terça-feira, 26 de julho de 2022

Duzentas mil palavras

 Tínhamos duzentas mil palavras sem razão

E uma espingardada de desejo,

Tínhamos a voz incendiada da madrugada

No cortinado beijo,

Tínhamos na mão a triste enxada

No grito de uma canção,

 

Tínhamos o silenciado

Cansaço dos socalcos ao Douro mergulhado,

Tínhamos a luz em demanda tristeza

Correndo montanha abaixo,

Tínhamos o rio crucificado

Na paisagem beleza,

 

Da paisagem alimento.

Tínhamos a uva invisível amanhecer

Que entre mãos emagrecia,

Tínhamos as palavras de escrever,

Tínhamos a alegria…

Tínhamos duzentas mil palavras sem razão

 

Nos seios teu maldizer,

Tínhamos poesia,

Tínhamos as flores em papel cremado

Nas cinzas que ele sentia…

Tínhamos as duzentas mil palavras de viver,

No viver encarcerado,

 

Do viver adormecido.

Tínhamos o vinho lunar

No poema desamado,

Tínhamos no corpo escondido

A lâmina triste mar…

Deste vinho embriagado.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 26/07/2022

Fotografias e pedacinhos de saudade

 Nasci, logo em seguida o meu pai inventou o sono e a paixão. Numa pequena caixa de sapatos, onde guardava as recordações da breve estadia no ex Congo Belga, fotografias e pedacinhos de saudade, colocou as minhas primeiras palavras; a cidade é o cansaço quando o transeunte tropeça na calçada que tem janela para o mar e onde muitos meninos brincavam com barcos em papel e nuvens coloridas e sanzalas de prata onde habitava o silêncio que transportava as pequenas palavras do menino…

É tão pequenino, senhora enfermeira!

E diziam que voava em todos os finais de tarde. Depois, de gatinhar em gatinhar, de sombra em sombra, o dito menino começou a construir sorrisos nos lábios da mãe e a desenhar traquinices no olhar do pai.

Tínhamos no quintal galinhas, pombas e mangueiras, onde, debaixo destas, por vezes, dormiam os sonhos que regressavam da baía depois de contornarem as palmeiras que hoje são apenas cortinados entre o hoje e o ontem; eramos felizes.

Nasci, logo em seguida o meu pai inventou o sono e a paixão, depois inventou a noite, as estrelas, os musseques, as palavras, o cacimbo, o capim… e por último, o beijo. Sabia que um dia, talvez ontem, talvez amanhã, nasceriam gladíolos pincelados de orvalho, depois, quando acordasse o despertador que habita na mesinha-de-cabeceira, a voz da tristeza iluminaria a secretária onde brincam, o meu pai e a minha mãe e dizem-nos que é a vida.

É a morte, digo eu. As pombas talvez ainda façam voos rasantes junto ao Grafanil, quanto às mangueiras, essas coitadas, alguma mão as assassinou apenas porque em todos os finais de tarde, junto à noite, davam guarita ao menino dos calções que passava as horas a inventar minutos de silêncio para mais tarde guardar dentro da pequena caixa de sapatos.

Fotografias e pedacinhos de saudade, colocou as minhas primeiras palavras; a cidade é o cansaço quando o transeunte tropeça na calçada que tem janela para o mar e onde muitos meninos brincavam com barcos em papel e nuvens coloridas e sanzalas de prata onde habitava o silêncio que transportava as pequenas palavras do menino porque durante a noite o desenho acordava e de janela em janela e de palavra em palavra todas as sombras… hoje fotografias.

Acordava a manhã e o meu avô Domingo passeava um velho machimbombo pelas ruas de uma Luanda prisioneira, hoje, de algumas fotografias e cintilantes recordações; hoje, apenas recordações. A Luanda, o avô Domingos, o meu pai, a minha mãe, a minha avó e apenas o triciclo com assento em madeira teima em durante a noite fazer alguns passeios no tecto da alcofa onde antigamente a minha mãe desenhava o mar.

Inventou o sono e a paixão.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 26/07/2022

sábado, 23 de julho de 2022

Os pássaros da madrugada

 Desciam as escadas enquanto mergulhávamos nas palavras escritas que só o velho mendigo conhecia e depois acordávamos entre os pássaros da madrugada e depois olhávamos a maré em tons de cinzento sem percebermos que a noite é a morte vestida de estrelas abraçada à dor que apenas o corpo consegue desenhar na madrugada porque de luas e percebes estávamos fartos de desenhar na alvorada ora porque diziam que estávamos mortos se ainda conseguíamos escrever na areia molhada dos teus seios suspensos as canções de revolta enquanto uma enxada brincava no silêncio do deserto antes de acordarem os pássaros da madrugada?

