quinta-feira, 4 de agosto de 2022

O arco-íris dos peixes

 Tão triste,

As paisagens que poisam na tua mão e desconhecem as palavras da madrugada; tão triste, quando percebo que no teu olhar habitam as primeiras chuvas invisíveis das noites escondidas pelas nuvens em poesia,

E do teu sorriso, a tristeza dos Invernos quando descia pelas sombras do amanhecer a penugem manhã, quando sabíamos que lá fora, junto ao rio, existiam as palavras desenhadas pela tua mão cansada, existiam as palavras inventadas pela tua boca sonolenta e, no entanto, as cinzas dos teus ossos vagueavam pelo corredor apilhado de livros, revistas e vinis…, tão triste, mãe,

As músicas envenenadas nas telas desmaiadas, as palavras cintilantes dos vinhedos sombreados, tão triste, mãe

As paisagens.

Que poisam na tua mão e desconhecem as palavras da madrugada, tão triste, a masturbação intelectual dos pássaros, tão triste mãe,

A morte,

Quando vínhamos das silenciadas montanhas e não sabíamos que sobre as árvores, e não sabíamos que junto à lua, tão triste, mãe,

Viviam todas as cores do arco-íris e que todos os peixes sofriam nas tuas lágrimas. O poema, aos poucos, suicidava-se nos teus cabelos, mas do outro lado da rua, pertinho da pequena árvore da solidão, brincavam os meninos de papel que ainda ontem eram apenas cadernos quadriculados,

Tão triste, mãe,

O vento quando se enforca nas árvores, tão triste,

O pai não saber voar.

E quando poisavam na tua mão, desconheciam as palavras da madrugada, tão triste, a masturbação intelectual dos pássaros, tão triste, mãe, as tristes madrugadas de insónia,

Porque eramos apenas invenção do sono.

Do rio, os barcos cinzentos das esplanadas avançavam contras os rochedos e ouvíamos as palavras das pequenas pirâmides de areia. A maré, entre saudades e sonos trocados, estacionava-se juntinho á tua lápide…

Até que o rio desparecia no horizonte. Tão triste, mãe

Quando um filho pinta as lágrimas da noite nas pequenas vidraças da saudade.

Assim sendo, que chova e te leve até ao distante luar; tão triste, as palavras inventadas pela tua boca.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 04/08/2022

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

O zincado medo das sanzalas de prata

  

Finíssimas lâminas de luz atravessavam o teu corpo habitado pelas gotículas incineradas que a madrugada poisava e num ápice silencioso, à velocidade do desejo, voavam depois sobre as marés lindas de Inverno; um barco apaixonado rodopiava nos teus seios que da tela acabada de acordar, pincelada pela noite anterior, escrevia na fina areia da saudade…

Amo-te.

Amo-te, não percebendo o infame desejo que nas mãos do artista vive a insónia construída de luz e fogo. Não sabíamos que nos candeeiros a petróleo que brincavam no atelier, alguns deles, perfeitos anormais, existiam as cansadas estrelas da alvorada, quando lá longe, alguém pestanejava ao silêncio teu corpo quando ainda menino, inventava corridas á volta da lareira.

Tínhamos a fome do desejo e a dor do prazer; as palavras desciam pela tua pele como se fossem pedacinhos de chuva sobre o zincado medo das sanzalas de prata, e mesmo assim, amavas-me, e mesmo assim, tínhamos entre mãos todos os poemas da cidade.

Pincelada pela noite anterior, escrevia na fina areia da saudade os gemidos magnânimos dos pássaros em cio, quando sabíamos que um dia a saudade seria apenas algumas folhas em papel, cansadas pelas tempestades dos tristes sorrisos de Primavera, distantes dos infelizes abraços que a noite transportava para o rio.

Amanhã, a sanzala grita

Das lágrimas invisíveis dos tons de oiro que poisavam no teu cabelo, percebia-se que a cidade fervilhava como fervilham os sexos junto ao mar, assim que acordávamos, ouvíamos os belos socalcos do Doiro, entre rabelos e sombras de enxada nas mãos calejadas da madrugada.

Amanhã, a sanzala grita como gritam os teus braços quando se alicerçam aos distantes luares que uma infância aprisionou antes do nascer do sol. A vontade de correr ficou estacionada perto da ponte metálica que servia de esconderijo quando eramos atacados pelos famintos pássaros que transportavam os desejados poemas em pequenas quadriculas num qualquer papel de parede; morríamos.

Hoje, somos pedaços de nada.

Que da tela acabada de acordar, pincelada pela noite anterior, escrevia na fina areia da saudade…

Amo-te, sabendo que ontem tinham morrido todos os riscos deixados sobre a areia da infância.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 03/08/2022

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Olhar em despedida

 Trazias no olhar

A espada cansada da guerra

Que os meninos em brincadeira

Desenhavam na sonâmbula alma

As tristes palavras da alvorada,

 

E tu, em gritos pedaços de neblina

Dançavas sobre a água calma do rio

Sem perceberes que em cada luar

O uivo grito se alicerçava aos teus ossos

De poeira esbranquiçada.

 

Trazias no olhar

As lágrimas da mentira envenenada

Que não sabia voar…

Que não sabia nada.

Trazias no olhar

 

A saudade,

A dor triste oiro

Nos braços da madrugada;

Trazias no olhar

A espada cansada da alvorada,

 

Enquanto os meninos em brincadeira

Escreviam na tua mão

As palavras em despedida;

Trazias no olhar

A dor fingida da partida.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 29/07/2022

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Saudade

 E não sabíamos que tinhas nos olhos

Uma lágrima de luz

Quando o teu cabelo voava sobre o mar

Depois de morrerem todas as gaivotas

E não sabíamos que nas tuas mãos

Habitavam silêncios de dor

 

Travestidos de luar.

E não sabíamos quando vinha da montanha

A solidão empunhando uma enxada

Depois sentava-se ao teu lado

Até que as flores do teu peito

Murchavam.

 

E não sabíamos porque os espelhos

Da caverna onde te escondias

Dormiam durante o dia;

Porque da noite

Erguiam-se as sombras envenenadas

Pela solidão absorvida nas tuas palavras

 

Gemias.

Gritavas silêncios de dor

Como gritam as crianças quando acordam

Nos seios de sua mãe. E não sabíamos

Que dentro de ti, à meia-noite, um rio de luz

Descia o teu corpo…

 

E não sabíamos que hoje

Vives neste meu corpo despedaçado

Enquanto uma pedra de ninguém

Flutua sobre a cidade;

Porque nunca soubemos

O que é a despedida.

 

 

Alijó, 28/07/2022

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Trinta dias fingidos

 

Trinta dias esquecidos

Nos trinta dias vividos,

Eram trinta dias sofridos

Dos trinta dias adormecidos,

Trinta dias doridos

Nos restantes trinta dias sentidos,

Eram trinta dias pensativos

Nos trinta dias perdidos,

Tantos trinta dias cansativos

Quando existem outros trinta dias emagrecidos,

Eram trinta dias permitidos

Nos trinta dias trazidos,

Trinta dias pretendidos

Enquanto os trinta dias decorridos

São trinta dias hauridos,

Trinta dias indeferidos

Que dos trinta dias pruridos

Trinta dias são cumpridos

Em trinta dias auferidos;

Que se fodam os trinta dias geridos

Nos trinta dias inseridos,

Tenho tantos trinta dias fodidos…

Que nos dias trinta áridos

Tenho os trinta dias incorridos,

Nos trinta dias exercidos.

Trinta dias aderidos

Enquanto adormeço os trinta dias incorridos…

Trinta dias supridos

Dos trinta dias garridos.

São trinta dias do caralho ocorridos

E outros trinta dias devidos;

Que se fodam os trinta dias fingidos

 

Dos trinta dias convertidos.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 27/07/2022

(Desenho de Francisco Luís Fontinha)

terça-feira, 26 de julho de 2022

Duzentas mil palavras

 Tínhamos duzentas mil palavras sem razão

E uma espingardada de desejo,

Tínhamos a voz incendiada da madrugada

No cortinado beijo,

Tínhamos na mão a triste enxada

No grito de uma canção,

 

Tínhamos o silenciado

Cansaço dos socalcos ao Douro mergulhado,

Tínhamos a luz em demanda tristeza

Correndo montanha abaixo,

Tínhamos o rio crucificado

Na paisagem beleza,

 

Da paisagem alimento.

Tínhamos a uva invisível amanhecer

Que entre mãos emagrecia,

Tínhamos as palavras de escrever,

Tínhamos a alegria…

Tínhamos duzentas mil palavras sem razão

 

Nos seios teu maldizer,

Tínhamos poesia,

Tínhamos as flores em papel cremado

Nas cinzas que ele sentia…

Tínhamos as duzentas mil palavras de viver,

No viver encarcerado,

 

Do viver adormecido.

Tínhamos o vinho lunar

No poema desamado,

Tínhamos no corpo escondido

A lâmina triste mar…

Deste vinho embriagado.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 26/07/2022

Fotografias e pedacinhos de saudade

 Nasci, logo em seguida o meu pai inventou o sono e a paixão. Numa pequena caixa de sapatos, onde guardava as recordações da breve estadia no ex Congo Belga, fotografias e pedacinhos de saudade, colocou as minhas primeiras palavras; a cidade é o cansaço quando o transeunte tropeça na calçada que tem janela para o mar e onde muitos meninos brincavam com barcos em papel e nuvens coloridas e sanzalas de prata onde habitava o silêncio que transportava as pequenas palavras do menino…

É tão pequenino, senhora enfermeira!

E diziam que voava em todos os finais de tarde. Depois, de gatinhar em gatinhar, de sombra em sombra, o dito menino começou a construir sorrisos nos lábios da mãe e a desenhar traquinices no olhar do pai.

Tínhamos no quintal galinhas, pombas e mangueiras, onde, debaixo destas, por vezes, dormiam os sonhos que regressavam da baía depois de contornarem as palmeiras que hoje são apenas cortinados entre o hoje e o ontem; eramos felizes.

Nasci, logo em seguida o meu pai inventou o sono e a paixão, depois inventou a noite, as estrelas, os musseques, as palavras, o cacimbo, o capim… e por último, o beijo. Sabia que um dia, talvez ontem, talvez amanhã, nasceriam gladíolos pincelados de orvalho, depois, quando acordasse o despertador que habita na mesinha-de-cabeceira, a voz da tristeza iluminaria a secretária onde brincam, o meu pai e a minha mãe e dizem-nos que é a vida.

É a morte, digo eu. As pombas talvez ainda façam voos rasantes junto ao Grafanil, quanto às mangueiras, essas coitadas, alguma mão as assassinou apenas porque em todos os finais de tarde, junto à noite, davam guarita ao menino dos calções que passava as horas a inventar minutos de silêncio para mais tarde guardar dentro da pequena caixa de sapatos.

Fotografias e pedacinhos de saudade, colocou as minhas primeiras palavras; a cidade é o cansaço quando o transeunte tropeça na calçada que tem janela para o mar e onde muitos meninos brincavam com barcos em papel e nuvens coloridas e sanzalas de prata onde habitava o silêncio que transportava as pequenas palavras do menino porque durante a noite o desenho acordava e de janela em janela e de palavra em palavra todas as sombras… hoje fotografias.

Acordava a manhã e o meu avô Domingo passeava um velho machimbombo pelas ruas de uma Luanda prisioneira, hoje, de algumas fotografias e cintilantes recordações; hoje, apenas recordações. A Luanda, o avô Domingos, o meu pai, a minha mãe, a minha avó e apenas o triciclo com assento em madeira teima em durante a noite fazer alguns passeios no tecto da alcofa onde antigamente a minha mãe desenhava o mar.

Inventou o sono e a paixão.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 26/07/2022