domingo, 6 de janeiro de 2013

Que têm os barcos Francisco?

(     )
E o mar em finos fios a correr pela casa, ouviam-se os petardos anárquicos misturados nas palavras amargas, às vezes, trazias nos olhos lágrimas de prata, tinhas asas de vidro, e quando te perguntava
Matilde, mexeste nas minhas tintas?
Sorrias, abanavas as asas, e voltavas a sorrir
Não, não mexi, pai
Sorrias, abanavas as asas, e voltavas a sorrir
Pai?
Sim, Matilde!
A mãe?
Que tem a mãe?
Onde está?
Sorrias, abanavas as asas, e voltavas a sorrir, e tínhamos flores em recipientes cerâmicos, de várias cores, pintavas-os com os restos de tinta acrílica dos meus tubos que ias buscar ao meu atelier, metias as mãozinhas no bibe, e de cabelo balançando dentro do vento que acabara de sair da caixa de madeira, aos poucos aproximava-se da grande cidade o paquete com ventos lilases e folhas de árvore empobrecidas pelo sal e devido ao calor, transpiravam os carros junto a Belém
Não sei, Matilde, nunca soube onde está a tua mãe,
E os carros arfavam, e tu sorrias, e eu empoleirado nas grades ouvia os pedaços de fumo do cigarro de um magala que pelo fardamento devia andar nos lanceiro, na Ajuda, sentado e de pernas cruzadas, sobre as coxas via um caderno com uma capa que tinha desenhos de flores, via também um livro “O Doutor Jivago” de Boris Pasternak, e ao longe, nos jardins de Belém dois amantes provavelmente separavam-se eternamente para o todo e sempre, ouvias-lhe
Sim, Matilde!
A mãe?
Que tem a mãe?
Onde está?
Ouvias-lhe as lágrimas de prata e tu, com asas de vidro, sorrias, ouvias-lhe os silêncios entre as árvores e os arbustos,
Tenho de ir
Porquê pai?
Já alguém te disse que tens o coiso grande?
Não sei, Matilde, nunca soube onde está a tua mãe,
E aos poucos Lisboa entrava dentro de mim, e aos poucos sentia a paixão da cidade a entranhar-se nos meus frágeis ossos, de galinha de aviário, e perguntei ao meu pai
Pai, vamos para onde?
Olhou-me, lançou o cigarro ao Tejo, a sorrir e a abanar as asas, sorrias, abanavas as asas, e voltavas a sorrir, Pai?
Vamos para Alijó.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

O post-it e a cidade

( )
As ratazanas querem comer-me, acreditava eu, a cada segundo de ponteiro que o velho relógio descrevia nas clandestinas terras assombradas pelo capim desnorteado, estonteante, doente, e afinal as ditas ainda tinham mais medo do que os palhaços do circo junto ao átrio da igreja protestante, e mentalmente ela queria dizer-me
Amor, falta-nos tudo,
E ele respondia-lhe
Se a casa tiver livros já tem tudo,
Vai fazer-te bem, amor,
Acordavas-me, erguias-me, a ténue luz desenhava na parede lateral um menino de sombra, e ela obrigava-me a beber o leite com mel, queimava a boca, torcia-me na cama como se estivesse no interior de uma tempestade de areia, e nunca percebi o infernal trânsito
chegavas tardíssimo a casa, inventavas trânsito que todos os dias antes partires, deixavas colado no frigorífico, regressavas, descolavas o post-it e a cidade retomava o ritmo solitário que as noites trazem, constroem dentro das imensas dores frágeis que os ossos das tuas mãos carregavam caminho abaixo até chegares à ribeira, e mentalmente ela queria dizer-me
Amor, falta-nos tudo, e afinal, as ratazanas queriam comer-me, acreditava eu, a cada segundo de ponteiro que o velho relógio descrevia nas clandestinas terras assombradas pelo capim desnorteado, estonteante, doente, e afinal as ditas ainda tinham mais medo do que os palhaços do circo junto ao átrio da igreja protestante, e mentalmente ela queria dizer-me,
Se a casa tiver livros já tem tudo,
O trigo deixou de crescer após a tua partida, os pássaros, hoje, tal como os aviões, não voam, morrem, às vezes morrem, sem nada a casa, hoje não, se a casa tiver livros já tem tudo, o post-it e a cidade retomava o ritmo solitário que as noites trazem, constroem dentro das imensas dores frágeis que os ossos das tuas mãos carregavam caminho abaixo até chegares à ribeira, e mentalmente ela queria dizer-me
Falta-nos tudo,
E mentalmente ela queria dizer-me que o trigo deixou de crescer após a tua partida, os pássaros, hoje, tal como os aviões, não voam, morrem, às vezes morrem, sem nada a casa, hoje não, se a casa tiver livros já tem tudo,
E tu
Assassina-me como se eu fosse um grito de luz, e não deixes que as cores do arco-íris murchem, se extingam, morram, quando acorda a noite no pólo da saudade, chegavas tardíssimo a casa, inventavas trânsito que todos os dias antes partires, os pássaros, os aviões, e eu
E eu sempre que podia, quase sempre, antes de começar a noite, inventava trânsito, que cobriam as cores do arco-íris, e tu
E eu
Com o leite, o mel, à espera que regressasses das tuas longínquas viagens ao além, e afinal as ditas ainda tinham mais medo do que os palhaços do circo junto ao átrio da igreja protestante.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

