terça-feira, 27 de setembro de 2022

Flor proibida

 Pergunto a este livro que me observa como se eu fosse uma abelha poisada na flor proibida, o que é o amor. E à fotografia onde habitam os meus pais, questiono-a se sabe o que é a paixão…

E tanto aquele livro, e tanto aquela fotografia, nada sabem sobre o amor e sobre a paixão.

Talvez se lhes perguntasse o que são as misérias do ser humano, ele e ela me respondesse…

Porque choram as acácias, pai?

Talvez me respondessem que já nascemos miseráveis, e como miseráveis que nascemos, nunca poderemos amar, nem tão pouco respirar a neblina da manhã. E enquanto esperava pela resposta do meu pai, nasci; nasci num Janeiro recheado de sol e de muito calor, sem que ainda hoje perceba porque choram as acácias.

Como também não percebo porque choram os pássaros, porque choram as árvores, porque chora o mar e o luar, porque choram as crianças, quando estas, deveriam pincelar sorrisos em cada manhã.

Depois, abri os olhos e vi no tecto da maternidade o mar; tinha sido a minha mãe que trouxe um pedacinho do Mussulo porque já suspeitava que eu

Talvez amanhã acorde.

Que eu pertencia a uma espécie de algas e que um dia seria apenas húmus e passaria o tempo a semear palavras nas planícies do sonho.

Ora, como sonhar é proibido por decreto Real e as palavras são apenas palavras, sombras, rectas paralelas que dizem que só se encontram no infinito, posso afirmar que sou apenas um poema que ninguém lê, mais um poema em direcção ao abismo.

E depois de abrir os olhos, de ver o mar aprisionado no tecto da maternidade, pequei na mão da minha mãe e levei-a a ver o capim que nunca ninguém percebeu de onde vinha aquele cheiro inconfundível depois das chuvas; que saudades…

Das acácias?

Daquele livro que me observa, daquela fotografia que me olha, e atrevo-me a dizer que são as únicas coisas que me observam; como aquele lindíssimo olhar que me seguia enquanto eu passava transportando uns calções coloridos e as sandálias de couro que ainda hoje sonham com o cacimbo pela manhã.

Porque choram as acácias, pai?

Pergunto a este livro que me observa como se eu fosse uma abelha poisada na flor proibida, o que é o amor. E à fotografia onde habitam os meus pais, questiono-a se sabe o que é a paixão…

E deparo-me que este livro é apenas um livro, e que esta fotografia não tira os olhos de mim, desde que nasci num Janeiro recheado e sol e de muito calor.

Que lindo, mãe…

Que lindo é o mar!

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 27/09/2022

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Dos livros estes livros

 Deixou cair as asas sobre o mar e adormeceu; no dia seguinte deu-se conta que todas as fotografias que tinha escondido dentro da pequena caixa de sapatos número trinta, rés-do-chão esquerdo, tinham desaparecido como anteriormente já tinham desaparecido dois livros de poesia de AL Berto, um livro do Pacheco e um outro de Lobo Antunes.

Com os livros de poesia de AL Berto, muitos anos antes de perder as asas, teve uma enorme discussão, pois estes quase sempre não gostavam de ser manuseados, folheados, quanto ao livro do Pacheco, esse, estava sempre com dor de cabeça.

O dia erguia-se entre os seios dela, da rua, regressavam aos poucos as loucas buzinas dos transeuntes em delírio, como regressam ao final da tarde os estorninhos parecendo uma orquestra de zumbis, mas quanto aos dois livros de poesia de AL Berto, hoje, e enquanto os folheava e manuseava, não se queixaram de tal, até que o livro do Lobo Antunes me questionou a razão do par de asas estar sentado sobre eles, quando poderiam muito bem estar na minúscula sala de jantar; e porque não suporto birras nocturnas, puxei de um cigarro e fui ver o maldito mar daquela última noite.

O mar estava chocho, a maré tinha acabado de deixar o quarto e nele deixou impregnado o invisível perfume que apenas as marés usam, junto à janela havia uma secretária onde dormiam pedaços de papel escritos no século passado e que ele já nem se recordava; que conste que tratava-se apenas de algumas cartas que nunca foram enviadas, portanto sem remetente, e duas ou três receitas de culinária que nunca se atreveu a experimentar.

O mar estava enjoado. Nos lençóis, uma pequena mancha de esperma, desenhava a manhã que mais tarde acordaria e ninguém saberia se ia terminar. Numa das paredes, pequenas frestas olhavam-no, e começou a acreditar que estava a ser observado pelo defeituoso silêncio que muitas vezes se alicerçava sobre o peito e, quase sempre não entendia a razão.

Sabia que um dia seria apelidado de anjo azul, de azul tinha o pulso pincelado, mas de anjo, de anjo nada tinha, apenas as asas que deixara cair sobre o mar.

Sabíamos que a noite trazia sempre uma pequena malga de sopa, uma sandes de nada e dois ou três cigarros, depois, acreditando que sabia voar, colocou as asas e lançou-se da clarabóia…

Estatelou-se no pavimento como se fosse um pássaro que acabasse de sofrer um AVC, até que do mar, em passo apressado, vieram em seu auxílio as fotografias que tinham desaparecido da pequena caixa de sapatos; ouviam-se os lobos que aos poucos se despediam da maré, e esta, partiu.

Ele, depois de acordar, abraçou-se aos pequenos lençóis e ainda hoje inventa o sono antes de regressar a noite às suas mãos.

 

 

Alijó, 26/09/2022

Francisco Luís Fontinha

Poema da saudade

 

Talvez deste espelho que me observa,

Oiça as tuas palavras da despedida,

Escreva nas minhas mãos o sorriso da tempestade…

Talvez um dia eu seja a saudade,

Talvez ao outro dia,

 

Eu seja apenas um rio sem destino.

Talvez deste espelho que me observa,

Eu perceba porque a noite é uma lágrima

Que se despede do luar,

Talvez um dia

 

Eu seja o triste mar.

Talvez um dia eu seja o Inverno,

A geada pela manhã…

E deste espelho que me observa,

Oiço as cantigas da paixão,

 

Que corre,

Morre,

Talvez um dia o meu corpo seja apenas poeira,

Um fantasma travestido de sono,

Talvez um dia eu seja uma pequena lágrima

 

No teu rosto de feiticeira…

Talvez um dia sejamos o nada

Enquanto o tudo habita no altar da vaidade,

Talvez um dia o pobre seja a liberdade

Que brinca no poema da saudade.

 

 

Alijó, 26/09/2022

Francisco Luís Fontinha

Rio em revolta

 

Sento-me sobre esta triste pedra cinzenta,

Abraço-me ao silêncio escuro e frio…

Perco-me neste sonho que alimenta

A beleza deste rio,

 

Deste rio em revolta,

Enquanto morrem as palavras de escrever,

Da saudade que não volta,

Da saudade que te viu morrer,

 

Sento-me e espero o seu acordar,

Maldito poema de viver,

Sento-me junto a este mar…

 

Este mar de solidão;

Sento-me sobre esta triste pedra de ser,

Enquanto oiço os versos do coração.

 

 

Alijó, 26/09/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 25 de setembro de 2022

As abelhas das tristes Primaveras

 Sento-me nesta ausência percebendo que pertenço a esse mar imenso das paisagens do silêncio, oiço os teus gemidos de luz, percebo que sou apenas um pedacinho de nada em direcção ao abismo,

O frio e escuro silêncio da madrugada,

Oiço as fotografias enraivecidas que desde a noite passada resolveram, todas elas, invadirem os meus pensamentos, e percebo que cada personagem que habita nelas, são apenas sombras da minha infância,

Rasuro-me no espelho do quarto.

Ergo as mãos e sinto as amargas palavras escritas numa noite de neblina, onde barcos e putas deambulavam junto ao cais; parecia fácil, mas as tempestades voltaram do nada e amanhã…

Amanhã chove, amanhã chove…

Sento-me.

Invento o sono das persianas da janela e resolvo voar em direcção ao luar, como as abelhas em flor, como todos os pedacinhos de mel que sobejam no silenciado corpo nocturno do silêncio…

Inventam-se os gemidos da alvorada,

Amanhã?

