sexta-feira, 24 de março de 2023

Meia dúzia de retractos

 Enquanto escrevo, morro, enquanto escrevo, suicido-me na tristeza do poema, enforco-me na agonia de uma tela sem nome, suspensa numa manhã junto ao Tejo, do rio, vêm a mim os tristes cacilheiros, que entre viagens, me trazem o silêncio da despedida,

E despeço-me sem ter de quem me despedir, apenas me restam meia dúzia de retractos, meia dúzia de sombras…

E muitas dúzias de sonhos; morram todos os sonhos.

Morram todos os sonhos e todos os sonhadores e todos os poetas e todos os pássaros… e que morram também todas as noites com luar.

E já agora, que morram todos os cacilheiros e todos os barcos da minha infância.

Puxo do último cigarro. O veneno que me mantêm vivo e de boa saúde…

Inesperadamente, começo a odiar todos aqueles que morreram e que amei. Inesperadamente, começo a odiar-me, começo a odiar as minhas palavras, os meus desenhos… e todos os meus sonhos.

Enquanto escrevo, morro.

Suicido-me na tristeza do poema, enforco-me na agonia de uma tela sem nome como todas as minhas telas, sem nome.

De que serve um nome?

 

 

 

Alijó, 24/03/2023

Francisco

quinta-feira, 23 de março de 2023

Dos teus lábios a noite insipida

 Amo-te

Dos versos suspensos na madrugada

Das palavras semeadas no vento…

Amo-te

Pedacinho de flor

Que no meu jardim em poema

Cresce e brinca

Como uma criança mimada,

 

Amo-te

Do luar pincelado no teu olhar

Estrela cintilante

Amo-te

Enquanto a terra não se cansa de girar…

E Deus…

Em mim…

Sempre ausente,

 

Amo-te

Menina do mar

Canção embriagada

Amo-te…

Noite insipida

Que nos meus lábios dança

E dos teus lábios…

Encanta.

 

 

 

Alijó, 23/03/2023

Francisco Luís Fontinha

Abraço

 Abraça-me, meu pedacinho de mar,

Abraça-me enquanto respiro,

Enquanto pinto no teu olhar

As noites de insónia,

Abraça-me, meu pedacinho de mel…

Enquanto nas minhas mãos brincam as flores

E os pássaros de sonhar,

Abraça-me…

Abraça-me…

Enquanto a noite tem luar,

Enquanto a noite não me assassina

Com os sonhos de um cadáver sonolento,

E nunca te esqueças de guardar…

Junto ao peito,

O meu retracto…

Nem o silêncio do vento.

 

 

Alijó, 23/03/2023

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 22 de março de 2023

Cubo de vidro

 No esplendor da noite

Um fio de sémen

Poisa na sombra adormecida do meu esqueleto,

E da paixão dos pássaros,

Oiço os gritos de um Deus arrogante…

Distante dos rostos envenenados da solidão,

 

O rio,

Morre na minha mão…

Como morreram todos os rios,

Como se suicidaram todos os rios que conheci…

Todos,

Todos na minha mão,

 

Desenho no teu pincelado olhar

A tristeza que os dias transportam desde a montanha,

O sol, o sol esconde-se numa pequena caixa de sapatos,

E do corpo,

As pequenas lâminas da alegria…

Fogem em direcção ao mar,

 

Cai a máscara sobre o chão lamacento do silêncio,

Ouvem-se os gritos e gemidos da morte…

E da minha mão,

O enforcado rio em pedacinhos de sorriso…

Feliz;

Feliz porque deixou de sofrer…

E agora…

Brinca dentro de um cubo de vidro

Com janelas adormecidas

E olhos adormecidos…

 

 

 

Alijó, 22/03/2023

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 21 de março de 2023

O final do dia

 Às vezes

Pareço uma tela sem nome

Uma tela suspensa numa parede nua e fria

Um cadáver com fome

À espera do final do dia,

 

Às vezes

O meu Sol esconde-se nas montanhas desanimadas

Entre as árvores sem esperança

E as frias madrugadas,

 

Às vezes

Acredito que morri à nascença

Sou por isso um nato morto desencontrado

Vestindo um esqueleto de marfim,

 

E porra,

Porque às vezes,

Muitas vezes,

Estou tão cansado…

Tão cansado desta vida sem fim.

 

 

 

Alijó, 21/03/2023

Francisco Luís Fontinha

(Dia Mundial da Poesia)

quinta-feira, 16 de março de 2023

O silêncio dos peixes

 Às vezes

Era a chuva que nos abraçava,

Outras vezes,

Muitas vezes,

Era o desejo que nos silenciava.

 

Às vezes

Tínhamos o perfume de amêndoa

Que a manhã nos dava,

E tantas vezes,

Muitas vezes,

Não tínhamos nada.

 

Às vezes,

Poucas vezes,

Rezávamos,

Outras vezes,

Muitas vezes,

Embriagávamo-nos com o silêncio dos peixes…

Mas nunca nos disseram,

Que das outras vezes,

Umas poucas,

Outras tantas…

Havia uma estrela que nos olhava.

 

Às vezes,

Eu escondia-me na tua mão,

Outras vezes,

Tantas vezes,

Eu tombava no chão…

 

E de todas as vezes

Que me perdi nas outras vezes,

Guardo dentro de mim…

As vezes que sofri.

 

 

 

Alijó, 16/03/2023

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 3 de março de 2023

A mais bela flor do Universo

 Os sonhos são uma (merda) segredava ele aos pincelados pingos de chuva da manhã,

Depois, sentava-se na primeira sombra que encontrava e…

Esperava que o tempo se escoasse sobre os ombros.

Do outro lado da rua, junto à montra onde se passeavam espantalhos e pequenos monstros, um silêncio de sono veio até ele, olho-o e

Tombou no seu peito.

Das sílabas da carne ao desejo de fugir foi apenas um espasmo, ergueu-se da pedra onde tinha ficado esquecido vários dias, porque ao que parece ninguém reclamou a sua falta, e começou a correr em direcção aos rochedos de onde se podiam ver as primeiras lágrimas da manhã.

Um sorriso iluminou-o,

Era o sorriso de sua mãe,

Que voava por aquelas bandas, sem perceber porque razão o filho corria, corria apressadamente para tais rochedos.

Chegado aos rochedos, recordou a infância difícil, recordou todas as fotografias que já tinha rasgado e posteriormente lançado à lareira os pedacinhos que se amontoavam sobre a secretária, escreveu uma carta sem remetente, que tempos depois, alguém descobriu no bolso de um velho casaco que tinha ficado esquecido num barco aportado junto ao cais e em adiantado estado de decomposição,

O corpo morre, apodrece…

Pó, meu querido filho.

Brevemente serás pó.

E como tudo na vida, apenas pó,

Os sonhos sonhados e os sonhos não sonhados; poeira sobre um manto de lágrimas à espera do vento,

E quando acorda o vento,

O Santo Sepulcro da infâmia acorda, senta-se junto à lareira e…

E dizem que ele estava feliz.

Tão feliz, tão feliz…

Que lançou-se dos rochedos e há quem acredite que ainda hoje voa sobre os plátanos e as acácias,

 

 

Lâminas do cansaço

 

 

Procuras-me dentro deste pequeno cubo em vidro

Onde semeei as primeiras letras do alfabeto,

Procuras-me junto aos bares de uma Lisboa desencaixotada,

Triste memória,

Triste e ancorada,

 

Procuras-me enquanto o sono

Desce do primeiro silêncio em luar,

Olhas-me,

Olhas-me e acreditas que estou vivo,

Mas olha que não,

Que não,

 

Que não tenho sonhos,

Barcos para brincar,

 

Procuras-me nas estantes…

Talvez penses que me escondo dentro de um pequeno grande livro,

De poesia seria o desejado,

Mas começo a odiar a poesia,

As palavras,

E o dia…

 

Os sonhos são uma (merda) segredava ele aos pincelados pingos de chuva da manhã,

Depois, sentava-se na primeira sombra que encontrava e…

E o sono eterno apoderava-se dele,

Como a miséria,

Como a reencarnação do Diabo travestido de flor;

A mais bela flor do Universo.

 

 

 

 

Alijó, 03/03/2023

Francisco Luís Fontinha

(ficção)