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sexta-feira, 21 de outubro de 2022

O mendigo da cabeça cortada

 

Ordenou-lhe que se ajoelhasse, ele fê-lo sem hesitar, e só depois de sentir no pescoço o frio da lâmina da espada que o Rei Nu segurava com as duas mãos, percebeu que este lhe ia cortar a cabeça; durante alguns segundos viu-a rolar calçada abaixo, depois, acordou sobressaltado e deu-se conta que estava a sonhar.

Algo de errado se passava com a sua vida, pois o Rei nunca cortaria a cabeça a um mendigo, e este último não sonha.

Então mergulhou na sombra e questionou-se… porquê eu?

Será porque escrevo nas paredes da casa de banho?

O dia estava frio. Na silenciada manhã ouviam-se os gemidos dos primeiros cigarros em combustão, aos poucos, muito devagarinho, as primeiras crianças deslocavam-se para a escola, e num ápice, como se tivesse caído do céu uma montanha de pássaros, toda a rua ficou intransitada; chovia torrencialmente e apenas de barco era possível chegar ao cais.

Sabes, ouvi dizer que todos os mendigos são felizes…

Eu sei!

Como vou agora atravessar a rua com toda esta enxurrada?

De relance viu sua majestade o Rei Nu, mas como tinha sonhado que este lhe tinha cortado a cabeça, hesitou, pensou muito bem, e decidiu não lhe pedir ajuda,

E se o gajo hoje me corta mesmo a cabeça?

Um mendigo sem cabeça não é anda, é um corpo, como tantos outros, que passam apressadamente para o trabalho.

E não seremos todos nós… corpos?

Adiante.

Meteu-se à água muito pausadamente para não se enfiar em algum buraco que estivesse submerso, chegou ao cais, e com algum esforço, deitou a mão ao muro de vedação e num pequeno salto no escuro, atravessou-o sem dificuldade.

Do outro lado da rua e já no cais, deu-se conta que tinha esquecido o pequeno saco que trazia na mão, onde algumas bugigangas se escondiam no seu interior, neste caso, todos os seus pertences, e mentalmente deparou-se com o dilema de voltar a atravessar novamente a rua ou partir mesmo assim; sem nada.

Partiu assim mesmo.

Na algibeira, juntamente com dois ou três cigarros, tinha a caneta de tinta permanente que lhe tinham oferecido e que de nada lhe servia, pois não tinha papel com ele, tão pouco uma secretária e cadeira onde sossegadamente poderia sentar-se e escrever alguma coisa. Sentiu o vento no rosto; e pensou que tudo se conjugava para pegar no barco à vela e zarpar em direcção ao desconhecido.

Perdeu-se de amores por uma Princesa, nunca soubemos se era a filha do Rei Nu ou outra qualquer, tem um rebanho de cabras e dizem, quem já o viu, que é muito feliz.

Como são felizes os mendigos que se perdem de amores por uma Princesa e têm um rebanho de cabras.

 

 

 

Alijó, 21/10/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)