domingo, 30 de junho de 2013

Infelizes como eu por acreditar nos pássaros voando não voando como nós

foto: A&M ART and Photos

Acreditava que voavam os pássaros
como voavam as tuas mãos nas janelas do meu peito
fingia-me de morto
apenas para perceber a cor das tuas lágrimas
acreditava que voavam as flores
como voavam os teus lábios nos meus lábios
acreditar
acreditando que as noites são pedacinhos de pano
com beijos em papel...
acreditava que voavam seios teus
em minhas mãos de sílaba adormecida
eu, eu acreditava,

Acreditando
acreditar que todas as manhãs acordavam as minha antigas sandálias em couro
esquecidas debaixo das mangueiras
acreditava que dormias em pé e te enrolavas no cacimbo
acreditava que voavam os pássaros
como voavam as tuas coxas sobre o trapézio da madrugada...

acreditar eu acreditava
mas não te amo como amo o voo dos pássaros
mas não te amo como amo as minhas pobres sandálias em couro
acreditava que voando como os pássaros
eu poderia voar como o amor sobre o mar ao cair a noite
acreditava que vias nas minhas palavras as fotografias de ontem
enquanto brincávamos sobre as bananeiras do teu quintal...
acreditava que voavam os pássaros
como voavam as palavras em versos esfomeados
distorcidos
infelizes como eu por acreditar nos pássaros voando não voando como nós
eu, eu acreditava.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sábado, 29 de junho de 2013

Os silêncios envergonhados

foto: A&M ART and Photos

Deixei de ti os silêncios envergonhados
alicerces maleáveis com cabeça de madeira
deixei em ti o sulco prometido das rosas envelhecidas
cantigas da madrugada
cantigas... palavras húmidas
que o teu corpo absorve
como uma esponja recheada de lâmpadas de halogéneo...
como uma mão emprestada,

Cantei de ti
as cantigas profanadas nos jardins da insónia
gostei de ti em ti depois das estrelas sobre a cama nocturna com olhos de luar
entrarem em mim
deixei de ti
os silêncios envergonhados...
deitados os maleáveis sonos programados pelo relógio portátil em paredes ocas de gesso...
e um coração de ti parece romper as cordas que prendem a tenda do circo ao chão de areia,

Cansei-me de ti
em ti
por mim
entre colunas de granito e traves velhas de castanho...
cansei-me
das palavras ocas das paredes húmidas
em corações de gesso?
Mentiras de ti quando acordam em mim os silêncios envergonhados...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Os muros de ontem em loucuras de hoje

foto: A&M ART and Photos

Saltávamos o pequeno muro todos os finais de tarde, após a escola, às vezes com milímetros de fome a brincar nos estômagos vazios, nós, nós existíamos apenas porque tínhamos de existir, era-nos proibido desistir, era-nos proibido entrar no quintal do senhor António Joaquim de Alicate, homem robusto, homem rude, e de poucas palavras,
Um dia
E das poucas palavras, as poucas palavras, se não servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à procura de uma velha bola de futebol, gritou-me
Agora salta!
Claro que eu, incrédulo comigo mesmo, saltei, caí, não me magoei... e consegui desprender-me das suas garras de lobo solitário, Palavras? Para quê? E ainda hoje, durante a noite, quando abro a janela e espero que regresse, sinto-as
Agora salta,
Sinto-as ao redor do meu esguio pescoço, como se fossem finos arames suspensos entre duas árvores, eu, incrédulo, vestido de palhaço, percorro o arame, e sinto-as, as mãos do senhor António Joaquim de Alicate e a triste bicicleta da menina Alzira, que ainda hoje, quase com noventa anos
Olá, menina Alzira... está boazinha?
Claro que sim, responde-nos, e desde o salto mortal entre quintais, que ela, que ele, que nós, nós que supostamente não era para existirmos, inacreditavelmente, existimos, e ainda hoje, em todos os finais de tarde, saltamos os quintais invisíveis, alguns deles foram degolados por escavadoras e bulldozers, tal como o senhor António Joaquim de Alicate, robustos, de poucas palavras, para quê palavras?
Agora salta...
E eu saltei, voei sobre as espigas de trigo, e em vez de cair
Ainda hoje sinto-lhe as mãos no meu esguio pescoço,
E em vez de cair sobre uma leve cama de espigas de trigo com lençóis de cansaço, não, não ouvi as palavras dele, não percebi as palavras dela,
Ainda hoje
Menina,
Ainda hoje
Salta,
Ainda hoje
Olá, menina Alzira... está boazinha?
Um dia
E das poucas palavras, as poucas palavras, se não servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à procura de uma velha bola de futebol, gritou-me
Agora salta!
E eu, ainda hoje, não consegui poisar o meu corpo no doce chão, nós, três ou quatro, de quintal em quintal, saltávamos os pequenos muros, e eu, ainda hoje, tenho saudades do senhor António Joaquim de Alicate e da menina Alzira, e eu
Sobre o telhado do palheiro...
E eu, hoje, sinto-lhe as mãos no meu esguio pescoço.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Das palavras não escritas

foto: A&M ART and Photos

Sentia as tuas mãos a sufocarem-me das palavras não escritas
promessas incompreendidas quando havia uma manhã de desejo
correndo encosta abaixo
afogando-se nas veias submersas em saliva que escondiam sombras do meu pobre esqueleto
ossos e pó deles envenenados pelas imagens a preto-e-branco dos meus lábios descoloridos,

Amargos
sofridos quando sabíamos que era o último reencontro após a partida em direcção ao nada
sabíamos e não o confidenciamos a ninguém
apenas trocávamos verdes olhares de verdes olhos
em frente à inocência saudade,

Sentia a tuas mãos de xisto
vagueando no meu corpo de árvore em papel paixão
poisavam pássaros em ti
e ouviam-se as tuas dolorosas canções de amor
caminhando sobre a praia-mar...

Uma floresta de carnívoras madrugadas acordava dentro de nós
quando abrias os olhos e sabias que já tinha partido
descia a janela com vista para as rochas mergulhadas no mar...
e procurava da noite dispersos gemidos de ti
que eu pensava serem versos nas folhas mortas do poeta,

O livro escrevia-se conforme se extinguiam as luzes dos nossos gemidos
formatávamos os nossos discos rígidos até percebermos que já não éramos nós
eu deixei de saber quem eras
e tu, tu percebias que eu não passava de um mero cortinado de areia
a brincar numa rua de Luanda...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Um rio encostado aos seios desnudos da montanha

