Deixou cair as asas sobre
o mar e adormeceu; no dia seguinte deu-se conta que todas as fotografias que tinha
escondido dentro da pequena caixa de sapatos número trinta, rés-do-chão
esquerdo, tinham desaparecido como anteriormente já tinham desaparecido dois
livros de poesia de AL Berto, um livro do Pacheco e um outro de Lobo Antunes.
Com os livros de poesia
de AL Berto, muitos anos antes de perder as asas, teve uma enorme discussão,
pois estes quase sempre não gostavam de ser manuseados, folheados, quanto ao
livro do Pacheco, esse, estava sempre com dor de cabeça.
O dia erguia-se entre os
seios dela, da rua, regressavam aos poucos as loucas buzinas dos transeuntes em
delírio, como regressam ao final da tarde os estorninhos parecendo uma
orquestra de zumbis, mas quanto aos dois livros de poesia de AL Berto, hoje, e
enquanto os folheava e manuseava, não se queixaram de tal, até que o livro do
Lobo Antunes me questionou a razão do par de asas estar sentado sobre eles,
quando poderiam muito bem estar na minúscula sala de jantar; e porque não
suporto birras nocturnas, puxei de um cigarro e fui ver o maldito mar daquela
última noite.
O mar estava chocho, a
maré tinha acabado de deixar o quarto e nele deixou impregnado o invisível
perfume que apenas as marés usam, junto à janela havia uma secretária onde
dormiam pedaços de papel escritos no século passado e que ele já nem se
recordava; que conste que tratava-se apenas de algumas cartas que nunca foram
enviadas, portanto sem remetente, e duas ou três receitas de culinária que
nunca se atreveu a experimentar.
O mar estava enjoado. Nos
lençóis, uma pequena mancha de esperma, desenhava a manhã que mais tarde
acordaria e ninguém saberia se ia terminar. Numa das paredes, pequenas frestas
olhavam-no, e começou a acreditar que estava a ser observado pelo defeituoso
silêncio que muitas vezes se alicerçava sobre o peito e, quase sempre não
entendia a razão.
Sabia que um dia seria
apelidado de anjo azul, de azul tinha o pulso pincelado, mas de anjo, de anjo
nada tinha, apenas as asas que deixara cair sobre o mar.
Sabíamos que a noite
trazia sempre uma pequena malga de sopa, uma sandes de nada e dois ou três
cigarros, depois, acreditando que sabia voar, colocou as asas e lançou-se da clarabóia…
Estatelou-se no pavimento
como se fosse um pássaro que acabasse de sofrer um AVC, até que do mar, em
passo apressado, vieram em seu auxílio as fotografias que tinham desaparecido
da pequena caixa de sapatos; ouviam-se os lobos que aos poucos se despediam da
maré, e esta, partiu.
Ele, depois de acordar,
abraçou-se aos pequenos lençóis e ainda hoje inventa o sono antes de regressar
a noite às suas mãos.
Alijó, 26/09/2022
Francisco Luís Fontinha