foto: A&M ART and Photos
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Saltávamos o pequeno muro todos os finais de tarde,
após a escola, às vezes com milímetros de fome a brincar nos
estômagos vazios, nós, nós existíamos apenas porque tínhamos de
existir, era-nos proibido desistir, era-nos proibido entrar no
quintal do senhor António Joaquim de Alicate, homem robusto, homem
rude, e de poucas palavras,
Um dia
E das poucas palavras, as poucas palavras, se não
servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para
quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para
entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à
procura de uma velha bola de futebol, gritou-me
Agora salta!
Claro que eu, incrédulo comigo mesmo, saltei, caí,
não me magoei... e consegui desprender-me das suas garras de lobo
solitário, Palavras? Para quê? E ainda hoje, durante a noite,
quando abro a janela e espero que regresse, sinto-as
Agora salta,
Sinto-as ao redor do meu esguio pescoço, como se
fossem finos arames suspensos entre duas árvores, eu, incrédulo,
vestido de palhaço, percorro o arame, e sinto-as, as mãos do senhor
António Joaquim de Alicate e a triste bicicleta da menina Alzira,
que ainda hoje, quase com noventa anos
Olá, menina Alzira... está boazinha?
Claro que sim, responde-nos, e desde o salto mortal
entre quintais, que ela, que ele, que nós, nós que supostamente não
era para existirmos, inacreditavelmente, existimos, e ainda hoje, em
todos os finais de tarde, saltamos os quintais invisíveis, alguns
deles foram degolados por escavadoras e bulldozers, tal como o senhor
António Joaquim de Alicate, robustos, de poucas palavras, para quê
palavras?
Agora salta...
E eu saltei, voei sobre as espigas de trigo, e em
vez de cair
Ainda hoje sinto-lhe as mãos no meu esguio pescoço,
E em vez de cair sobre uma leve cama de espigas de
trigo com lençóis de cansaço, não, não ouvi as palavras dele,
não percebi as palavras dela,
Ainda hoje
Menina,
Ainda hoje
Salta,
Ainda hoje
Olá, menina Alzira... está boazinha?
Um dia
E das poucas palavras, as poucas palavras, se não
servissem para resmungar com três ou quatro miúdos, serviriam para
quê? O quê? Não acredito, queixava-se ele, um dia, quando ia para
entrar no palheiro e viu-me sobre o telhado, em pés de lã à
procura de uma velha bola de futebol, gritou-me
Agora salta!
E eu, ainda hoje, não consegui poisar o meu corpo
no doce chão, nós, três ou quatro, de quintal em quintal,
saltávamos os pequenos muros, e eu, ainda hoje, tenho saudades do
senhor António Joaquim de Alicate e da menina Alzira, e eu
Sobre o telhado do palheiro...
E eu, hoje, sinto-lhe as mãos no meu esguio
pescoço.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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