foto: A&M ART and Photos

Nada me apetece, nada me interessa, o sono chora dentro de mim como um rio encostado aos seios desnudos da montanha com corpo de socalco, uns míseros carris de aço contornam a barriga de pele lisa e perfumada, as videiras conversam com as mãos de xisto de homens e mulheres, alguns, filhos da montanha, herdaram-na dos avós, passaram a pertencer aos pais e dos filhos pertencerão, um dia, e se esse dia chegar, um comboio desgovernado roçará o sexo na água morna e serena do Douro antes do pôr-do-sol,
Nada me interessa, dizes tu, desiludido com as nuvens inventadas pelos olhos da Andreia, sorris como sorriram as cavernas dos dentes de marfim, um crocodilo em pau preto suspendes-se sobre a mesa da sala de visitas, está triste, está cansado de viver sempre sobre a mesma mesa, sempre a ouvir as mesmas palavras, e sempre
O calendário
E sempre a olhar os dias preenchidos com pequenas cruzes, depois de terminarem, novas cruzes, novos círculos, até que a noite seja noite, até que o dia morra dentro da garganta do mar,
O calendário submete-se aos critérios do crocodilo com dentes de marfim, tão velho, tão velho que se perdeu na idade, tão velho que nem o próprio luar se recorda do seu nascimento, e sempre, sempre pronto a resmungar com as letras de caligrafia antiga que vivem nas fotografias do álbum que trouxemos de Angola, e tão velho, tão velho como as lágrimas do amor...
Nada me apetece, oiço o grito desesperado do finalmente só, oiço a alegria das tardes antes de terminarem, mesmo antes da menina Andreia acender todas as luzes do silêncio, a musicalidade, a poesia, o reviver de sonhos esquecidos num fita de dezasseis milímetros, imagens, vultos passeando-se junto a umas pedras de nome
Albertina, Joana e Joaquina,
Três lindas flores, três belas montanhas, encalhadas entre um rio louco e um par de carris envelhecidos, encurvados, às vezes chorando porque as dores são intensas, as dores do cansaço, as dores da desilusão, as dores da vida quando deixou de existir vida nesta terra, as dores da solidão, quando entre multidões
Estamos sós, diz-me ela antes de baixar o estore e desligar o interruptor dos queixumes, das dores quando as dores não são físicas, quando as dores são dores, inventadas pelas noites intermináveis, pelas noites doentes com dores não dores
Albertina, Joana e Joaquina,
Três meninas, três sonhos, três jardins com três lagos, e onde brincam... três patos,
Quando entre multidões os esqueletos vadios confundem-se com as dores de não dores, quando entre multidões os dentes de marfim dele, deixam de lhe pertencer, quando os pássaros que voam dentro da cidade, cai a noite e todos eles, sem excepção, entram casa adentro, poisam sobre os arbustos que vivem na sala de jantar, um dia, tão velho, que me esqueci dele no velho calendário, um dia pareceu-me ouvir-lhe algumas palavras, poucas, escrevia-as tal como as ouvi, e ainda hoje, depois de muitos anos, tão velho, coitado, pergunto-me
Porquê?
Albertina, Joana e Joaquina,
Três patos, três pontes, e três barcos, tão... tão velhos como o teu corpo de seda
Pergunto-me,
Tão velhos como o teu corpo de seda, tão velhos como nós, e se te perguntar – Quem somos nós? - percebes que não somos ninguém, percebes que não somos papel, percebes que não somos palavras, percebes que não somos dias, noites, desilusões ou sonhos, percebes...
Que não somos nada,
Pergunto-te
Porquê?
E
Albertina, Joana e Joaquina, tão velhas, também elas, tal como nós... não o sabem, ou não querem falar,
Porque ainda existem palmeiras no largo em paralelos graníticos do tempo em que sabíamos quem éramos, sonhos, percebes?
E
Albertina cerrou os olhos como o fizeram todas as pálpebras da cidade esquecida no centro da montanha,
“nada me interessa, dizes tu, desiludido com as nuvens inventadas pelos olhos da Andreia, sorris como sorriram as cavernas dos dentes de marfim, um crocodilo em pau preto suspendes-se sobre a mesa da sala de visitas, está triste, está cansado de viver sempre sobre a mesma mesa, sempre a ouvir as mesmas palavras, e sempre
O calendário”,
No centro da montanha em púbis de cereja.
(e o calendário arde encostado à parede das tuas coxas de areia)


(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A falsa casa numa falsa morada (eu)

foto: A&M ART and Photos

Em meu sangue flutuas como uma porcelana adormecida
uma Rainha desesperada
voas entre paredes e muros e escadas...
em meu corpo habitas falsamente no compartimento exíguo
onde deixo durante a noite alguns dos meus sonhos,

Finjo ter em mim uma morada
uma pequena casa com asas de papel
é triste a fachada
uma casa com cortinados de aço
onde suspendes os teus desejos quando desce a noite em nós,

Em nós?
Se tu não existes como não existem as amoreiras da nossa infância
como nunca existiram as cavernas encastradas nas rochas junto ao mar
éramos dois barcos com velas desenhadas numa sombra vinda do céu
como vinham até nós (Nós?) os silêncios amanheceres das falsas madrugadas,

E inventávamos janelas de abrir no sorriso dos transeuntes
que dizimavam cigarros de enrolar
ouvíamos o ruído da água sibilando das finas esferas de açúcar
que brincavam no corredor da memória...
havíamos de reencontrarmos-nos numa qualquer paragem do eléctrico,

E nós?
Pergunto se algum dias existiu Nós em nós?
Um vocabulário apreendido pela polícia numa rusga em Alcântara
mesas cadeira e nós
nós? Quem somos nós?

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha