segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Os gritos das bolhas castanhas...


Pediram-me silêncios...
e eu, nas nuvens amarguradas da tempestade da insónia,
desenhei... gritos,
transformei abraços em pedaços de madeira,
escrevi beijos em bandejas com flores grisalhas,
tinham cabelos cinzentos,
os homens das esplanadas inventadas,
depois... depois sentei-me no pôr-do-sol,
chamei a mim a tristeza do fim de tarde,
peguei num cigarro quase moribundo... e vi-o morrer nos meus dedos,
sentia-lhe os últimos desejos,
sabia que pouco tempo depois morreria como um desprezado,
como tantos homens morrem,
como tantas crianças nascem...
como tantos cinzeiros esquecidos num roseiral,
pediram-me silêncios...
e pintei nas pratas enroladas do invisível desassossego,
bolhas castanhas com odor a calafrios...
o corpo emagrecido rangia,
os alicerces destruíam-se enquanto o vento se escondia numa locomotiva abandonada,
sem percebermos que nunca existiu um ponto fixo de chegada,
havia lanternas com dentes de marfim,
tínhamos no sótão um guindaste de brincar,
abríamos a janela,
e puxávamos o mar,
só para nós...
até que uma fina película de cacimbo comeu-nos as bolhas castanhas...
o corpo começou a arder,
os braços ancoravam-se aos indolentes amanheceres...
vi uma luz que vivia dentro de uma caixa de vidro,
acenou-me... e no tecto começaram a nascer gaivotas,
ouvíamos os apitos dos barcos de papel,
e nenhum marinheiro se atreveu a resgatar-nos dos gritos das bolhas castanhas...



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 1 de Setembro de 2014

domingo, 31 de agosto de 2014

O trapezista dos silêncios...


Esta casa que não cessa de chorar,
estas janelas com bocas de inferno e línguas de fogo...
para me atormentarem,
me enganam,
me sufocam,
alimentam-me as mãos depois do jantar,
e me tocam,
saciando a sede do rochedo sobre o telhado da saudade,
salpicando de sangue o meu corpo de pano...
esta casa que vi enlouquecer,
onde cresci,
onde morri... morri de sofrer,

Esta casa de engano,
estes livros mortos, cansados de viver,
esta casa com paredes de vidro e tecto de colmo...
o circo,
o circo regressa à minha terra,
eu, o palhaço das palavras,
o trapezista dos silêncios...
o que tem esta casa?
que me acorrenta ao soalho emagrecido pelo veneno do sofrimento,
esta casa... esta casa não existe, e eu, o palhaço das palavras...
olho esta casa de frestas e donzelas e crucifixos falsificados,
que o circo transporta nos finados...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 31 de Agosto de 2014

O suicidado poeta

Ele suicidou-se nas palavras,
transportava no peito uma ardósia de silêncio,
caminhava sobre o inventado mar das terras assustadas,
e acreditava nas palavras...
tinha um saco de pano onde tudo guardava,
cartas,
rosas embalsamadas...
e livros amachucados,
trazia na pistola uma bala de prata,
um coração de vidro...
e um beijo de lata,
apontou-a à caneta de tinta permanente,
e...
e suicidou-se nas palavras,
lá ficou ele entranhado nas terras assustadas,
como um cão raivoso,
como um pássaro sem asas,
o amor do poeta suicidado vestia-se de papel,
trazia nos lábios um poema amaldiçoado,
com palavras assassinas...
descia a montanha,
sentava-se junto à ribeira,
e na algibeira quase sempre uma caneta apontada,
a pistola com corpo de mulher,
nua, percebia-se na areia as curvas lunares,
e nuvens de insónia...
ele suicidou-se nas palavras,
quando a tarde ainda brincava nas terras assassinas.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 31 de Agosto de 2014

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

“amor simplificado”


Um coração mal apagado
poisa suavemente num cigarro apaixonado,
apelidam-no de “amor simplificado”,
o “amor simplificado” é um gajo porreiro,
escreve poesia,
vai todas as semanas ao barbeiro...
e ao deitar, reza,
um cadeado de palavras cerra-lhe a janela do quarto,
tem um espelho na garganta que transforma fome em alegria,
não sente ele o nascer do dia,
não quer saber ele da literatura,
nem dos rochedos com sabor a melancia...

O “amor simplificado” vive numa esplanada,
entre o mar e o “mercado”,
o “amor simplificado” tem escadas nas sobrancelhas,
domesticado e formatado como as abelhas,
nem dos rochedos com sabor a melancia...
ele tem medo,

Um coração mal apaixonado,
de mão dada com um cachimbo de prata,
o latir do cão que as trevas viu nascer...
faz com que ele invente bonecas de trapos,
e praias com areia de porcelana,
jazigos em lata,
nasce o sol e ele parece cansado de viver,
detesta os livros de farrapos...
tal como não aguenta os uivos das “madames” passeando na calçada,
o “amor simplificado” tem na testa um letreiro,
vendem-se poemas congelados
com odor a marmeleiro...

O tal,
o grandioso...

O “amor simplificado” é um gajo porreiro!


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 29 de Agosto de 2014

O útero da noite...


Não sei amar,
oiço o ruído da saudade que se acorrenta às frestas da alma,
há uma janela com acesso ao deserto,
não dou importância às pessoas com sorriso de vidro,
ou... ou que habitam as florestas com asas de aço,
têm mãos de palha, há nos seus dedos forcas em espera...
não sei amar,
e oiço do cansaço adormecido o acordar da tempestade,
uma rua dentro da algibeira,
uma moeda que nem dá para almoçar...
quanto mais... jantar,
e o mendigo que me acena e convida para dançar,

O menino dança?

Vai-te “foder” mendigo que eu não sei dançar,
um cigarro suicida-se nos meus lábios,
e no meu peito deita-se um pedestal encarnado,
não sei amar,
não sei escrever,
não sei fazer anda...
o cigarro grita pelo mendigo,
o mendigo toca-me no braço,
o meu braço começa a flutuar sobre as sílabas embriagadas,
e um poema vaidoso senta-se junto ao rio...
dou-me conta que lá fora é noite,
e não quero sair do útero da noite...

O menino dança?

Vai-te “foder” mendigo que eu não sei amar...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sexta-feira, 29 de Agosto de 2014

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Socalcos envenenados…


Este xisto onde me deito
E confesso os meus sonhos invisíveis,
Esta caverna sideral com clarabóias sombreadas,
Este medo de me perder na floresta dos bichos…
E este rio…!
Este rio com sabor a saudade,
Esta vida mergulhada numa cidade
Inventada,
Este xisto,
Esta montanha recheada de vaidades,
Estes pássaros que se alimentam dos meus ossos…
E me transformam em cadáver,


Este xisto e este cansaço
Que me suspendem nos rochedos do amanhecer,
As ondas que não cessam de brincar
No meu peito de sofrer,


E este abraço,
E este xisto rosado nas pálpebras da madrugada,
Esta estrada sem saída,
Esta rua deserta com palhaços,
Este xisto onde me deito
E um trapezista louco se abraça aos meus cabelos,
Este circo,
Este circo sofrido voando nos lábios dos socalcos envenenados…
Estes homens enforcados,
Este xisto,
Este xisto derretido em bocados,
Que se alicerçam aos meus segredos…



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quinta-feira, 28 de Agosto de 2014

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Sós


Orvalhara o feldspato frio do meu peito,
Inventaste a manhã para me obrigar a acordar,
Roubaste-me os sonhos que embrulhavam a noite de carvão…
Semeaste nos meus braços o desejo,
Plantaste em mim a flor proibida,
Plantaste em mim o jardim dos beijos,


Escreveste nos meus cabelos “amo-te”…
Quando do açafrão o amarelo amanhecer penetra o meu olhar,
Sinto as minhas pálpebras de papel voarem em direcção ao mar,
Sós…
Como se elas fossem o feldspato frio que se acorrenta ao meu peito,
E sei que me olhas enquanto escrevo,


Roubaste-me todas as canetas de tinta permanente que habitavam em mim,
Escondeste os livros e as sebentas do meu cansaço,
Guardas dentro de ti a chave do meu coração…
E apenas me deixaste os cachimbos adormecidos que a madeira apodrecerá,
Sem que uma fina lágrima se agarre ao espelho das tuas coxas,
Sós…!


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Quarta-feira, 27 de Agosto de 2014

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Geometria nocturna do prazer


Habita em nós uma jangada de silêncio,
permanecemos imóveis sobre as asas do vento,
pertencemos às rectas paralelas que se abraçam no infinito...
e se amam,
e se beijam,
somos a geometria nocturna do prazer,
às vezes só a cidade existe entre os nossos corpos,
às vezes... às vezes eles tocam-se e uivam sorrisos de neblina,
habita em nós a preguiça de acordar,
dizem-nos que lá fora chove, dizem-nos... dizem-nos que somos dois pássaros vadios,
em cio,
como este rio que nos engole,

Habitam em nós os tentáculos de silício com lábios de gelo,
procuramos o esconderijo de amar,
e ninguém...
e ninguém sabe o significado de “sílaba tonta”...

Escrever em ti,
como se deixasses de pertencer à jangada de silêncio...
e se amam,
e se beijam,
os nossos corpos argamassados pelo desejo,
viver...,
e se amam,
e se beijam...
os poemas esculpidos nos teus seios,
habitam em nós os moliceiros,
e um marinheiro nos guia até à eternidade...
e nos engana, e nos absorve... como se fossemos duas estrelas de suor...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Terça-feira, 26 de Agosto de 2014

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Noite envergonhada


Lapido-te,
Do barro crescem os teus seios de amanhecer,
Doces,
Baloiçando nas arcadas do Poente,
Transformo-te em ponte,
Pinto-te de esplanada junto ao Rio…
Lapido-te,
E entranho-me no barro teu corpo,
Viajo,
Como um velejador solitário,
Tu…
E eu…


Lapido-te,
Sabendo que lá fora há fome,
Miséria…
Guerras…
Mas… mas lapido-te como se fosses um diamante raro,
Inacessível,
Como as palavras que te penetram enquanto dormes…
Lapidando-te… lapidando-te sem o sentires,
Como a película do teu púbis mergulhada em sias de prata,
Ténue caravela dançando nos meus braços,
Lapidando-te,
Nas asas da noite envergonhada.



Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 25 de Agosto de 2014

domingo, 24 de agosto de 2014

Palavras com lábios de poema


Sou o legítimo dono da noite,
sou o candeeiro onde se esconde o mendigo,
o rio que não corre para o mar,
sou a ponte frágil em madeira que antes de ser ponte...
um caixote,
o cofre das minhas recordações,
as imagens,
os sons e os cheiros de uma terra que não existe mais...

Sou a videira que morreu no socalco,
sou o socalco que tombou...,
sou o cansaço legítimo e dono da noite,
a prostituta que sobe e desce a montanha dos segredos,
sou o vento de papel sobre a luz ténue da aldeia,
o sino que não se cansa de me acordar...
sou as palavras com lábios de poema,
dos sons e dos cheiros de uma terra que não existe mais...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 24 de Agosto de 2014