Deixaste-me uma simples caixa de sapatos com alguns
dos meus segredos, os poucos sonhos que sobejaram da grande viagem
aos montes das pedras mortas, nenhum sobreviveu, nenhum conseguiu
atravessar a ponte espacial, o famoso túnel de vento onde com o meu
corpo, tu, experimentavas as leis aerodinâmicas, e nunca, nunca
conseguiste que eu voasse, e confesso hoje, sem qualquer medo, que te
mentia, porque nunca me imaginei a voar, mesmo quando me ias buscar
ao sono das noites das madrugadas sem movimentos pendulares,
olhavas-me, e eu
Percebia,
Que
Que um carrossel de vinho girava dentro do meu corpo
preguiçoso, e sabia-o, sabia-o nas traições murchas palavras que
as flores deixavam cair quando o vento era muito, regressávamos às
tempestades de suor, e diziam-nos que o barco com asas de íris tinha
mergulhado num buraco espesso, escuro, fundo, cinzento, que
Percebia,
Que este carrossel tinha cadeiras de madeira presas
a correntes, que este carrossel rodava em torno de um veio de aço
com duzentos e seis ossos, trinta e dois dentes de marfim, e um par
de unhas de gel,
Irra? Vinte Euros por isso...
Compravas dois livros,
Mas mamã, com as unhas de gel fico lindona, e com
os livros... quem me vai ver com os livros, e mamã... para que me
servem os livros? O que eu preciso é de um homem rico, como o teu,
que paga todas as nossas contas, Contas?
Sim, um, dois, três, quatro, cinco vezes três,
vinte e cinco a dividir por três, o cosseno de três pi radianos...,
ou que nos revolva a raiz quadrada de três mil quinhentos e quarenta
e cinco, vês? Contas, o que nós precisamos são de contas pagas,
com a respectiva factura, Factura?
Claro, factura,
E Fatura?
(Não, chinês não saber o quê fatura)
Numa simples caixa de sapatos, sonhos, berlindes,
fotografias a preto-e-branco, bonecos, vestidos para os bonecos,
tudo, tinha lá todos os meus pertences, e agora?
Nada, perderam-se as fotografias, agora são a
cores, não gosto, odeio, e detesto,
Berlindes?
Rebuçados de água e açúcar, mangas ao final da
tarde, chovia-nos no quintal porque a lona da tenda com alguns
problemas de sonorização, e pelas ranhuras entram sons externos ao
espectáculo,
Sons? Não era a chuva?
Também, também, e quando era em demasia
transbordava da caixa de sapatos, e hoje, abro-a, e olho-a, e sinto
(o famoso túnel de vento onde com o meu corpo, tu, experimentavas as
leis aerodinâmicas, e nunca, nunca conseguiste que eu voasse, e
confesso hoje, sem qualquer medo, que te mentia, porque nunca me
imaginei a voar, mesmo quando me ias buscar ao sono das noites das
madrugadas sem movimentos pendulares, olhavas-me, e eu), e sinto as
cancelas da noite a encerrarem-se depois de ela me despir e deitar,
Eu sonhava,
Ela desesperava,
Eles,
Cruzavam os braços em direcção ao pôr-do-sol, e
como o correio, só tínhamos pôr-do-sol duas vezes por semana, e
quanto a marés, essas, apenas três ou quatro vezes por mês, e
mesmo assim, éramos tão felizes, e mesmo assim éramos as gaivotas
embalsamadas que, também elas, só apareciam dez vezes por semana,
quando acordava o dia e quando a noite desaprecia
Em ti,
Como ainda hoje desaparecem todos os meus berlindes
de chocolate, como ainda hoje
Em ti,
Barcos de papel perdem-se no oceano teus seios de
amêndoa, flutuam como algas em desespero, levantam voo, abrem as
asas, e caem sobre as madrugadas filhas dos cortinados de Inverno,
barcos, perderam-se, no
Teus,
Oceano,
Seios de papel que as gotinhas da chuva deixam ficar
sobre as pétalas mortas, eu inseria a moeda na ranhura, ele
devagarinho começava a girar, e eu, aos poucos, sentia-me
envergonhado, redopiava, e de vómitos suspiros, girava e girava e
girava..., até que terminadas as voltas, e a duração da moeda,
estonteante, cambaleava, e ela ia buscar-me ao sono das noites das
madrugadas sem movimentos pendulares, olhavas-me, e eu
Percebia,
Que,
O carrossel tinha cessado os seus movimentos dentro
do corpo dela., como o mar, quando desiste de viver e suicida-se
contra os rochedos dos sexos recheados com insónia.
(texto de ficção não revisto;
qualquer coincidência com a realidade é pura ficção)
@Francisco Luís Fontinha
P.S.
(mamã, parti uma unha..., ai minha filha, valha-nos
Deus, valha-nos..., porque se ele descobre, se, amanhã, podes ter a
certeza que estamos sentadas no passeio junto à Marilú, a pedirmos
esmola, e depois, mamã, quem nos vai fazer as contas? Talvez, ai...
valha-nos Deus, talvez nos apareça outro palerma bom em matemática).