quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Sábado

 

Sabíamos que era Sábado porque estava escrito na parede da sala. Os gonzos pareciam envenenados pelo silêncio e, uma sombra ténue projectava a insónia da pilha de livros junto à janela. O rio durante a noite tinha galgado o quintal, ao menos, apenas as árvores ficaram submersas, como se fossem corpos embalsamados dentro do tumulo.

Ia à janela, puxava de um cigarro e, desenhava palavras na vertente norte da solidão, poisava a minha mão na mão dela, acariciava-lhe o sorriso com um pequeníssimo olhar e, percebi que tenho mais jeito para escrever do que ser engenheiro; às vezes sinto o peso dos retractos nos ombros, uma sensação estranha que só percebo depois de acontecer. Entre momentos, pequenos instantes, pincelava-a com o meu olhar de transeunte desnorteado à procura de um milagre. Precisava mesmo de um milagre, segredava-lhe ele ao ouvido.

Era um gajo antipático com um feitio de merda, não gostava de multidões e, sempre que era Sábado, religiosamente como quem vai à missa das dezoito horas, dava-lhe na telha de pegar nos álbuns de fotografias e, entre silêncio, manuseava cada retracto como se fossem simples flor. ,

Hoje o rio estava cansado; tal como ele se sentia todos os Sábados ao acordar.

Prisioneiro das sombras do Além.

Escrevo cartas a Deus. Envio-as para o endereço mais curto que conheço; Avenida das Almas, nº 5 – Lisboa. Nunca obtive resposta. As palavras, quando escritas para ele, adornavam-se em cima de uma secretária bolorenta, carcomida pela ferrugem dos sonhos, que durante a noite, boiavam nos socalcos do medo.

Nunca me levas a passear.

E, é hoje que vamos passear. Levamos umas laranjas, alguns poemas e, fazemos um piquenique literário.

Como assim?

A ponte, meu amor.

As coisas boas, meu amor.

Este gajo é insuportável. Pronto, disse.

Sabíamos que era Sábado porque estava escrito na parede da sala. Os gonzos pareciam envenenados pelo silêncio e, uma sombra ténue projectava a insónia da pilha de livros junto à janela. O rio tinha acordado com uma tremenda dor de costas, ora bem, a idade também não ajuda e, o caminho é tumultuoso, de pedra entre pedra, contando pontes e pontões, já tinha caminhado por baixo cerca de trinta e cinco, não esquecendo o lixo que tem de transportar até à Foz.

Tudo é lindo quando acaba bem, segredava-lhe ela ao ouvido.

Sabes, dizia ele, até parece que hoje é Sábado.

Sábado, hoje?

Sim, fui ao cemitério e vi muita gente para um normal dia. Coloquei-lhes flores, velas e, conversei com eles. Têm sempre uma palavra carinhosa para comigo, não admira, sou filho.

A ponte, meu amor.

Nunca me levas a passear.

Sábado, meu amor. Sábado.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó 10/02/2021


terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

O machimbombo é apenas uma fotografia em silêncio

 

Navego no teu corpo inflamado pelo silêncio da noite. Amar o oiro que poisa nos teus lábios, saber que todas as manhãs acordas na infinita insónia, és visitada durante a noite pelas tempestades marítimas dos livros, trazes na boca todas as palavras, as simples, as complicadas e, as órfãs da minha mão.

Escrevo-te, meu amor.

Hoje a manhã estava cansada de ter brincado com o teu corpo durante a noite, sabes, todas as noites são uma passagem secreta para a liberdade, lá fora tínhamos a chuva que iluminava o pequeníssimo quatro onde dois pássaros se abraçavam, sabiam que no final da tarde, por volta das dezassete horas, vinham até nós as garças, os corvos e, todas as correntes marítimas onde ontem à noite deixe o meu veleiro aportado. Tenho pena das brincadeiras junto às mangueiras.

As flores da tua sepultura sabem que a água jorra de dentro do poema, redopia nas rochas inanimadas que só a noite consegue despertar. É proibido tomar café; os livros tornaram-se bens não acessíveis às mãos do homem com o chapéu de palha, o miúdo pelidava-o de “chapelhudo”, tonto.

Os meninos sabiam que no quintal havia sempre um papagaio em papel, a mãe, carinhosamente, desenhava-lhe sombras e pequenas argolas, sabendo que ele, o menino dos calções, quase nunca comia fruta. “Tem bicho”. Pobre miúdo.