Amanhã vou. Amanhã sonho. Amanhã eu faço…

E amanhã morre o derradeiro sarcófago das Primaveras em florida paisagem, porque nela habitam os pássaros dos pequenos milagres, porque o sono transporta o desejo e pelas primeiras imagens observadas, nada a declarar; culpado.

Levanta-se o reu. Levantei-me.

Idade? Desde ontem, ao final da tarde, fugiram todas as minhas palavras,

Cansado?

Pior; morto.

Em frente.

Amanhã eu faço…

E o amanhã não existe, e amanhã pertencerá às primeiras imagens da saudade, porque amanhã…

Amanhã eu faço.

Tudo eu tudo eu tudo eu…

Morreu.

Cansou-se das cavernas e foi viver para junto do mar da saudade, onde em pequenino brincava com uma mão de veludo e havia sempre um olhar protector a observá-lo, hoje

Amanhã eu faço.

E quando me pergunto o que faz um pedacinho de mel poisado num dos meus poemas…

Ele, ela, responde-me

Nada.

Peso.

Silêncio.

E mesmo assim continuam a morrer as abelhas das tristes Primaveras, como morreram as minhas três primeiras tristes palavras,

Junto ao mar.

Nasceram as acácias, nasceram as primeiras lágrimas, nasceram as sombras e das sombras nasceram a lua e o sol; mesmo assim, ele, ela, continuam a vaguear sobre aquele rio onde mergulhavam as sílabas da insónia.

Amanhã.

E hoje?

Amanhã todos os pedacinhos de mel serão crucifixos suspensos nas fendas do triste gesso que circundam o sótão do medo.

Medo. Medo. Medo.

Porque morrem as acácias, mãe?

Porque se apaixonam pelo triste silêncio, porque descem sobre a cidade as lágrimas dos grandes rochedos e o mar é apenas uma imagem…

Percebes agora porque morrem as acácias?

Não mãe…

E mesmo assim continuam a morrer as abelhas das tristes Primaveras, como morreram as minhas três primeiras tristes palavras,

Junto ao mar.

E junto ao mar ficarei à espera.

 

 

 

 

Alijó, 25/09/2022

Francisco Luís Fontinha

(ficção)

sábado, 24 de setembro de 2022

A menina das serpentes

 Cerro os olhos,

Percebo que transporto na mão

As lágrimas da alvorada,

Lamento informar vossa excelência,

Mas esta madrugada é de graça,

 

Puxo de um velho cigarro,

Não me lembro de nada,

Lamento,

Parece que acordaram agora as acácias,

E do outro lado da rua,

 

Nem um pequeno sorriso…

Lamento informar vossa excelência,

Mas o rio deixou de correr para o mar,

À janela, a menina das serpentes,

Chora,

 

Acreditava nos sonhos,

E dou-me conta que os sonhos são cadáveres de sono

Descendo a Calçada da Ajuda,

E se ajuda ou não ajuda,

Ela, dorme sobre a erva laminada da manhã,

 

Cerro os olhos,

Percebo que transporto na mão

As lágrimas da alvorada,

E de um pequeno sorriso…

Observo-o… lamento informar vossa excelência.

 

 

Alijó, 24/09/2022

Francisco Luís Fontinha

Jardins da solidão

 Vive-se,

Enquanto este pequeno instante voa sobre o mar,

Enquanto esta velha flor

Brinca nos jardins da solidão,

 

E no meu peito

Oiço os longínquos apitos dos petroleiros em sofrimento,

Vive-se,

Enquanto se respiram as palavras que a madrugada vomita

 

Contra o silêncio dos pássaros,

Vive-se acreditando no Outono,

Nas fotografias suspensas sobre a mesa-de-cabeceira,

Vive-se,

 

Como pedras alicerçadas às marés do inferno,

Enquanto um banco de jardim, dorme,

Sonha com as amendoeiras em flor…

Também ele vivendo

 

No sonho da serpente,

Vive-se neste labirinto de mágoas

Transversais ao desejo,

Depois…

 

Acordam em mim,

Pela manhã….

As canções em revolta,

E um grito se dissipa no luar.

 

 

Alijó, 24/09/2022

Francisco Luís Fontinha