A manhã parecia a palavra
acabada de suicidar o poeta que dormia sentado num seixo junto ao mar, junto ao
mar ele escrevia, desenhava os números na sombra do sonho, porque ele sonhava,
dormia pensando que voava, todas as tardes, sobre o mar,
Porque ele amava.
Amava as pedras, os
seixos, onde o poeta dormia sestas intermináveis, tão longas como os Invernos em Trás-os-Montes, infindáveis,
azedos, dolorosos, até, quanto mais para uma criança.
Criança essa que acreditava
que os sonhos eram pequíssimos cubos de vidro, que um adulto puxava com um
pedaço de corda. Esticava a corda, por vezes partia e, o miúdo lá acordava
acreditando que brincava com pássaros em papel.
A tarde em lágrimas, para
logo depois sorrir e de tanta gargalhada, vomitar lágrimas de fogo, mais
parecendo às vezes, o inferno pincelado de medo. Pequenos charcos se formavam
no pavimento térreo da infância, um boneco estúpido saltitava de contente,
tinha acabado de tomar banho e, com o calor que se fazia sentir, sempre estava
mais refrescado. Eram assim os sonhos das manhãs que agora mesmo, acabam de
suicidar o poeta.
Poeta suicidado, poema
eterno.
O miúdo fazia-se
transportar dentro de uns calções floridos, sandálias em couro e, umas vezes
sim, outras vezes não, sobre os ombros uma camiseta em papel pardo. Nas traseiras
da casa, junto ao galinheiro, habitava uma mangueira com mãos de flor e, todas
as manhãs, a mangueira agarrava pela mão do menino e iam passear junto aos
Coqueiros; os treinos de hóquei fascinavam-no, como fascinavam os pássaros em
papel e, as árvores em algodão e, os aviões e, todos os barcos.
E de todos os barcos, um
dia, com o mais pequeno deles, atravessou o Tejo e fugiu para a Calçada da
Ajuda, sentou-se junto à margem e, começou a desenhar pequenos pares de
sandálias para calçar todos os meninos, que como ele, sonhavam todas as noites,
dentro do cubo de vidro, dentro do sonho dos adultos.
Certo dia, foi obrigado a
trocar os calções por um par de calças, lavam-se durante a noite e secavam
durante a noite, para manhã cedo rumar a uma escola velha e caquéctica, também
foi obrigado a trocar as sandálias de couro por uma botas pesadíssimas que
chiavam quando chovia; e nessa altura desconhecia o significado de peso, massa,
gravidade. Mas eram pesadas.
O peso é uma coisa e,
amassa, uma outra coisa e, quando lhe perguntavam se pesava mais um quilograma
de feno ou um quilograma de ferro acabado de falecer, ele respondia que não
sabia.
De todos os meninos que
brincaram com o menino dos calções, apenas ele e os calções, habitam esta
cidade que acaba de adormecer; da noite, todos os beijos são flores em papel,
que tal como o menino dos calções, brincam a escrever cartas a todos os meninos
que brincaram com ele.
Alijó, 21/11/2021
Francisco Luís Fontinha