Meu querido Fernando,
Atravessaste o rio Congo sem
que ainda hoje perceba porque o fizeste. Porque te escondias, meu querido
Fernando? Dos pássaros, como eu hoje, das fotografias que trazias na algibeira
e que nessa altura ainda não tinhas a minha? Ou escondias-te apenas do silêncio…
Sabes, meu querido
Fernando,
Levavas-me a olhar os
barcos gordos que descansavam no porto de Luanda, pegava na tua mão e sentia-me
o menino dos calções mais feliz de todos os meninos dos calções, depois, entre
pedaços de silêncio, perguntava-te porque…
Porque choram as acácias,
pai?
Dizias-me que tinham
sono, dizias-me que era devido à distância entre a lua e a terra, mas meu
querido Fernando, nunca me disseste que as acácias choravam porque estavam
tristes, porque estavam tristes, meu querido Fernando. E apenas muitos anos
depois percebi o que era a tristeza,
Voavam como ninguém. Manhã
cedo pegavas na Bedford e passeavas-te pelos musseques em busca de não sei o
quê, tal como eu hoje, tal como eu ontem, tal como eu amanhã, mas nunca percebi
porque atravessas-te o rio Congo em direcção ao nada,
Fugias de quê, Fernando? Das
acácias, meu querido?
Lembras-te Fernando,
quando cismei que queria escrever na tua carta de condução e poisaste
devagarinho a tua mão no meu rabo, mas sabes meu querido, teimoso como sou, teimoso
como era, de nada serviram as tuas palmadas, porque o que eu queria mesmo era
escrever na tua carta de condução.
Depois comecei a rabiscar
nas paredes do quarto, da sala, casa de banho e afins; tudo o que fosse parede,
o menino dos calções desenhava, deixava a sua marca. E ainda hoje, meu querido,
e ainda hoje…
Os pássaros partiram e
levaram todos os barcos gordos, dos caixotes em madeira, sobejaram apenas
algumas letras em tinta encarnada onde se podia ler PORTUGAL; e de Portugal
enviamos um grande beijinho para todos, e uma linguiça para não se esquecerem dos
sabores da nossa terra.
E sabes, meu querido
Fernando, nunca entendi porque atravessaste o rio Congo em direcção ao nada, do
que fugias, meu querido?
Das lágrimas das
bananeiras? Da tristeza? Das acácias?
E havia sempre um pedaço
de papel poisado sobre a mesa. Havia sempre um barco encalhado dentro de mim,
dentro de ti, dentro dela…
Barcos, meu querido. Barcos.
A Bedford engasgava-se, o
avô Domingos passava horas a passear um velho machimbombo pelas ruas de Luanda,
a mãe passava as tardes a construir papagaios em papel e eu, o menino dos calções,
passava as tardes a fazer vestidos para o meu grande amigo chapelhudo. Mas, meu
querido Fernando, do que fugias? Como eu…
Atravessaste o rio,
Tínhamos medo das
acácias, tínhamos medo do sono que o cacimbo provocava em nós e nos transportava
para as pequenas sílabas do capim envenenado pela saudade,
E anos mais tarde, como
tu, meu querido Fernando, fui obrigado a mentir-te, fui obrigado a dizer-te que
estava tudo bem, mas não estava, meu querido, como poderia estar se já tinhas a
morte suspensa nos ombros. Menti-te, depois fui obrigado a mentir à mãe, pela
mesma razão,
Desculpa meu querido,
desculpa ter-te mentido, mas foi melhor assim,
Olhava-te como quando me
levavas a ver os barcos gordos, só que tu te afundavas aos poucos, e os barcos
gordos dançavam sobre a ondulação marítima. Minutos intermináveis que pareciam
dias, cigarros, cigarros, cigarros de mentira.
E enquanto te afundavas
no Oceano da dor e das chagas que alimentavam o teu corpo, recordava as manhãs
de Domingo junto aos barcos gordos, recordava a Bedford amarela, de musseque em
musseque, e ao longe, o rio Congo.
Depois, desapareceste
entre as nuvens. E nunca mais te vi.
Sabes, meu querido
Fernando, nunca percebi porque atravessaste o rio Congo, mas percebo hoje
porque trazias na carteira a fotografia da avó Valentina e a minha; e
mentia-te. Escrevi a mentira em vós para enganar a saudade; e claro que não
estava tudo bem.
Como poderia estar tudo
bem se os barcos gordos hoje são apenas sucata e pedaços de limalha.
Porquê, meu querido?
Porquê as acácias?
E dentro dos cigarros em metástase,
ouviam-se as lágrimas das tardes junto ao teu leito; desculpa a mentira, meu
querido; mas acredita que estava tudo bem.
Tudo bem, como hoje.
Alijó, 08/10/2022
Francisco Luís Fontinha