segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Pedacinho de mel

 Se estas mãos acantonadas

Escrevessem nas páginas sonâmbulas

Do meu pedacinho de mel,

Se estes olhos em lágrimas luar

Poisassem nas tuas pétalas encantadas,

O poema voava sobre o mar…

E as minhas palavras amarguradas

Morriam nos lábios de uma abelha,

 

E da noite acordaria a paixão.

E se o meu pedacinho de mel

Voasse nos meus braços,

A tela fantasma da solidão

Transformar-se-ia em luz…

Depois de adormecer a alvorada.

Se estas mãos acantonadas

Escrevessem nas páginas sonâmbulas

 

Do meu pedacinho de mel,

A noite pincelava-se de dia,

Como as flores tristes dos finais de tarde.

Se o meu pedacinho de mel

Dançasse na madrugada,

Desenhar-se-ia nas nuvens

A enxada desgovernada do silêncio

Em pequenas gotículas de desejo.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 29/08/2022

domingo, 28 de agosto de 2022

As tristes marés da madrugada

 Quando o corpo incendeia

As tristes marés da madrugada,

E sobre a ponte invisível do luar,

À meia-noite, uma flor de espuma,

Dorme na mão que semeia

O beijo de mar;

E peço à Virgem bruma

Que desenhe na alvorada,

 

Esta pequena canção de saudade.

Quando o corpo se enfeita de amanhecer

Nas sonâmbulas estrelas que habitam na cidade,

E o corpo é desejado,

E por vaidade,

O poeta enforcado,

Sem o saber,

Dorme junto ao mar…

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 28/08/2022

sábado, 27 de agosto de 2022

Pedacinho de mar

 Porque te aprisionas

Nas nuvens da madrugada,

Porque te escondes nas palavras

Das noites magoadas,

Porque danças no amanhecer,

Porque habitas nesta estrada…

Porque és poema canção,

Canção de escrever,

Escrever coisa nada.

Porque és pedacinho de mar

Das tardes em revolução,

Porque voas na boca amar

Das palavras em construção,

Porque iluminas as noites sem dormir

E nas noites de luar…

Porque teimas em não sorrir,

Sendo tu um pedacinho de mar.

Porque te aprisionas

Nas nuvens da madrugada,

Quando o teu cabelo é samba,

Nos ventos de nortada.

Porque és pedacinho de mar

Menina das telas adormecidas,

E quando começas a voar…

Voar sobre as horas perdidas,

Sobre as mangueiras de infância…

Porque choras, pedacinho de mar

Nas marés esquecidas.

O traço no teu corpo desejado,

O silenciado beijo na boca do inferno

Em lágrimas mãos do poeta…

Meu pedacinho de mar ancorado,

Nas tristes rochas lunares,

Meu pedacinho de mar

Te peço para não chorares,

E te peço para voar…

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 27/08/2022

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Este mar da infância

 Sinto-o…

Este mar da infância

Que nos separa em desejo,

Este mar poema,

Neste mar teu beijo,

Sinto-o…

Este mar desenhado

Entre os nossos corpos de amanhecer,

Entre os nossos lábios de alvorada,

Sinto-o…

Este mar de escrever

Ao teu corpo abraçado;

Sinto-o…

Este mar sem pátria,

Quando nos teus olhos

De amêndoa encantada…

Vê este mar da infância.

Sinto-o…

Quando o teu corpo semeado pelo vento

O meu mar… te deseja.

 

 

Francisco Luís Fontinha

25/08/2022

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Um pouco mais de azul

 Vivíamos dentro de uma pequena caixa de sapatos, tamanho trinta e dois. Quando descíamos a rua, do lado direito, junto à farmácia, ouvíamos as gaivotas que tínhamos trazido de Luanda e quando acordava o sol, às vezes sim, outras, nem por isso, eu inventando noites de luar que partilhava com os velhos triciclos com assento em madeira e que devido à idade, todos os parafusos e porcas rangiam como rangiam os duzentos e seis ossos do meu avô Domingos; antes de o barco zarpar, percebia que a minha mão minúscula era suficiente preguiçosa para desenhar nuvens de despedida nos céus de uma cidade a desaparecer no horizonte, como desapareceram todos os papagaios em papel da minha infância.

O dinheiro era minguo e apenas dava para beijos, carinho e fatias de felicidade, que ainda hoje, passados mais de cinquenta anos, recordo como saudade.

Nunca gostei da escola. Enquanto a professora ensinava as diversas matérias e de casa, todos nós, eu e os meus colegas, levávamos os ensinamentos de respeitar os professores, funcionários e nunca esquecer, os mais velhos; hoje, parece que esses ensinamentos deixaram de existir e os putos, por tudo e por nada, fazem birras imbecis fruto da educação que têm em casa… e uma palmada no rabo nunca fez mal a ninguém.

Quando acordávamos, em pleno Inverno, os cortinados eram substituídos por finos fios de geada, pois as janelas, por cansaço ou outra qualquer razão, eram desprovidas de vidros, que na altura já era um grande avanço tecnológico, já tínhamos ar condicionado natural.

O avô Domingos passeava o machimbombo pelas ruas de Luanda, e quando regressava ao final da tarde, eu esperava-o sentado em cima do portão, porque sabia que receberia abraços e beijos; e trazia-me sempre um pedacinho de mar invisível na algibeira.

Aos Domingos, aproveitava-me da paciência do meu pai e íamos até ao porto de mar olhar os barcos; a minha paixão de criança. Olhar os barcos e inventar círculos de luz sobre o azul-mar que ainda hoje guardo no peito.

E assim fui crescendo, dentro de uma pequena caixa de sapatos número trinta e dois e nunca esquecendo o silêncio do Mussulo.

 

 

Francisco Luís Fontinha

23/08/2022

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Arte – Francisco Luís Fontinha



 

Fotografia abstracta

 

Não posso mais, doutor,

São estas palavras,

São estes rios,

São outros mares,

São outros corpos possuídos,

Doutor,

Enquanto escrevo, morrem pessoas,

Enquanto durmo, nascem crianças,

Enquanto pinto,

Embebedam-se criaturas, poetas e putas,

Doutor…

E a música, doutor?

O que tem a música!

Tem dentro dela o silêncio,

Tem a alvorada,

Tem o medo e o sonho,

E não tem nada.

Doutor.

Percebe agora?

Porque voar é fácil,

Porque dormir é canseira,

Porque sonhar é uma merda,

Uma merda junto à lareira.

Não posso mais, doutor,

São as equações,

São estas tristes fotografias,

São as lápides,

São as flores,

Doutor? Ainda aí está? Junto à árvore?

É a chuva lá fora,

São as acácias a morrer,

São as palavras,

São os ossos a correr.

Porquê, doutor?

E enquanto chove,

As almas gritam,

As enxadas no Douro, revoltam-se…

E os homens?

Ai doutor,

Esses,

São uns covardes,

Tudo aceitam,

Tudo comem,

Como carneiros,

Como ovelhas.

Sabe, doutor?

Não.

Morreu o Zé Gato,

Morreu-me o cão,

O canário,

Uma tristeza, doutor,

Uma tristeza,

Esta aldeia,

Sem beleza,

Sem sol,

Sem água benta,

Só fachada, doutor.

Pura fachada,

São as montanhas a arder,

São as palavras a morrer,

São estes rios,

Tristes,

Frios.

Sabe, doutor?

Não, diz, diz…

São os pulhas que espancam a mulher,

São crianças a sofrer,

Algumas, sabe doutor?

Sofrem antes de nascer,

Sofrem até morrer…

Depois, depois acordam os pássaros,

Libertam-se as nuvens das prisões invisíveis,

Estas sim, as nuvens não são como os homens do Douro,

Revoltam-se,

Gritam,

E o mais engraçado…

Nunca morrem, como nunca morrem os poetas.

Os poetas são eternos,

São canção,

São revolta,

Sim doutor,

Revolta,

Porque estes gajos metem nojo,

Os caneiros,

As ovelhas,

As flores e as abelhas…

Sabe, doutor?

Não, diz,

Sempre acreditei que um dia,

Que um dia…

Sim,

Que um dia sonhar não era uma merda,

Que um dia,

Que um dia, todos os dias, todos os meninos…

Brincavam junto ao mar;

Como brincam os peixes

E as gaivotas,

Como brincam os amores

E todas as paixões,

Que um dia,

Sabe doutor?

Que um dia os homens não guerreavam,

Que um dia, as guerras,

Eram apenas uma fotografia,

Longínqua e abstracta.

E depois, doutor,

Depois a culpa é do macaco;

Coitado…

Coitado do macaco.

 

 

Alijó, 18/08/2022

Francisco Luís Fontinha