Tínhamos um machimbombo que era conduzido pelo avô Domingos e, todos os Domingos, junto à tarde, percorria amorosamente todas as ruas de Luanda; íamos à praia, fazíamos brincadeiras debaixo das mangueiras, às vezes cansadas, outras, distantes das marés de granito que assombrava a casa. Hoje, o machimbombo é apenas uma fotografia em silêncio na parede da sala.

Acordei pensando que te abraçava e, de tantas palavras escrever durante a noite, abraçava-te mesmo, de verdade, como o miúdo dos calções quando se agarrava às pernas da mãe; estás tão grande, meu menino.

Cresci. Vomitei palavras numa Lisboa incandescente, anos oitenta, cidade prometida e das canções, que fabricavam em mim um grandioso livro de poesia. Sentava-me no rio, não imaginava que tantos anos depois te abraçava e dormia na tua cama camuflada pelas sanzalas desconhecidas e, sabes, tenho saudades do cheiro do capim, depois da chuva.

Navego no teu corpo inflamado pelo silêncio da noite. Amar o oiro que poisa nos teus lábios, saborear a tua boca de amêndoa das janelas em flor, quando o jardim acorda e todos os pássaros parem loucos pela simples razão de ser dia. A boca, o beijo do narciso quando junto ao mar, ela e ele, parecem dois corpos suspensos na alvorada. Os corpos incham, ganham forma e crescem como as plantas em papel. Amanhã saberei a razão de hoje não estar triste, mas triste porquê? Se todas as flores são belas e todos os pássaros regressaram de Luanda comigo…

Há café?

Proibido.

Livros, vende?

Simplesmente proibido. Sabe, eles não gostam de livros. Posso comprar um aquecedor para aquecer os tomates. Posso comprar uma torradeira para magoar o pão com o calor; já imaginaram o sofrimento de uma fatia de pão, quando está prisioneira numa torradeira? Um terror, meu amigo, um derradeiro terror.

A cidade fervilha, o restaurante está encerrado, férias, dizem eles, mas desconfio que nunca mais abrirá; viva a literatura.

Visito uma loja de velharias, pequenos objectos de adorno que servem para me recordar que ainda ontem, pela calada da noite, uma livraria foi assaltada; roubaram todos os livros de poesia.

Tem café?

Proibido.

Vendem livros?

É proibido.

E, meus senhores. Apenas um imbecil é capaz de proibir a venda de livros.

Podem comprar um aquecedor para aquecer os tomates. Pois podemos.

Vivam os tomates.

Vivam.

Hoje há sardinha assada, batata cozida e pimentos.

Assim seja.

Proibido.

Proibido, meus senhores. Tudo é proibido.

Tragam as espingardas de papel e os lenços de metal. Tragam as janelas do presídio e o mar que está acantonado junto ao entardecer. Tragam os livros de poesia; os canalhas odeiam poesia.

Proibido.

O mar?

Sabe-se lá, meu amor.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó 09/02/2021

domingo, 7 de fevereiro de 2021

As horas de dormir

 

As horas de dormir, pareço que finjo, quando acordo embrulhado nas palavras do adeus, uma pequeníssima gota de silêncio absorve a madrugada, agarro-me ao teu corpo suspenso no cortinado da insónia e, há sempre uma criança que brinca na enxada da tarde.

Soltam-se as amarras de todos os barcos, acordam dos oceanos todas as tormentas e, sabe-se lá, quando vem a terra a solidão de um dia sem memória. Os homens sofrem, quando do granítico silêncio, as palavras do poema, inventam-se, redopiam nas redondezas da cidade, quando um grito silencioso cai sobre todos os jardins.

A fragância das flores adormecidas, as horas de dormir, pareço um fantasma dançando sob a tenda do circo imaginário, há palhaços de calcário, meninos de farrapos, junto ao mar, em cio, o corvo, as pirâmides embebidas em shots de nada e, no final da tarde, começa a descer a noite porta adentro.

Ponho à janela na esperança de olhar o sol, quando a noite está doente, cansada de brincar, quando depois de se evaporar a tarde, o teu corpo docemente se alicerça nas minhas mãos, as horas, os silêncios depois das horas e, dizes-me que a cada fim de tarde há uma janela que se encerra.

Tenho na minha mão o teu perfume, a cânfora manhã do sítio inanimado quando sei que lá fora um pingo de inveja sobeja das multidões em fúria. Discretamente, aos poucos, desenho-te na sombra dos livros ainda não escritos, gatafunhos acomodados às tristes margens deste rio sem nome, uma cabeça transparente, imunda, no nojento corpo das cidades da mendicidade e, imagino-me à procura de uma fina folha de papel onde escrever o meu testamento.

Tenho medo que amanhã não pertenças mais à cidade.

Que amanhã sejas apenas uma estátua de areia junto ao mar, trazes contigo as fotografias, as flores dos livros perdidos e, sabe-se lá porquê, as horas de dormir, são pedacinhos de silêncio nas tuas mãos.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó/07/02/2021

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Um grama de sono

 

Guardo o teu nome

No granito sonolento da noite,

E, sabes? Oiço os pássaros

Que brincam nos teus lábios.

Caminho velozmente na solidão do entardecer

Como se fosse uma flecha

Ou uma espingarda preguiçosa.

As palavras que a espingarda preguiçosa

Dispara, são murmúrios,

Vozes em papel

Que descansam nas planícies do poema.

Apetecia-me suicidar o poema.

Matar todas as palavras escritas no poema,

Como fazem os ditadores aos seus opositores.

Guardo o teu nome

Na algibeira da insónia,

Lugar onde habitam as minhas memórias

E todas as minhas fotografias;

Tal como o cansaço, a solidão

É o alimento das flores sem nome.

A paixão,

O amor que dorme nas janelas transparente e,

Onde vivem os cérebros inadaptados do meu jardim.

Um pequeno passeio,

Uma lâmpada dispersa,

Na sepultura do adeus.

Tal como ontem,

Sessenta anos passara sobre a revolta,

O cansaço das armas

Nas palavras dos homens.

A covardia de não acordar,

Deitar-me sem sono,

Fingir que durmo numa sombra imaginária,

Onde brincou o meu pai.

E, uma cabana de sono

Sabe que nas minhas palavras,

Há um livro que se revolta

E pergunta; para quê?

O telegrama regressou,

Trazia na mão uma côdea de sangue,

Alguns pertences e,

Uma malga de nada; ninguém come nesta casa

Até a aldeia se libertar do cansaço dos pobres.

Oiço tiros de canhão,

Granadas importadas,

Lança-chamas improvisados e,

Esta maldita guerra não termina nunca.

A refeição chegou na marmita,

Um pedaço de pão é lançado aos crocodilos

Como se de pedras se tratasse.

O Rossio é lindo, mãe!

Cai a neblina sobre a cidade,

Das palmeiras veem-se as gaivotas em cio

Que disputam o campeonato nos musseques perdidos,

As pedras, achados de cerâmica,

Pássaros e abelhas,

Almotolias que transportam o salgado azeite da escuridão diurna,

Que apenas o soba sabia para que servia.

Hoje, depois de acordar,

Todos os sonhos são tristes palavras

Nos braços do mar.

Sabeis vós quanto custa um grama de sono?

- Meu rapaz; aqui é proibido ter sono.

E, adormeceu eternamente até se cansar de gritar.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha, 04/02/2021

domingo, 31 de janeiro de 2021

Os tristes dias que a noite tem

 

Nestes dias,

Tristes dias tem o dia.

Das tristes manhãs dos dias,

Respira a árvore a sombra do silêncio,

Brinca a criança,

A menina;

A menina dança?

Dança que dança

Nos tristes dias, dos dias.

Saber esperar que acorde a manhã,

Quando os alicerces da insónia,

Ainda dormem, dormem os tristes dias.

E, as noites?

Tristes noites têm os dias,

Nas tristes tardes de encantar,

Tristes, eles, dormem o sono em flor,

Sem vontade de acordar.

Morrem os tristes dias,

Deitam-se as tristes mulheres,

Quando à lareia, o triste poeta,

Desenha no sangue dos tristes dias; apetece-me falar.

Nestes dias,

Das tristes flores,

Há árvores em cantorias e,

Doces amores.

Vai ela à fonte, triste e desanimada,

Leva no cântaro um poucochinho de nada,

Tristes dias, tristes tardes estas de caminhar

Sobre a calçada, também ela triste, também ela envergonhada;

Todos os tristes dias, são dias de amar.

 

 

Francisco Luís Fontinha, 31/01/2021

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

As palavras

 

Oiço destas pedras frias e sonolentas

Todas as palavras de amor.

Escrevo todas as palavras cinzentas

Que habitam no jardim verso flor.

 

Pincelo os teus lábios de amêndoa adormecida

Quando acorda o amanhecer,

- Eis o perfume de mim, poesia perdida

Na esplanada do adormecer.

 

Os versos que dormem na tua mão,

Corpo cansado das palavras envenenadas,

Quando acordam, os livros e, sobre o chão

 

Uma fina película de nada.

Que vergonha, as pedras cansadas,

Quando choram na calçada.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó-27/01/2021

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

A Doce Laranja

 

O poema dorme nas pernas da laranja.

As pernas da laranja, quando acordam, adocicam as palavras escritas pelo poeta,

Quando a mulher do poeta, é a própria laranja.

Sou, por vezes, apedrejado por energúmenos, mas não me importo.

Sou simples, como todas as palavras do poema.

Amo o poema,

Sou amado, como a amante do poeta, ama o poema e,

Todas as noites,

Uma laranja abre as coxas recheadas de sombra,

Lá fora, fios de geada brincam com a caneta do poeta,

Porque sendo ele, às vezes, apedrejado, continua a fabricar palavras quando cai a noite.

A caneta do poeta, apaixonou-se pela amante do poeta;

Podia ser trágico, podia ser infidelidade… mas o que os separa são apenas palavras,

Gritos ao ouvido que ela tanto adora.

Acabaram-se os cigarros. Sobre a mesa da sala, um volume de cigarros espera-o, como o espera a caneta, o papel e, os ouvidos da amante que ele a todos os momentos lhe sussurra; AMO-TE.

Poderia escrever-te a todas a horas, minutos, segundos, ou nunca te escrever.

As palavras invisíveis são as mais apetecidas, são escritas no silêncio entre o sono e o sonho.

São como a geada; leves, tranquilas, doces até.

O poema dorme nas pernas da laranja.

E se a laranja é as coxas da amante do poeta, como se apelidará o seu saboroso sumo, dúctil nas manhãs de Inverno?

Saltita.

Brinca na areia branca da manhã os esqueletos da noite passada,

Pequenas ranhuras nas paredes do cubículo que acesso ao sótão; sempre quis ter um sótão imaginário, apenas para mim.

Um sótão onde poderia brincar, escrever, pensar e, manusear a laranja.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó-19/01/2021

domingo, 17 de janeiro de 2021

Rosa geada

 

Flui o amor

Na rosa pétala geada,

Nasce nos teus lábios o sabor a amêndoa cansada.

Desparece a madrugada,

Nas páginas do poema flor;

Eis a manhã do meu sonhar.

Todas as horas e, todos os relógios a cantar,

Todas as flores na tua mão

Dançando a cantiga de embalar…

Flui o amor

Na rosa pétala geada,

Entre conversas de conversar

Entre murmúrios de adormecer.

Pobre coração!

O teu.

Janela para o jardim do amor,

Fotografia em flor,

Máquina volátil de enganar,

Revoltam-se todas as flores

Deste jardim de madrugar.

Flui, flui o amor

Nesta mão pétala rosa geada,

Canção de embalar,

Sorriso de nevão,

Cantiga,

Lágrima água ao acordar;

Dai-me a vossa mão,

Senhor, senhora, menina de brincar.

O doce lençol de linho,

Na triste cama da Donzela adormecida,

Menino,

Menina…

Foto muito querida.

Flores,

Paus,

Pedras de atirar,

Canções de mendigar

Quando a aldeia está a arder,

O fumo alimenta-a

Como todas as rochas de sofrer.

Encontrarás um dia o alegre destino?

Só aos Sábados,

Só aos Sábados, menino.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó-17/01/2021

sábado, 16 de janeiro de 2021

O sono

 

Uma finíssima sombra de gelo

Poisa docemente na tua pele.

Todas as palavras, escritas no teu corpo,

São poemas loucos, são rosas, Senhor…!

São manhãs sem dormir,

São tardes infinitas,

São lençóis de seda,

Que agasalham o teu corpo.

Uma finíssima tarde de sono

Brinca nos teus lábios encarnados,

Doces como a geada,

Transparentes como a luz do teu olhar.

Todas as palavras,

Todos os livros,

São noites ensonadas,

São Primaveras prometidas,

São toalhas de linho

Que adoçam as tuas mãos de fada.

Brincam nos teus cabelos

Todas as estátuas da cidade,

Onde habitam todos os pássaros em papel

Que a tua mão construiu na noite,

Todos os silêncios,

São lágrimas de sorrir,

São sorrisos de chorar…

Que só os pequenos livros de poesia conseguem cantar.

