Ordenou-lhe que
se ajoelhasse, ele fê-lo sem hesitar, e só depois de sentir no pescoço o frio
da lâmina da espada que o Rei Nu segurava com as duas mãos, percebeu que este
lhe ia cortar a cabeça; durante alguns segundos viu-a rolar calçada abaixo,
depois, acordou sobressaltado e deu-se conta que estava a sonhar.
Algo de errado
se passava com a sua vida, pois o Rei nunca cortaria a cabeça a um mendigo, e
este último não sonha.
Então mergulhou
na sombra e questionou-se… porquê eu?
Será porque
escrevo nas paredes da casa de banho?
O dia estava
frio. Na silenciada manhã ouviam-se os gemidos dos primeiros cigarros em
combustão, aos poucos, muito devagarinho, as primeiras crianças deslocavam-se
para a escola, e num ápice, como se tivesse caído do céu uma montanha de
pássaros, toda a rua ficou intransitada; chovia torrencialmente e apenas de
barco era possível chegar ao cais.
Sabes, ouvi
dizer que todos os mendigos são felizes…
Eu sei!
Como vou agora
atravessar a rua com toda esta enxurrada?
De relance viu
sua majestade o Rei Nu, mas como tinha sonhado que este lhe tinha cortado a
cabeça, hesitou, pensou muito bem, e decidiu não lhe pedir ajuda,
E se o gajo hoje
me corta mesmo a cabeça?
Um mendigo sem
cabeça não é anda, é um corpo, como tantos outros, que passam apressadamente
para o trabalho.
E não seremos
todos nós… corpos?
Adiante.
Meteu-se à água muito
pausadamente para não se enfiar em algum buraco que estivesse submerso, chegou
ao cais, e com algum esforço, deitou a mão ao muro de vedação e num pequeno
salto no escuro, atravessou-o sem dificuldade.
Do outro lado da
rua e já no cais, deu-se conta que tinha esquecido o pequeno saco que trazia na
mão, onde algumas bugigangas se escondiam no seu interior, neste caso, todos os
seus pertences, e mentalmente deparou-se com o dilema de voltar a atravessar
novamente a rua ou partir mesmo assim; sem nada.
Partiu assim
mesmo.
Na algibeira,
juntamente com dois ou três cigarros, tinha a caneta de tinta permanente que
lhe tinham oferecido e que de nada lhe servia, pois não tinha papel com ele,
tão pouco uma secretária e cadeira onde sossegadamente poderia sentar-se e escrever
alguma coisa. Sentiu o vento no rosto; e pensou que tudo se conjugava para
pegar no barco à vela e zarpar em direcção ao desconhecido.
Perdeu-se de
amores por uma Princesa, nunca soubemos se era a filha do Rei Nu ou outra
qualquer, tem um rebanho de cabras e dizem, quem já o viu, que é muito feliz.
Como são felizes
os mendigos que se perdem de amores por uma Princesa e têm um rebanho de
cabras.
Alijó,
21/10/2022
Francisco Luís
Fontinha
(ficção)
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