sexta-feira, 28 de junho de 2013

Um rio encostado aos seios desnudos da montanha

foto: A&M ART and Photos

Nada me apetece, nada me interessa, o sono chora dentro de mim como um rio encostado aos seios desnudos da montanha com corpo de socalco, uns míseros carris de aço contornam a barriga de pele lisa e perfumada, as videiras conversam com as mãos de xisto de homens e mulheres, alguns, filhos da montanha, herdaram-na dos avós, passaram a pertencer aos pais e dos filhos pertencerão, um dia, e se esse dia chegar, um comboio desgovernado roçará o sexo na água morna e serena do Douro antes do pôr-do-sol,
Nada me interessa, dizes tu, desiludido com as nuvens inventadas pelos olhos da Andreia, sorris como sorriram as cavernas dos dentes de marfim, um crocodilo em pau preto suspendes-se sobre a mesa da sala de visitas, está triste, está cansado de viver sempre sobre a mesma mesa, sempre a ouvir as mesmas palavras, e sempre
O calendário
E sempre a olhar os dias preenchidos com pequenas cruzes, depois de terminarem, novas cruzes, novos círculos, até que a noite seja noite, até que o dia morra dentro da garganta do mar,
O calendário submete-se aos critérios do crocodilo com dentes de marfim, tão velho, tão velho que se perdeu na idade, tão velho que nem o próprio luar se recorda do seu nascimento, e sempre, sempre pronto a resmungar com as letras de caligrafia antiga que vivem nas fotografias do álbum que trouxemos de Angola, e tão velho, tão velho como as lágrimas do amor...
Nada me apetece, oiço o grito desesperado do finalmente só, oiço a alegria das tardes antes de terminarem, mesmo antes da menina Andreia acender todas as luzes do silêncio, a musicalidade, a poesia, o reviver de sonhos esquecidos num fita de dezasseis milímetros, imagens, vultos passeando-se junto a umas pedras de nome
Albertina, Joana e Joaquina,
Três lindas flores, três belas montanhas, encalhadas entre um rio louco e um par de carris envelhecidos, encurvados, às vezes chorando porque as dores são intensas, as dores do cansaço, as dores da desilusão, as dores da vida quando deixou de existir vida nesta terra, as dores da solidão, quando entre multidões
Estamos sós, diz-me ela antes de baixar o estore e desligar o interruptor dos queixumes, das dores quando as dores não são físicas, quando as dores são dores, inventadas pelas noites intermináveis, pelas noites doentes com dores não dores
Albertina, Joana e Joaquina,
Três meninas, três sonhos, três jardins com três lagos, e onde brincam... três patos,
Quando entre multidões os esqueletos vadios confundem-se com as dores de não dores, quando entre multidões os dentes de marfim dele, deixam de lhe pertencer, quando os pássaros que voam dentro da cidade, cai a noite e todos eles, sem excepção, entram casa adentro, poisam sobre os arbustos que vivem na sala de jantar, um dia, tão velho, que me esqueci dele no velho calendário, um dia pareceu-me ouvir-lhe algumas palavras, poucas, escrevia-as tal como as ouvi, e ainda hoje, depois de muitos anos, tão velho, coitado, pergunto-me
Porquê?
Albertina, Joana e Joaquina,
Três patos, três pontes, e três barcos, tão... tão velhos como o teu corpo de seda
Pergunto-me,
Tão velhos como o teu corpo de seda, tão velhos como nós, e se te perguntar – Quem somos nós? - percebes que não somos ninguém, percebes que não somos papel, percebes que não somos palavras, percebes que não somos dias, noites, desilusões ou sonhos, percebes...
Que não somos nada,
Pergunto-te
Porquê?
E
Albertina, Joana e Joaquina, tão velhas, também elas, tal como nós... não o sabem, ou não querem falar,
Porque ainda existem palmeiras no largo em paralelos graníticos do tempo em que sabíamos quem éramos, sonhos, percebes?
E
Albertina cerrou os olhos como o fizeram todas as pálpebras da cidade esquecida no centro da montanha,
“nada me interessa, dizes tu, desiludido com as nuvens inventadas pelos olhos da Andreia, sorris como sorriram as cavernas dos dentes de marfim, um crocodilo em pau preto suspendes-se sobre a mesa da sala de visitas, está triste, está cansado de viver sempre sobre a mesma mesa, sempre a ouvir as mesmas palavras, e sempre
O calendário”,
No centro da montanha em púbis de cereja.
(e o calendário arde encostado à parede das tuas coxas de areia)


(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

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