(Palavras frágeis)
Em destaque no Sapo Angola
blogue Cachimbo de Água

sábado, 5 de janeiro de 2013

Palavras frágeis


A todas as palavras frágeis
que desenhei na tua boca
quero-as de volta à minha mão deserta
morta

confusa porque o meu coração
sente o silêncio das rochas mergulhadas no mar
um peito arde e esfumaça-se na lareira da saudade
como todas as flores que viviam nos jardins da Babilónia

arderam morreram simplesmente subiram aos céus
e encontraram
morta
A todas as palavras frágeis

que desenhei na tua boca
a louca
porta
que se esconde nos teus abraços lilases

poucas
como as jangadas que se suicidam no lago da amoreira
troncos finos de árvores cansadas
tombam

incham
e em ais sobejam dos lábios em poesia
sentia que sinto ainda as palavras poucas
nas frágeis manhãs de Primavera.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

As ardósias palavras dos teus seios

(   )

Sentia a tua mão nos meus seios, e ias descendo, descendo, sabia-te dentro do meu púbis de areia, e o mar começava a alimentar-se de mim, prenunciava grunhidos sons, e ao longe os ossos invisíveis dos peixes apaixonados, e vinham até nós os sons melódicos de um saxofone em solidão, era verão, era sábado, e a tarde começava a evaporar-se nas palavras que escrevíamos sobre os teus joelhos esqueléticos onde poisávamos um caderno com um capa dura, grossa, com desenhos de flores
Porquê
Tens de deixar de fumar,
E eu, eu pegava na tua mão débil, finíssima como os ramos de laranjeira que tínhamos no quintal em trás-os-montes, tão longe, a lareira, os livros, o sino da igreja quando dormíamos sossegadamente dentro dos lençóis de insónia, e tu
Eu sentia o sofrimento árduo dos teus lábios acabados de regressar, trazias nas mãos uma punhado de areia húmida, e na boca escondias o silêncio amor que a paixão sibilou nas carcaças apodrecidas dos peixes que viviam nos lençóis nossos que do jardim cheirava a incenso, alecrim, mirra, oiro falso, alquimia, líamos Proust, e sabíamos que
E deixei de fumar,
E sabíamos que todos os plátanos um dia, vinte e cinco anos depois, ruiriam, como ruíram os alicerces de todos os crucifixos de prata
Sentia a tua mão nos meus seios, e ias descendo, descendo, sabia-te dentro do meu púbis de areia, e o mar começava a alimentar-se de mim, prenunciava grunhidos sons, e ao longe os ossos invisíveis dos peixes apaixonados, dos poemas,
Morreram, como morrem todos os crucifixos de prata que entram na minha vida nocturna com sabor a mar e desejos de luas com pedaços de laranja, sonhos, e pipocas quando ligo a máquina das imagens, e apenas sombras, pretos, brancos, os riscos, os riscos crucifixos de prata que a melancolia escreve nas ardósias palavras dos teus seios.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Casa em ruínas


