quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Cadáveres de prata

 As paredes acordavam em nós o silêncio em pequenas sombras de insónia e os cadáveres de prata dançavam sobre a fina camada de geada que habitava o pavimento lamacento do quarto onde dormiam barcos, guindastes e outra sucata; e depois de regressarem os transeuntes da madrugada, ouvia-se o apito de partida para mais uma corrida entre os parêntesis da manhã que brevemente saltitava de rua em rua, de beco em beco, até que do segundo-andar, da varanda sobre a esplanada, um homem agreste e rude, gritava sem que percebêssemos a razão.

Há sempre uma mão que nos empurra ravina abaixo, e quando damos conta, somos pedras em revolução contra a lei da gravidade, acreditava ele.

O que sonhaste, meu amor?

Coisas, nada em especial.

A chuva poisava sobre os cadáveres de prata e um miúdo acreditava que um dia podíamos subir à montanha mais alta sem que ninguém nos empurrasse, coitado do miúdo, coitado dele, porque mais tarde percebeu que era tudo uma questão de sonho; e entre sonhos, morreu de fome.

Coisas, pequenos desertos que habitam as nossas mãos, e do húmido húmus da saudade, sem que ninguém soubesse porque tombavam os homens e mulheres que puxavam aqueles barcos e guindastes, sucumbiu ao quinto dia de trabalho. Foi fatal, ouvia-se junto ao cais.

O corpo não se mexia, sobe ele, um pequeno lençol cobria as partes íntimas que a manhã tinha esquecido do outro lado da ponte, e porque o miúdo acreditava nos sonhos, cismou que um dia, se subisse à torre de Belém e se se atirasse bem lá do alto, com sorte e com vento, poisaria do outro lado do Tejo. O vento esmoreceu e quando se deu conta já estava a meio da Calçada da Ajuda; partiu os cornos contra o muro de Lanceiros 2, e certamente não tinha sido o primeiro.

Coisas, nada em especial.

O que sonhaste, meu amor?

Com quatro pães saloios, dois chouriços, uma linguiça, um jarro de cerveja e um pequeno baralho de cartas, matava a fome a cinco gandulos que todas as noites apareciam para conversar, fumar cigarros de erva e encontrar a explicação porque um dos cadáveres de prata se ter atirado da Torre de Belém e aterrar na Calçada da Ajuda; mais tarde viemos a saber que os serviços do Exército o tinham notificado para pagar todas as despesas do maldito muro amarelo.

Olhou o papel que lhe tinham entregado depois da formatura das oito e cinquenta, e mentalmente deu-se conta que nunca teria os vinte contos que pretendiam para os respectivos arranjos do dito muro.

Podíamos ir a Cais do Sodré, líamos uns poemas e juntávamos uns trocos, dizia um dos cadáveres de prata.

Podíamos vender alguns dos livros, que dizem?

Também podíamos vender algumas das peças de roupa que não usamos, que tal?

Foda-se; sois todos loucos.

A sério, podíamos levar algumas das peças de roupa que não usamos e vendê-las na feira da Ladra…

Fizemos de tudo um pouco, mas apenas juntamos cerca de cinco contos; não chegava nem de perto nem de longe para a reparação do muro, mas sempre dava para bebermos uns copos na noite de Lisboa.

Éramos cinco cadáveres de prata, trazíamos no peito todos os sonhos do mundo, mas brevemente percebemos que tal como o miúdo, os sonhos são apenas sonhos; sonhos de miúdos.

Coisas, nada em especial.

E trocávamos um jerricã de gasóleo, uma grade de fruta e uma caixa de manteiga pela liberdade nocturna que durante a semana tínhamos e que nos permitia subir à Torre de Belém e voarmos até à outra margem, depois de aterrarmos, víamos uma Lisboa adormecida e mergulhada na lentidão das estrelas de papel.

Estes gajos são esquisitos, ouvíamos.

Pudera, voávamos sobre a cidade…

Sonhaste com quê, minha querida?

Sonhei que cinco cadáveres de prata voavam sobre a cidade, vê lá, se isto é possível!

Não sei, não sei…

São apenas sonhos.

As paredes acordavam em nós o silêncio em pequenas sombras de insónia e os cadáveres de prata dançavam sobre a fina camada de geada que habitava o pavimento lamacento do quarto onde dormiam barcos, guindastes e outra sucata; e depois ouviram-se as lágrimas dos cinco cadáveres que salpicavam de pequenas gotículas a Calçada da Ajuda.

São apenas sonhos.

Não sei, não sei…

O miúdo que o diga!

 

 

 

Alijó, 20/10/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

Sem comentários:

Enviar um comentário