como vou agora atravessar a rua com toda esta enxurrada?

De relance viu sua majestade o Rei Nu, mas como tinha sonhado que este lhe tinha cortado a cabeça, hesitou, pensou muito bem, e decidiu não lhe pedir ajuda,

E se o gajo hoje me corta mesmo a cabeça?

Um mendigo sem cabeça não é anda, é um corpo, como tantos outros, que passam apressadamente para o trabalho.

E não seremos todos nós… corpos?

Adiante.

Meteu-se à água muito pausadamente para não se enfiar em algum buraco que estivesse submerso, chegou ao cais, e com algum esforço, deitou a mão ao muro de vedação e num pequeno salto no escuro, atravessou-o sem dificuldade.

Do outro lado da rua e já no cais, deu-se conta que tinha esquecido o pequeno saco que trazia na mão, onde algumas bugigangas se escondiam no seu interior, neste caso, todos os seus pertences, e mentalmente deparou-se com o dilema de voltar a atravessar novamente a rua ou partir mesmo assim; sem nada.

Partiu assim mesmo.

Na algibeira, juntamente com dois ou três cigarros, tinha a caneta de tinta permanente que lhe tinham oferecido e que de nada lhe servia, pois não tinha papel com ele, tão pouco uma secretária e cadeira onde sossegadamente poderia sentar-se e escrever alguma coisa. Sentiu o vento no rosto; e pensou que tudo se conjugava para pegar no barco à vela e zarpar em direcção ao desconhecido.

Perdeu-se de amores por uma Princesa, nunca soubemos se era a filha do Rei Nu ou outra qualquer, tem um rebanho de cabras e dizem, quem já o viu, que é muito feliz.

Como são felizes os mendigos que se perdem de amores por uma Princesa e têm um rebanho de cabras.

 

 

 

Alijó, 21/10/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)