sábado, 15 de outubro de 2022

Dissecação de um poema

 Poema – fotografia com palavras. Morreu de saudade, o poeta pega no bisturi da paixão e disseca a manhã que acaba de acordar. Dos lábios, em pequeno jeito, retira todos os beijos e poisa-os cuidadosamente sobre o papel amarrotado que o luar trouxe até à sua mão.

Depois de radiografar todas as sílabas, retiradas todas as vírgulas e pontos finais, o poeta, pega nos tristes parêntesis e coloca-os, não sobre o papel amarrotados, mas sim sobre a secretária onde dormem os livros Lobo Antunes, AL Berto, Pacheco, Cesariny, Cruzeiro Seixas e de um tal Fontinha, mas quanto a este último, como dizem que é um pouco louco, o narrador nunca tem a certeza se os livros deste, quatro e milhares de publicações no blog Cachimbo de Água, ainda jazem na dita secretária; um dia estão aqui, no outro, ali, e às vezes, por aí.

O bisturi da paixão entre traços pincelados de silêncio e sombras de desejo, em pequenas quadrículas, começa por dissociar os lindos olhos da manhã que acaba de acordar das pestanas cinzentas da neblina em fuga; dos olhos, o poeta, retira as imagens de um qualquer luar que uma qualquer noite poisou sobre o mar, porque há sempre um rio que corre para o mar, uma ribeira que correr para um rio, e claro, há sempre um corpo no bisturi do poeta.

O sorriso da manhã que acaba de acordar, agora já separado dos lábios, e acreditando que o poeta segue todos os procedimentos de uma dissecação, suspende-se na janela do sonho, que por enquanto, ainda pertence ao poema. E neste momento, o poeta ainda não sabe que este sorriso lhe pertence.

Nos seios, o bisturi da paixão, em pequenas incisões, deixa sobre eles a última vontade do poeta, e o poeta, sem dar-se conta, transporta na mão pequenos pedacinhos de saliva que sobejaram do beijo anteriormente retirado; somos instantes, pensou ele.

Mas nem só de seios é constituída a manhã que acaba de acordar, e continuando a dissecação do poema, o poeta dissecador, num movimento de dezoito graus Norte, coloca o olhar nas coxas silenciadas pela alvorada, enquanto as estrelas, em pernoitada conferencia, tentam chegar a consenso; dormir ou azucrinar a paciência ao poeta. Por unanimidade, resolvem azucrinar a paciência do dito.

Dito isto, o bisturi da paixão separa as pequenas gotículas de prazer alicerçadas à pele lisa e desejada que cobrem a manhã que acaba de acordar e num ápice, como se acabasse de desenhar um silenciado orgasmo no distante luar que acabou de acordar, conta-as, cataloga-as, e depois coloca-as dentro de um pequeno frasco onde já existiam três pedacinhos de sémen, uma madrugada que se tinha suicidado junto ao mar, e claro, o rio que tinha fugido da montanha.

O poema deixou de pertencer ao poeta e é imagem desassossegada do dissecador que um dia dirá que

Fui muito feliz sobre esta pedra cinzenta.

Ou, existirá sempre um pedacinho de mel nos lábios da manhã.

E como o poema é uma fotografia com palavras, onde um corpo vacila sobre a ponte que apenas o sonho consegue pintar nas nuvens cinzentas que às vezes poisam sobre o poeta, há um sorriso que aos poucos se abraça a esta pequena fotografia e há palavras que partem e nunca mais regressam. E há silêncios que se tocam sem perceberem que a paixão, depois de descartado o bisturi, pois já não é necessário, se transformam em desejo, depois em uno corpo crucificado na maré dos sonhos envenenados.

Quando perguntam ao poeta o que pensa da manhã que acaba de acordar e qual o resultado da dissecação, este é sorrisos amortecidos, responde que… não penso nada e quanto à dissecação:

Depois de dissecado o poema e analisado, concluo que o dito morreu de saudade.

 

Saudade – quando no mar desenhado na alcofa de uma madrugada de cacimbo, sons de um pequeno rádio a pilhas dança sobre os olhos verdes de um miúdo em soluços depois de perceber que do tecto caem pedacinhos de geada.

E quando o paquete do regresso entra Tejo adentro, o miúdo da alcofa vê sentado junto à Torre de Belém um rapaz tímido, abraçado ao medo, que numa das mãos tem um livro e na outra cigarros que o acompanharão até aos dias de hoje.

O barco aos poucos aproxima-se da cidade, e o miúdo com a alegria de um miúdo que acaba de acordar, sorri

Pai, um machimbombo!

Autocarro, filho. Autocarro.

Desde então, nunca mais consegui assassinar a saudade.

E já agora, caro leitor, qual será a pena para um assassino em série de saudades?

A saudade vai. A saudade vem.

O tempo passa.

Os machimbombos agora são autocarros, e um amigo segreda-me que por eu ter nascido em Luanda, sou Calcinha.

Autocarro, filho. Autocarro.

 

O poema é uma fotografia com palavras. O poema é a imagem que apenas o desejo consegue desenhar num corpo em fúria. O poema é silêncio. O poema é paixão. O poema é tudo e não é nada. O poema é um pedacinho de mel. O poema é um pedacinho de mar. O poema és tu, manhã que acaba de acordar.

 

 

Alijó, 15/10/2022

Francisco Luís Fontinha

As palavras de matar

 São estas as palavras que te vou deixar,

São estas as cinzas das palavras incendiadas

Que te vou deixar, quando partir.

Também te vou enviar

As cinzas dos quadros que vou queimar,

E depois de encaixotar,

Enviar,

Ao destinatário,

 

São estas as palavras que te vou deixar,

Depois de lhes retirar o veneno,

São estas as palavras,

As minhas palavras…

São estas as palavras de matar,

Matar o fogo que se liberta destas mãos,

Que escrevem,

As palavras que te vou deixar,

 

E enviar.

São estas as palavras que te vou deixar,

E semear,

Na terra que nunca foi minha,

Que nunca será minha. São estas as palavras,

As minhas tristes palavras,

Em pedacinhos de cinza,

E orar; amém.

 

 

 

Alijó, 15/10/2022

Francisco Luís Fontinha

Menina poesia sentida

 Abraço-te, silêncio em despedida,

Menina que voas sobre o mar,

Abraço-te, menina poesia sentida…

Sentida ao despertar,

 

Abraço-te, meu moinho que dança no vento,

Árvore despida,

Abraço-te, sombra do meu pensamento,

Em delírio na partida,

 

Abraço-te, nuvem cansada de pensar,

Chuva miudinha na madrugada,

Abraço-te, rio que não se cansa de navegar

 

Nos teus seios de amanhecer,

Abraço-te, sorriso que brinca na alvorada,

Sem pressa de chegar, sem pressa de morrer.

 

 

Alijó, 15/10/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

A espingarda do silêncio

 Desta pedra onde me sento

E olhas,

Oiço as tuas lágrimas

Que tão bem sabias misturar com as orações,

E do alto da montanha

 

Me envias as palavras do silêncio.

Pego na espingarda,

Alimento-a de saudade…

E disparo contra a madrugada,

Enquanto nas tuas mãos, o pequeno terço

 

Corre de conta em conta,

De suspiro em suspiro.

Desta pedra onde me sento

E olhas,

Oiço as Ave Marias em pedaços de tristeza,

 

E certamente não estás feliz,

Porque as minhas palavras são as minhas palavras…

E quando disparadas pela espingarda do silêncio,

Todo o teu olhar arde,

E despede-se das telas em cinza.

 

E que feliz éramos quando tínhamos tardes intermináveis,

Quando entre Ave Marias e o Pai Nosso,

Tinhas fé e rezavas por aqueles que amavas;

O teu filho mimado e a tua grande paixão (o meu pai),

E quando precisaste do teu Deus, a pedra onde me sento… ardeu.

 

 

(como ardem todas as pedras onde me sento)

Alijó, 14/10/2022

Francisco Luís Fontinha

Longas noites têm os teus olhos

 Perto do musseque éramos felizes, como eram felizes os que viviam perto do musseque; a manhã acordava, na rua ouvia-se o trote do branco cavalo que passeava todos os dias pela mão da linda Catarina, o irmão, rapaz dos seus quinze anos, desenhava formas geométricas com a velha motorizada que tinha herdado do avô, homem foragido da metrópole por razões políticas.

Junto ao Grafanil ouviam-se os vómitos de saudade do Unimog que regressava do mato, transportava homens que tinham vendido os sonhos e sem perceberem, ainda acreditavam no futuro.

A Catarina, indiferente às lágrimas de todas as sombras que ouvíamos na noite, sentava-se junto ao portão de entrada na esperança que o pai um dia regressasse do mato com o camião que tinha partido com mercadorias diversas. Com um giz, deixava traços invisíveis no muro do quintal, um dia, contou-os; trinta e cinco. Desistiu de esperar.

Semanas depois, disseram-lhe que o camião que o pai conduzia passou sobre uma mina e desfez-se em pedaços de lágrimas; acontecia a todos aqueles que tinham longas noites nos olhos.

Eu, deliciava-me a dar pancadas num velho triciclo, e quando me perguntavam o que estava a fazer,

O menino está a arranjar.

Mais tarde, contaram-me que saía ao meu tio António, que depois de lhe oferecerem um qualquer brinquedo, abria-o e se lhe perguntassem…

É para ver como é feito.

Mas naquela altura não me interessava pelo corpo feminino, portanto quanto à linda Catarina, era apenas a linda Catarina; e talvez tenha só a memória fotográfica do esbelto branco cavalo que passeava todas as manhãs em frente ao meu portão, e depois, percebia que mais um dia tinha acordado.

Quanto a motorizadas, apenas me fascinavam os desenhos geométricos que o Pedro deixava sobre a poeira de um descampado junto à rua e o fumo escuro que esta cuspia depois de alguns círculos, círculos que certamente sofriam de alguma doença crónica, pois nunca eram perfeitos.

Amo-te, meu querido Joaquim!

Também te amo muito, minha querida Catarina!

E de paixão apenas conhecia a que tinha pelos barcos, papagaios em papel e pelo meu melhor amigo; o eterno chapelhudo.

Não escrevas nas paredes, Francisco,

É para ver como é feito.

Depois do jantar, íamos aos Coqueiros assistir aos treinos de hóquei em patins, deliciava-me com a dança dos corpos daqueles jovens que sem o saberem, escreviam no pavimento a mais linda estória das noites da minha infância, regressado a casa, adormecia a sonhar com o branco cavalo da linda Catarina. Às vezes, ainda íamos dar uma volta ao Baleizão, que sempre que me ofereciam um gelado, que eu apelidava de Rajá, respondia que…

Não gosto.

E ainda hoje não percebo muito bem do que gostava naquela altura, tirando os barcos, os papagaios, o chapelhudo, os desenhos nas paredes e as pancadas no triciclo, de nada mais gostava.

As bananas tinham bicho. De sumos, não gostava. Os chocolates que os amigos do meu pai me ofereciam, quase não lhes tocava. Quando se tratava de comer a sopa, inventava mil razões para a não meter à boca; estava quente, não tinha fome, e

É para ver como é feito.

E enquanto arranjava o triciclo descobri que os aviões que eu ia ver ao aeroporto e os que passavam sobre a minha casa, tinham tamanhos diferentes. Passei muito tempo para entender que se tratava apenas de distância e que ambos tinham o mesmo tamanho.

Depois,

Catarinaaaaa…

Sim mãe, vou já, logo que o branco cavalo desça das nuvens, e num ápice, um enorme buraco negro cospe uma estrela,

E o raio do cavalo de nuvem em nuvem, até que descobriu

Pedro, casa já.

O menino está a arranjar.

De buraco em buraco até se esconder da mina que dizimou o camião, o pai e a mercadoria da linda Catarina.

Choveu muito ontem, entre o capim vi pela primeira vez o lençol da saudade, e percebi porque hoje amo o mar, e ontem, e ontem fugia da lhá…

Tão grandes, pai.

É para ver como é feito.

Perto do musseque somos felizes, como são felizes os que vivem perto do musseque; a manhã acorda e a doce e linda Catarina, montada no seu branco cavalo voa em direcção às nuvens, em baixo, jaz o mar límpido que outrora adormeceu na algibeira dos pequenos calções do menino ranhoso que inventava amigos para brincar debaixo das mangueiras, que que às vezes se esquecia de dormir, quando as tardes eram apenas pedaços de silêncio onde a motorizada do Pedro e o branco cavalo da linda Catarina davam as mãos e saiam para passear junto à Baía.

Tão grandes, pai.

O menino arranja.

E amanhã certamente tenho a visita dos papagaios em papel e das estrelas que um dia desapareceram de mim, como desapareceram as minhas sandálias de couro…

Ai a lhá…

E depois, encerraram a janela e nunca mais vi o mar.

 

 

 

Alijó, 14/10/2022

Francisco Luís Fontinha

Os teus olhos de arco-íris

 

Nos teus olhos de arco-íris

Escondem-se as estrelas,

Brincam os exoplanetas do cansaço,

Dos teus olhos, em lágrimas paixão,

Fogem os plátanos da madrugada,

 

São luar,

Os teus olhos de arco-íris,

São tristeza,

São poema ao cair da noite,

Nos teus olhos

 

Há pedaços de silêncio,

Das frases que se escondem no pôr-do-sol,

E esses olhos de arco-íris,

São canção no leito em revolta…

Cerejas que a Primavera escreve nos teus lábios,

 

Dos teus olhos de arco-íris,

Também se escondem as flores aprisionadas,

Também se esconde nos teus olhos de arco-íris

Um coração em delírio,

Um castelo invisível,

 

Uma Princesa inventada pelo sono,

E nos teus olhos de arco-íris,

Vejo o rio que acaba de acordar,

E não sabe, desconhece,

Que os teus olhos de arco-íris… são o silêncio do mar.

 

 

Alijó, 14/10/2022

Francisco Luís Fontinha

Este rio

 

O que faço junto a este rio

Enquanto o meu corpo desfalece,

E ao longe, a ponte

Corre para o mar,

O que faço junto a este rio,

 

Frio e cansado,

Abraçado ao medo,

Distante do luar.

E será este rio

A minha sepultura?

 

Ou será este rio

O leito da minha solidão,

Das noites acordado,

Nas noites inventando

Este rio cansado,

 

Porque neste rio

Enforcado,

Habitam as minhas tristes palavras,

As palavras que semeio nas estrelas em papel…

Ai as palavras semeadas!

 

O que faço junto a este rio

Enquanto a minha sombra vagueia sobre um mar de lápides,

Enquanto um cardume de insónia

Desce a montanha da tristeza…

E este rio me foge na madrugada.

 

 

Alijó, 14/10/2022

Francisco Luís Fontinha