Toas as faces,

Todos os dedos,

São finíssimas sombras de geada

Que saltitam no teu cabelo;

Eis as lágrimas da noite

Quando todas as crianças dormem e,

Tu, sem o saberes,

Alimentas o povo faminto de liberdade.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó – 16/01/2021

sábado, 9 de janeiro de 2021

As invisíveis cidades de ontem

 

Quando as amarras se desprendem da paixão e, o rio galga os socalcos da insónia.

 

 

Eles tiram-nos a vontade de caminhar,

Mas nunca, nunca, nos tirarão a razão de pensar.

O amor,

A paixão entre dois corpos cerâmicos,

Quando dois lábios de seda, ao nascer do sol, se entrelaçam na maré e,

Um finíssimo fio de chuva,

Dorme, docemente, na cânfora manhã de ontem;

Sois vós, aqueles que me apedrejam e, depois, vêm lamber-me o cu.

Os livros, dormem,

Todas as estátuas, dormem… e,

Até as palavras, vejam lá, também elas, dormem.

O circo,

Os palhaços de farrapos que dormem na soleira das portas,

Também elas,

Todas,

Encerradas.

Querem que ele trabalhe, estude, seja educado, obedeça.

Mas, obedecer, nunca.

Como os pássaros,

Livres pensadores do destino,

Erva daninha dos caminhos de areia,

Que depois,

Dormem, como as palavras dele.

A paixão.

O orgasmo literário de um pobre blog,

Uma simples fotografia de um momento passado,

Cadernos mortos,

Corpos assados,

Na fogueira,

Da língua dos outros.

A boca, incha,

Morre de desgosto,

Sepultam-se os corpos cerâmicos, na fogueira do incenso,

Morde as palavras e,

Grita; foda-se.

Os sete cavalos de aço,

As sete pernas de gesso,

Os setenta corvos da madrugada,

Que o diabo deixou acordar;

Foda-se.

Amanhã estará neve na minha aldeia,

Um rio de sémen, em demanda, correrá para o abismo,

Nascerá mais tarde uma borboleta em papel,

Que o menino deixa adormecer na sua mão.

Hoje, sábado, tarde manhosa, triste,

Dançam as crianças à volta da fogueira,

Pequenos livros, grandes papeis,

Voam e, deixam em mim,

A cinza da tristeza.

Choram eles.

Gritam gemidos de ódio, elas.

Como sabem, o amor é uma pedra linda,

Que caminha junto ao rio;

Foda-se. A água salgada da língua amaldiçoada.

Corpo,

Carne,

Sangue,

Pedaços de pedra,

Amuletos de nada…

São estas as brincadeiras da sereia.

A mesma sereia, aquela que dorme como um porco,

Num qualquer comício de aldeia.

Foda-se, amanhã não.

Fecha.

Abre as pernas, filho,

Porque o Governo te vai foder.

E fode-nos, como fodem as pedras todas as cabeças e cabeçudos do circo e,

Fode-nos, como todos os pregos de aço que serpenteiam as manhãs de sábado.

Os secretos AMORES que habitam esta casa,

Fecha.

Abre.

Fode-o profundamente como que fode o próximo.

Come. Não come. Tem fome, ninguém quer saber.

O gajo é fodido.

Escreve nas paredes da insónia…

Estou farto desta merda.

Merda.

Foda-se.

Ponto final.

Paragrafo.

Amanhã, Domingo.

Hoje, um corpo suspenso na avenida.

O poema, morre.

Como morreram todas as palavras de há pouco;

A marmelada, fria,

Azeda ternura.

Os beijos.

A ferradura.

A mão de enxada na mão.

O polícia quase a vomitar parágrafos e travessões…

“Felizes os convidados para a ceia do Senhor…”

Que são poucos.

Bons companheiros de tribunal.

Levanta-se o réu: inocente, “senhou” Juiz.

Inocente.

Pernas, paus, picaretas, todos à molhada,

Parecendo brinquedos em plástico,

Que o tio “Celito” vende nas ruas de Lisboa…

O cu amarelejado de centeio,

A peida perfumada, quando se senta na esplanada, assume que é apenas um pouco de raiva, a que sente ao estar completo no signo mais estúpido do zodíaco.

Há fogo dentro dela.

Ardem palavras de amêndoa, cornos descascados e,

Putas, muitas, na feira da cidade.

Assim termina mais um confinamento:

Fodam-se.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó, 09/01/2021