terça-feira, 4 de outubro de 2022

rochedo da saudade

 

no rochedo da saudade vive o teu meu coração repatriado
escondíamo-nos do amanhecer quando todas as estrelas cessavam de brilhar
quando sentia o teu sorriso no espelho da paixão
comestíveis beijos insufláveis desciam das árvores em solidão
no rochedo da saudade
vivia
amava
e comestíveis beijos com esqueletos de prata

no rochedo da saudade vive o teu meu cansaço
quando tínhamos noites intermináveis sentados num banco de jardim
conversávamos sobre tudo e sobre nada
e sentia o brilho do teu olhar
como uma donzela tela
pincelada com acrílicas cores
depois tínhamos a sombra dos plátanos
de livro na mão

liam-nos poemas
escrevíamos-lhes poemas
sentados num banco de jardim...
e imaginávamos à nossa frente o palpitar do rio furioso por ter perdido o mar
víamos veleiros pintados na claridade da aurora boreal em comestíveis chamas de suor
liam-nos poemas
escondidos caracteres minúsculos sobejavam das rosas de papel
e diziam-nos que a lua amava o silêncio

como nós
um piano vadio brincava no soalho da biblioteca
e tínhamos acabado de regressar das montanhas alicerçadas às gaivotas desgovernadas
sentadas
como nós
num simples banco em madeira
e liam-nos poemas
e escrevíamos-lhes poemas como se fossem migalhas de pão depois do pequeno-almoço...

não acordávamos porque a noite embriagava-nos com palavras
textos
e comestíveis beijos
e poemas
por comestíveis pinceladas acrílicas saborosas que os teus lábios iluminavam
e víamos o rochedo da saudade
chorar
e pigmentos sólidos de vento balançavam nos teus cabelos de limalha incandescente...

não sabíamos que existia a teoria da relatividade
e desconhecíamos a trigonometria
pensávamos que os círculos eram mulheres deitadas
nuas
sobre a geométrica cama com lençóis de porcelana
e lá
no teu peito
os rochedos da saudade vomitando cinza de velhos cigarros como poemas envenenados pelo ciúme...


Francisco Luís Fontinha – Alijó

Outubro/2017

Quando tudo arde

 

Enquanto tudo arde,

As minhas palavras são assassinadas,

Enquanto tudo arde,

As minhas telas… também elas, ardem,

 

Enquanto tudo arde,

O sono transforma-se em insónia,

A paixão…

A paixão também arde,

 

E pego nas cinzas,

Semeio-as nas encostas do Douro,

Sento-me sobre este rio…

E também eu, sinto-me em chamas,

 

E espero que a noite me leve.

Enquanto tudo arde,

As minhas palavras,

As minhas telas… morrem.

 

 

Alijó, 04/10/2022

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Manhãs de Outono

 

Poisam na tua voz

Os beijos das flores aprisionadas,

Sentam-se na tua voz

As tardes de mim, distantes e cansadas,

 

Deitadas

Nas andorinhas floridas.

Poisam na tua voz

As lágrimas perdidas…

 

Enquanto estas tristes palavras

Morrem junto ao mar;

Poisam na tua voz

Os barcos que não conseguem zarpar…

 

Porque se sentem sós,

Porque estão amargurados…

Poisam na tua voz

Os corpos amarrotados,

 

Invisíveis pelas manhãs de Outono.

Poisam na tua voz as pedras cinzentas

Que brincam no meu jardim,

E onde todas as noites te sentas…

 

E ficas longe de mim.

Poisam na tua voz todos os poemas em revolta,

Poisam as estrelas, poisa o luar…

E tudo aquilo que não volta.

 

 

 

Alijó, 03/10/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 2 de outubro de 2022

Outros dias

 Estes dias, entre dias, estes dias

Onde nascem flores nas paredes nocturnas do luar,

Destes dias,

Onde brincam palavras

Nas paredes nocturnas do luar,

Aos dias que deixaram de ser dias; adeus e um forte abraço.

 

Até amanhã. Noutros dias

Onde voam as flores nas paredes nocturnas do luar…

Erguem-se na alvorada

As simples imagens do prazer,

Há um finito gemido,

Enquanto estes dias, trazem entre dias…

 

Outros dias.

E entre dias e aqueles dias

Há um dia, aquele dia triste

Onde deixaram de ser dias…

As palavras dos dias;

(a gasolina volta a subir)

 

Estes dias, que já foram dias,

Vivem dias de amargura, porque os outros dias

Ainda não são os verdadeiros dias…

E das palavras dos dias

Outros dias,

Outros dias de merda.

 

 

 

Alijó, 2/10/2022

Francisco Luís Fontinha

As tristes acácias

 Não bebas o veneno das palavras,

E quando as palavras

Deixarem de ser palavras,

Esconde-te nas acácias que choram,

 

Finge que a noite é tua,

Quando percebes que nunca tiveste uma noite dentro de ti,

E do veneno,

As imagens do silêncio

 

Que transportam a tristeza,

E tens uma janela

Que se esconde na insónia…

Como se esconde em ti a saudade.

 

 

Alijó, 2/10/2022

Francisco Luís Fontinha

Para venda – Acrílico s/tela – Francisco Luís Fontinha

 





Os machimbombos do avô domingos

 Pego neste cigarro que brevemente se vai extinguir nas minhas mãos;

Como tudo o que me pertence, deixa de me pertencer…

E extingue-se nas minhas mãos.

As palavras morrem.

As imagens que habitam em mim,

Morrem ou ficam amuadas como uma criança mimada,

Se toco numa árvore, morre.

Se toco em alguém… fica doente e morre,

E até estes livros que me pertencem…

Todos eles, mortos.

Morreram as imagens da minha infância,

Morreram as fotografias da minha infância…

Morreram as minhas flores,

E todos os meus brinquedos…

E até o meu grande amigo “chapelhudo” morreu

Numa tarde qualquer, em Luanda.

Morreram todos os barcos da minha infância,

Morreram as gaivotas da minha infância…

… e pego neste cigarro que brevemente se vai extinguir nas minhas mãos,

Sabendo que também ele será a morte.

Morreu o avô Domingos.

Morreu o meu pai.

Morreu a minha mãe.

E até a merda dos machimbombos morreram…

E hoje não passam de sucata.

Como eu.

Sucata amarrotada sentado num jardim invisível.

 

 

 

Alijó, 2/10/2022

Francisco Luís Fontinha