sábado, 22 de outubro de 2022

Instantes num quarto de vento

 Meu querido,

 

Não sei como serias hoje, tão pouco se gostavas de Proust, e se mergulhaste “Em Busca do Tempo Perdido” ou “À sombra das Raparigas em Flor”, não sei, se tal como eu, enquanto a noite desce sobre mim, pensas como seria adormecer no colo de AL Berto ou estares uma tarde inteira a fumar cigarros com o Lobo Antunes ou como seria o rosto do Pacheco enquanto esgalhava uma.

Não sei, nem quero saber. Também não espero pedir-te perdão, porque o que está feito está feito e, se tivesse de pedir perdão a alguém, pedia-o certamente a mim, evidentemente.

Cansei-me muito, foram noites intermináveis e sem dormir, foram noites de ti enquanto eu pensava em mim, e quando percebi que jamais voltaria a ver os pássaros em pequenos voos de miséria, eis que esses mesmos pássaros voltaram para me atormentar e invadir novamente as minhas noites; não, meu querido, tu não tens culpa que as nuvens tenham regressado novamente.

Não sei o que pensaria Albertine de tudo isto, mas certamente pensaria o mesmo que eu, isto é, não pensava; talvez um dia percebas porque morreram os jardins da minha vida.

Naquela altura, meu querido, desconhecia o poder do fogo, porque a lareira onde me abrigava pertencia às manhãs submersas dos encalhados campos de milho de Carvalhais, e se pudesse estar sentado naquela pedra cinzenta, e se pudesse enquanto sentado fumar os meus últimos cigarros da tarde, e se pudesse olhar o Pacheco a esgalhar uma, à porta de uma qualquer casa de banho de um qualquer bar, acredita meu querido, fazia-o, mas não o posso fazer.

E como já te disse anteriormente, sim, cansei-me muito. Sim, chorei imenso. E sim, fui energúmeno para ti.

Mas… meu querido, como seria a madrugada se o vento tivesse morrido naquela noite fatídica em que voaste para o infinito; e talvez um dia, e talvez agora, te diga que foi melhor o vento não morrer.

Enquanto converso com a Adelina ou com a Maria Clara, percebo que fui um sacana para ti, mas depois regressam a mim as lágrimas infindáveis das três tristes serpentes sem cabeça, e quando converso com a Albertine penso como seriam os teus olhos; possivelmente iguais aos meus.

Mas os teus olhos um dia pertencerão às flores em cadáver que brincam no meu jardim, e pensando melhor, também não quero saber dos teus olhos, nem a cor dos mesmos.

Sabes Swann, tanta gente a quem tinha de pedir perdão, mas o tempo escoa-se pelas frestas da noite, e quando percebo que tenho sobre o corpo a espada da tristeza, oiço as vozes alegres dos monstros das noites em que te sentavas no meu colo enquanto te lia um poema de AL Berto, e do 14 de Janeiro, hoje, apenas tenho saudade de quando o mar entrava pela janela, e tu, sonhavas com as marés de silêncio que caiam sobre a mesa da sala de jantar.

Na algibeira levávamos os pregos sem cabeça, sem braços, apenas um corpo mortificado e doente, depois, tínhamos as Pachecadas que alimentavam as nossas tardes depois de voarmos sobre uma cama de nódoas num qualquer segundo andar, num qualquer quarto, de uma qualquer cidade.

E sabes, Albertine, depois da morte apenas ficam as fotografias.

Mas tu não percebes, claro que nunca vais perceber porque o fizeram; acredita que nem eu percebo porque não mataram o vento naquela triste madrugada.

Pertenço-te e não te peço perdão, de qualquer forma, o vento ainda ronda pelos campos de milho de Carvalhais.

E depois de levar o almoço à tia Adosinda, ela carinhosamente, dava-me dois e quinhentos ou cinco escudos, descia a rua, estacionava no Sr. Grifo e mergulhava nas carteiras de cromos ou nos chocolates.

A tarde separa-se das tuas mãos e da janela ouvem-se as crianças em pequenas brincadeiras, sobre o meu peito, poisas a cabeça, e num ápice, tal como o vento que não morreu naquela madrugada, percebemos que somos instantes, instantes num quarto de vento.

E não, não te peço perdão.

Nunca te vou pedir perdão.

 

 

 

 

Alijó, 22/10/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

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