 

És flor deste jardim construído nos socalcos do desejo. Abro a janela do medo enquanto oiço as acácias que brincam no teu corpo, depois, percebo que ninguém habita a tua mão onde deixo ficar as minhas palavras como se estas fossem a despedida; o poeta vai partir em direcção ao mar, porque neste porto apenas vagueiam barcos em papel e fotografias da tua dor.

Desciam as escadas enquanto mergulhávamos nas palavras escritas que só o velho mendigo conhecia e depois acordávamos entre os pássaros da madrugada, sem percebermos que dentro do círculo com olhos verdes, as palavras semeiam-se como se semeia o medo de acordar junto ao velho plátano de uma infinita infância entre montanhas e socalcos e seios de luz e lágrimas de luar; e aos poucos percebia da tua respiração que em breve voarias como voam os pássaros quando percebem que o silêncio é uma equação sem resolução. E que ainda hoje voas.

Diziam que estávamos mortos se ainda conseguíamos escrever na areia molhada dos teus seios suspensos as canções de revolta enquanto uma enxada brincava no silêncio do deserto antes de acordarem os pássaros da madrugada, depois, ouviam-se as canções de despedida embrulhada nas lágrimas que apenas o poema consegue descrever, quando sentado num qualquer banco de jardim…

À dor que apenas o corpo consegue desenhar na madrugada.

Nada mais.

E que ainda hoje voas.

 

 

 

Alijó, 23/07/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 19 de julho de 2022

As gaivotas da minha infância

 

Um dia saberei onde habitam as gaivotas da minha infância. Um dia vou desenhar os cheiros e sombras da minha infância, depois, olharei o mar e lanço-me às marés da minha infância.

Um dia vou perceber porque voava a mulher vestida de negro e que de nuvem em nuvem, em danças vertiginosas, descia ao mar da minha infância, tal como eram as palavras da minha infância. Diziam-me que o silêncio, quando acordava, era mau presságio, e do outro lado do rio, ouviam-se as balas tristes que afoguentavam os homens da minha infância; então um laminado sonoro de batuques mergulhava no capim húmido da minha infância. Um alegre menino da minha infância chorava, o poema que habitava do outro lado da rua, esse, nem chorava nem ria nem brincava nem dizia nada. Porque quando nos silenciamos, aprendi hoje, os outros dizem tudo.

Um dia saberei porque escreviam as gaivotas da minha infância na húmida terra mergulhada nos cheiros da minha infância, porque hoje, o menino dos calções da minha infância é apenas um esqueleto que de triciclo na mão, escrevia círculos lunares na esplanada da minha infância. Vi o mar quando ainda dormia na barriga da minha infância e quando ouvia as gaivotas da minha infância, corria para os braços da minha infância.

Todos, incluindo o chapelhudo, ouvíamos o silêncio da minha infância, porque da baía avistávamos os barcos envenenados que o velho marinheiro, depois do almoço, levava a passear pelo Mussulo; não sabíamos que do mar, às vezes, vinham as crianças da minha infância de mão dada com as bonecas em trapos e em pedacinhos de riso, às vezes, muitas vezes, queriam fazer-nos querer que rir era proibido.

E ouvíamos uma voz que gritava; atira-lhes com poesia, porque os canalhas detestam poesia. Pudera.

Rir era proibido. E hoje procuro as gaivotas da minha infância, enquanto as sombras da minha infância, são equações complexas que na minha infância, em nada me serviam para fugir das gaivotas da minha infância.

O grito.

Porra.

Porra e Deus queira que amanhã chova como chovia na minha infância como gritavam na minha infância os tristes mabecos como dormiam os embondeiros da minha infância como o chapelhudo se erguia e transformava a minha infância em mar…

O mar que ficou lá.

E por cá, não gaivotas da minha infância. E por cá não espingardas da minha infância.

Um dia saberei onde habitam as gaivotas da minha infância onde jazem os ossos da minha infância como os barcos da minha infância no musseque da minha infância onde o zinco dormia depois das gaivotas da minha infância chorarem porque o mar da minha infância desertou como desertaram os corajosos da minha infância.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 19/07/2022

quinta-feira, 14 de julho de 2022

A paixão dos peixes

 

Semeávamos o sono no travesseiro teu corpo, depois abríamos a janela do teu sorriso com fotografia para o mar, entre as marés teu desejo, a lua poisava nas tuas coxas de infinita planície que apenas os peixes apaixonados percebem; até ouvíamos os pássaros quando suspensos no teu cabelo, até percebíamos porque morriam as árvores depois de envenenadas pelos pequenos lábios de beijo.

O desejo era imenso e o mar estava tão longe. O teu corpo é uma sonâmbula jangada em algodão que flutua em redor do escaldante sol, depois, pequenas gotículas de suor alicerçam-se à tua pele como as finíssimas películas de geada sobre as plantas adormecidas. Tínhamos as mãos acorrentadas à madrugada como se fossemos dois esqueletos em aço, como se fossemos apenas sombras de nada descendo a montanha.

Sabíamos que o sono alimentava o perfume dos teus gemidos quando a noite se embrulhava em ti como se esta fosse a mão de Deus procurando as esplanadas da solidão que aos poucos caiam sobre o mar.

Um café e uma torrada,

Ouvíamos os gritos da enxada prazer desbravando a terra arável que o teu corpo desenhava no meu peito, e entre pedaços de silêncio, ouvíamos os poemas de um tal Francisco brincando sobre a secretária da saudade, depois mergulhávamos na tórrida água do rio que lá longe, entre curvas e montanhas, entre horários desfasados e conversas de amanhecer, acabava por se esconder na tua alegre mão; não sabíamos o que a paixão fazia aos peixes, mas sabíamos que a nós, nos transformava em pedacinhos de papel colorido.

Um café e uma torrada, alguns livros e sons melódicos de um corpo em combustão.

Semeávamos o sono no travesseiro teu corpo, depois abríamos a janela do teu sorriso com fotografia para o mar, entre as marés teu desejo, sem perceber que da madrugada, um dia, viria o silêncio dos teus lábios, a chuva se abraçava a ti.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 14/07/2022

sábado, 9 de julho de 2022

Porque amam as serpentes

 

Porque amam as serpentes os vadios fantasmas do desejo, porque amam o silêncio os livros cansados do beijo, porque amam as pedras as tristes madrugadas do luar… porque amam os peixes as lindas canções de amar,

 

Porque morrem os esqueletos do mar,

Porque vivem as flores do meu jardim,

Porque amam os beijos o mar

E o mar fugindo de mim,

 

Porque habitam nestas pedras amaldiçoadas

Todos os versos do meu cansaço,

Porque morrem as madrugadas

Sem levarem o meu abraço,

 

Porque amam as serpentes os vadios fantasmas do desejo,

Porque fogem de ti as palavras em tesão,

Porque desenhas o teu beijo

O teu beijo em minha mão,

 

Porque voam as manhãs sem acordar

Depois de acordar o teu sorriso,

Porque fingem gritar

Os gritos sem juízo,

 

Os gritos sem mar.

Porque dizem que sou louco,

Do louco caminhar…

Porque dizem de tudo um pouco,

 

O pouco sem acordar.

Porque choras as lágrimas desejar

Neste complexo verso de escrever,

Porque riem os pássaros do mar

Do mar sem correr,

 

Do mar de dizer.

Porque caminhas na montanha voar,

Se voar é liberdade…

Se voar é viver,

Se voar é a saudade

Da saudade sem morrer,

Da saudade de dançar,

Dançar sem esquecer,

Esquecer que no mar,

No mar se viver sem querer.

 

Aos barcos que não deixo voar,

Aos barcos que são a minha solidão,

Dos barcos que quero pintar,

Pintar com a minha mão.

 

Porque morrem os esqueletos do mar,

Porque choram as lágrimas de chorar.

Porque vivem as marés de habitar…

Habitar nos teus olhos de amar.

 

Porque amam as serpentes os vadios fantasmas do desejo, quando além-mar,

Peço aos barcos que não vejo, peço aos barcos de desenhar, sorrisos em construção, porque amam as serpentes o beijo, o beijo tua mão…

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 8/07/2022

Criança mimada

 

Quando o beijo envenenado

Desce na tua boca em delírio alimento,

Quando a espada sobre a cabeça do condenado

Escreve o poema da verdade;

Quando as flores levadas pelo vento

Trazem as palavras da saudade,

 

Quando acorda a manhã, quando morre a madrugada.

Quando a tua sílaba alicerçada aos teus seios madrugar,

É canção revoltada,

Quando trazes a mim o desejo desejado

Que só a tua mão sabe desenhar…

Neste meu corpo cansado.

 

Quando tudo isto acontecer,

Quando o poema em construção

Deixar de viver

E voar nas mãos de uma criança mimada;

Então, terei o teu coração

Que nunca mais irei esquecer.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 8/07/2022