As paredes acordavam em nós o silêncio em pequenas sombras de insónia e os cadáveres de prata dançavam sobre a fina camada de geada que habitava o pavimento lamacento do quarto onde dormiam barcos, guindastes e outra sucata; e depois de regressarem os transeuntes da madrugada, ouvia-se o apito de partida para mais uma corrida entre os parêntesis da manhã que brevemente saltitava de rua em rua, de beco em beco, até que do segundo-andar, da varanda sobre a esplanada, um homem agreste e rude, gritava sem que percebêssemos a razão.
Há sempre uma mão que nos
empurra ravina abaixo, e quando damos conta, somos pedras em revolução contra a
lei da gravidade, acreditava ele.
O que sonhaste, meu amor?
Coisas, nada em especial.
A chuva poisava sobre os
cadáveres de prata e um miúdo acreditava que um dia podíamos subir à montanha
mais alta sem que ninguém nos empurrasse, coitado do miúdo, coitado dele,
porque mais tarde percebeu que era tudo uma questão de sonho; e entre sonhos,
morreu de fome.
Coisas, pequenos desertos
que habitam as nossas mãos, e do húmido húmus da saudade, sem que ninguém
soubesse porque tombavam os homens e mulheres que puxavam aqueles barcos e
guindastes, sucumbiu ao quinto dia de trabalho. Foi fatal, ouvia-se junto ao
cais.
O corpo não se mexia,
sobe ele, um pequeno lençol cobria as partes íntimas que a manhã tinha
esquecido do outro lado da ponte, e porque o miúdo acreditava nos sonhos,
cismou que um dia, se subisse à torre de Belém e se se atirasse bem lá do alto,
com sorte e com vento, poisaria do outro lado do Tejo. O vento esmoreceu e
quando se deu conta já estava a meio da Calçada da Ajuda; partiu os cornos contra
o muro de Lanceiros 2, e certamente não tinha sido o primeiro.
Coisas, nada em especial.
O que sonhaste, meu amor?
Com quatro pães saloios,
dois chouriços, uma linguiça, um jarro de cerveja e um pequeno baralho de
cartas, matava a fome a cinco gandulos que todas as noites apareciam para
conversar, fumar cigarros de erva e encontrar a explicação porque um dos cadáveres
de prata se ter atirado da Torre de Belém e aterrar na Calçada da Ajuda; mais
tarde viemos a saber que os serviços do Exército o tinham notificado para pagar
todas as despesas do maldito muro amarelo.
Olhou o papel que lhe
tinham entregado depois da formatura das oito e cinquenta, e mentalmente deu-se
conta que nunca teria os vinte contos que pretendiam para os respectivos
arranjos do dito muro.
Podíamos ir a Cais do Sodré,
líamos uns poemas e juntávamos uns trocos, dizia um dos cadáveres de prata.
Podíamos vender alguns
dos livros, que dizem?
Também podíamos vender
algumas das peças de roupa que não usamos, que tal?
Foda-se; sois todos
loucos.
A sério, podíamos levar
algumas das peças de roupa que não usamos e vendê-las na feira da Ladra…
Fizemos de tudo um pouco,
mas apenas juntamos cerca de cinco contos; não chegava nem de perto nem de
longe para a reparação do muro, mas sempre dava para bebermos uns copos na
noite de Lisboa.
Éramos cinco cadáveres de
prata, trazíamos no peito todos os sonhos do mundo, mas brevemente percebemos
que tal como o miúdo, os sonhos são apenas sonhos; sonhos de miúdos.
Coisas, nada em especial.
E trocávamos um jerricã de
gasóleo, uma grade de fruta e uma caixa de manteiga pela liberdade nocturna que
durante a semana tínhamos e que nos permitia subir à Torre de Belém e voarmos
até à outra margem, depois de aterrarmos, víamos uma Lisboa adormecida e
mergulhada na lentidão das estrelas de papel.
Estes gajos são
esquisitos, ouvíamos.
Pudera, voávamos sobre a
cidade…
Sonhaste com quê, minha
querida?
Sonhei que cinco
cadáveres de prata voavam sobre a cidade, vê lá, se isto é possível!
Não sei, não sei…
São apenas sonhos.
As paredes acordavam em
nós o silêncio em pequenas sombras de insónia e os cadáveres de prata dançavam
sobre a fina camada de geada que habitava o pavimento lamacento do quarto onde
dormiam barcos, guindastes e outra sucata; e depois ouviram-se as lágrimas dos
cinco cadáveres que salpicavam de pequenas gotículas a Calçada da Ajuda.
São apenas sonhos.
Não sei, não sei…
O miúdo que o diga!
Alijó, 20/10/2022
Francisco Luís Fontinha
(ficção)
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