Coitado, que antes de se finar dizia ser doutor em
pornografia e vão de escada, de dia, era bancário, e quando
começava a acordar a noite, a noite para ele era o clímax da mulher
que vivia dentro dele, e quando começava a acordar a noite, entrava
em casa, despia o fato, suspendia a gravata no cabide adjacente à
porta de entrada, e
Estás despedido, parvalhão,
Depois de se confrontar com o espelho do guarda-fato
e completamente nu, começava a metamorfose, e aos poucos, nascia a
menina dona Marilú, Rainha da noite, e que às terças e quintas
dançava em cima de uma mesa num bar em Cais do Sodré, um dia,
assisti
Estás bem mano?
Nem que sim, nem que não, assisti a um dos seus
espectáculos, talvez o mais emblemático da sua pequena carreira,
porque para mim, foi o primeiro e o último, ele era realmente linda,
mas um grandessíssimo parvalhão,
Hortênsio? Hoje, sussurras-me palavras mágicas que
ontem deixei cair sobre as sílabas voláteis da paixão
incandescente que provoca na madrugada, sempre que há uma madrugada
visível aos olhos das luas sem destino, uma sapiência desumana,
suja, imunda, clandestina às vezes, prosaica, outras, nem por isso,
as cabeças
Ocas, finas, dentro de quatro paredes de vidro, o
cubo, o hipercubo, a raiz quadrada de vinte e cinco, coitado
Porquê
Hortênsio?
Que amanhã era domingo, que amanhã os dias
deixavam de ser preenchidos por vãos de escada e sótãos, que
amanhã
Eu, o Hortênsio, o irmão do António, e ele deixou
de aparecer, e ele evaporou-se completamente como se o sol o
absorvesse, ou como se fosse comido por um monstro marinho, um
petroleiro com asas de vinil, livros encadernados a couro e
completamente abandonados, como eu, num sótão, hoje, que me sinto
tristemente só, hoje que nem sou o Hortênsio e nem idade tenho para
ser a Marilú, hoje
Morri,
Porquê
Hortênsio?
Ocas, finas, dentro de quatro paredes de vidro, o
cubo, o hipercubo, a raiz quadrada de vinte e cinco, coitado
Nunca o soube,
E a morte quase sempre vinha vestida de Primavera,
chegava docemente, despia-se, e deitava-se na levemente beleza das
palavras não prenunciadas, abraçava-o, afagava-lhe o pouquíssimo
cabelo que lhe restava, dava-lhe a mão
Não tenhas medo Hortênsio,
E eu, o irmão do António, nunca tive medo, nunca,
Dava-me a mão
Não tenhas medo Hortênsio,
Nunca meu amor,
E começávamos a flutuar em direcção ao céu
nocturno das caves sem janelas
E depois?
O Tejo deixava de se ver.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó