Poema – fotografia com palavras. Morreu de saudade, o poeta pega no bisturi da paixão e disseca a manhã que acaba de acordar. Dos lábios, em pequeno jeito, retira todos os beijos e poisa-os cuidadosamente sobre o papel amarrotado que o luar trouxe até à sua mão.
Depois de radiografar todas
as sílabas, retiradas todas as vírgulas e pontos finais, o poeta, pega nos
tristes parêntesis e coloca-os, não sobre o papel amarrotados, mas sim sobre a
secretária onde dormem os livros Lobo Antunes, AL Berto, Pacheco, Cesariny,
Cruzeiro Seixas e de um tal Fontinha, mas quanto a este último, como dizem que
é um pouco louco, o narrador nunca tem a certeza se os livros deste, quatro e
milhares de publicações no blog Cachimbo de Água, ainda jazem na dita
secretária; um dia estão aqui, no outro, ali, e às vezes, por aí.
O bisturi da paixão entre
traços pincelados de silêncio e sombras de desejo, em pequenas quadrículas,
começa por dissociar os lindos olhos da manhã que acaba de acordar das pestanas
cinzentas da neblina em fuga; dos olhos, o poeta, retira as imagens de um
qualquer luar que uma qualquer noite poisou sobre o mar, porque há sempre um
rio que corre para o mar, uma ribeira que correr para um rio, e claro, há
sempre um corpo no bisturi do poeta.
O sorriso da manhã que
acaba de acordar, agora já separado dos lábios, e acreditando que o poeta segue
todos os procedimentos de uma dissecação, suspende-se na janela do sonho, que
por enquanto, ainda pertence ao poema. E neste momento, o poeta ainda não sabe
que este sorriso lhe pertence.
Nos seios, o bisturi da
paixão, em pequenas incisões, deixa sobre eles a última vontade do poeta, e o
poeta, sem dar-se conta, transporta na mão pequenos pedacinhos de saliva que
sobejaram do beijo anteriormente retirado; somos instantes, pensou ele.
Mas nem só de seios é constituída
a manhã que acaba de acordar, e continuando a dissecação do poema, o poeta
dissecador, num movimento de dezoito graus Norte, coloca o olhar nas coxas
silenciadas pela alvorada, enquanto as estrelas, em pernoitada conferencia,
tentam chegar a consenso; dormir ou azucrinar a paciência ao poeta. Por
unanimidade, resolvem azucrinar a paciência do dito.
Dito isto, o bisturi da
paixão separa as pequenas gotículas de prazer alicerçadas à pele lisa e
desejada que cobrem a manhã que acaba de acordar e num ápice, como se acabasse
de desenhar um silenciado orgasmo no distante luar que acabou de acordar,
conta-as, cataloga-as, e depois coloca-as dentro de um pequeno frasco onde já
existiam três pedacinhos de sémen, uma madrugada que se tinha suicidado junto
ao mar, e claro, o rio que tinha fugido da montanha.
O poema deixou de
pertencer ao poeta e é imagem desassossegada do dissecador que um dia dirá que
Fui muito feliz sobre
esta pedra cinzenta.
Ou, existirá sempre um
pedacinho de mel nos lábios da manhã.
E como o poema é uma
fotografia com palavras, onde um corpo vacila sobre a ponte que apenas o sonho
consegue pintar nas nuvens cinzentas que às vezes poisam sobre o poeta, há um
sorriso que aos poucos se abraça a esta pequena fotografia e há palavras que
partem e nunca mais regressam. E há silêncios que se tocam sem perceberem que a
paixão, depois de descartado o bisturi, pois já não é necessário, se
transformam em desejo, depois em uno corpo crucificado na maré dos sonhos
envenenados.
Quando perguntam ao poeta
o que pensa da manhã que acaba de acordar e qual o resultado da dissecação, este
é sorrisos amortecidos, responde que… não penso nada e quanto à dissecação:
Depois de dissecado o
poema e analisado, concluo que o dito morreu de saudade.
Saudade – quando no mar
desenhado na alcofa de uma madrugada de cacimbo, sons de um pequeno rádio a
pilhas dança sobre os olhos verdes de um miúdo em soluços depois de perceber
que do tecto caem pedacinhos de geada.
E quando o paquete do
regresso entra Tejo adentro, o miúdo da alcofa vê sentado junto à Torre de
Belém um rapaz tímido, abraçado ao medo, que numa das mãos tem um livro e na
outra cigarros que o acompanharão até aos dias de hoje.
O barco aos poucos
aproxima-se da cidade, e o miúdo com a alegria de um miúdo que acaba de
acordar, sorri
Pai, um machimbombo!
Autocarro, filho.
Autocarro.
Desde então, nunca mais
consegui assassinar a saudade.
E já agora, caro leitor,
qual será a pena para um assassino em série de saudades?
A saudade vai. A saudade
vem.
O tempo passa.
Os machimbombos agora são
autocarros, e um amigo segreda-me que por eu ter nascido em Luanda, sou
Calcinha.
Autocarro, filho. Autocarro.
O poema é uma fotografia
com palavras. O poema é a imagem que apenas o desejo consegue desenhar num
corpo em fúria. O poema é silêncio. O poema é paixão. O poema é tudo e não é
nada. O poema é um pedacinho de mel. O poema é um pedacinho de mar. O poema és
tu, manhã que acaba de acordar.
Alijó, 15/10/2022
Francisco Luís Fontinha