Sou uma casa em ruínas
simplificada que habita na garganta da avenida
sentindo a solidão das pálpebras doces que a noite deixa ficar
sou
sem portas
janelas
nem vista para o mar
uma casa cansada,

uma casa triste e velha dançando na madrugada
sou uma casa em ruínas
abandonada
como todas as palavras que escrevo
desgraçadamente voando sobre as nuvens cinzentas
sou sem portas varandas
restaurante sem ementa
e tantas
casas como eu
à procura do céu
em zinco as lâminas que o vento semeia
no peito coração das gentes da aldeia,

sou
uma casa
em ruínas
apenas só
amarga
dançando debaixo das árvores de papel
que as palavras silenciosas
sou
sem portas
janelas
nem vista para o mar
uma casa cansada...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

As sílabas voláteis da paixão

Coitado, que antes de se finar dizia ser doutor em pornografia e vão de escada, de dia, era bancário, e quando começava a acordar a noite, a noite para ele era o clímax da mulher que vivia dentro dele, e quando começava a acordar a noite, entrava em casa, despia o fato, suspendia a gravata no cabide adjacente à porta de entrada, e
Estás despedido, parvalhão,
Depois de se confrontar com o espelho do guarda-fato e completamente nu, começava a metamorfose, e aos poucos, nascia a menina dona Marilú, Rainha da noite, e que às terças e quintas dançava em cima de uma mesa num bar em Cais do Sodré, um dia, assisti
Estás bem mano?
Nem que sim, nem que não, assisti a um dos seus espectáculos, talvez o mais emblemático da sua pequena carreira, porque para mim, foi o primeiro e o último, ele era realmente linda, mas um grandessíssimo parvalhão,
Hortênsio? Hoje, sussurras-me palavras mágicas que ontem deixei cair sobre as sílabas voláteis da paixão incandescente que provoca na madrugada, sempre que há uma madrugada visível aos olhos das luas sem destino, uma sapiência desumana, suja, imunda, clandestina às vezes, prosaica, outras, nem por isso, as cabeças
Ocas, finas, dentro de quatro paredes de vidro, o cubo, o hipercubo, a raiz quadrada de vinte e cinco, coitado
Porquê
Hortênsio?
Que amanhã era domingo, que amanhã os dias deixavam de ser preenchidos por vãos de escada e sótãos, que amanhã
Eu, o Hortênsio, o irmão do António, e ele deixou de aparecer, e ele evaporou-se completamente como se o sol o absorvesse, ou como se fosse comido por um monstro marinho, um petroleiro com asas de vinil, livros encadernados a couro e completamente abandonados, como eu, num sótão, hoje, que me sinto tristemente só, hoje que nem sou o Hortênsio e nem idade tenho para ser a Marilú, hoje
Morri,
Porquê
Hortênsio?
Ocas, finas, dentro de quatro paredes de vidro, o cubo, o hipercubo, a raiz quadrada de vinte e cinco, coitado
Nunca o soube,
E a morte quase sempre vinha vestida de Primavera, chegava docemente, despia-se, e deitava-se na levemente beleza das palavras não prenunciadas, abraçava-o, afagava-lhe o pouquíssimo cabelo que lhe restava, dava-lhe a mão
Não tenhas medo Hortênsio,
E eu, o irmão do António, nunca tive medo, nunca,
Dava-me a mão
Não tenhas medo Hortênsio,
Nunca meu amor,
E começávamos a flutuar em direcção ao céu nocturno das caves sem janelas
E depois?
O Tejo deixava de se ver.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó