quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Histórias de açúcar

(    )

Nuas não verdadeiras doce tua vida de cidade sem rio, não verdadeiras, todas as falsas janelas com vidros de linho, falsas portas em falsa madeira das árvores que tombaram com o sono e o vento deixava-as como serpentinas de aço enroladas em arbustos com vista para o rio, havia lua, encharcadas de melodias e palavras poeticamente afáveis, belas, nuas
Nas horas de sentido único de uma rua sem saída, ao fundo, um edifício de chocolate com braços de prata, e nos olhos, pequenas pérolas em drageias para combater a insónia, tua
Doce tua,
Inventava-te histórias
Não verdadeiras,
Histórias de crianças que nasceram em Luanda, histórias de crianças que brincavam em Luanda com papagaios de papel e nas sombras ínfimas das mangueiras escondia a solidão do silêncio, inventava-te histórias, inventava-te laranjas com sumo de tomate, inventava-te o amor, e todas as palavras escritas nos muros da paixão
(e confesso que detesto conversar e inventar histórias sobre crianças que nasceram em Luanda, recordo-me das ruas, do mar, dos machimbombos, recordo-me do todos os cheiros, e das cores que a terra húmida construía nos corpos de veludo, e confesso, que detesto)
Os muros da paixão, as mãos dos muros da paixão
(e confesso)
Que detesto os lábios, a boca, os olhos
(e confesso)
Que todas as histórias que te inventei não verdadeiras, falsas, que detesto
(e confesso)
Que a primeira vez que vi socalcos, chorei, como choravam as meninas das minhas histórias de açúcar quando um fino tímido fio de chuva descia e descia, descia os socalcos e entranhava-se no Douro, e chorei
(e confesso)
A primeira vez que vi socalcos.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó


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(Do outro lado do muro)
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Sapo Angola

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Do outro lado do muro

Vivíamos encostados aos muros do medo, e não sabíamos que do outro lado do muro crescia livremente o sol, e não sabíamos que do outro lado do muro brincava livremente a lua, e não sabíamos que do outro lado do muro havia nuvens de todas as cores, do outro lado do muro, não sabíamos
Que vivíamos como serpentes envenenadas pelas enxadas silenciosas das tardes de xisto, quando, que nunca soubemos que do outro lado do muro havia livros com palavras, que nunca soubemos que do outro lado do muro havia triciclos enferrujados com assentos de madeira apodrecida pelas chuvas que amansavam o rancor raivoso do capim livremente do
Outro lado do muro,
Faltava-nos a comida líquida, sólida ou gasosa, faltavam-nos os alicerces que não deixavam cair os edifícios que do outro lado do muro chegavam ao céu, e os pássaros determinados na coragem esquecida no terminal ferroviário ocupavam apenas os andares próximos do chão, pavimento encardido pela saliva dos habitantes com cabeça de serpente e espírito de dobradiça complicada, as portas de acesso pesadíssimas até dizer chega, ouvíamos as plataformas petrolíferas que meia dúzia de gajos inventaram fazendo-nos acreditar que tínhamos petróleo, e petróleo nenhum
Fome,
Raramente havia sol e os nossos corpos pareciam fachadas em ruínas, brancas, mortas, lilases às vezes, muita
Fome,
Raramente vivíamos, deixamos de viver, deixamos de comer, deixamos de dormir, deixamos de amar, deixamos
Outro lado do muro
Fome,
Deixamos de perceber quando era dia, deixamos de perceber quando era noite, deixamos de perceber que dentro da nossa carne existiam duzentos e seis ossos a que não sei a razão, porque nunca percebi, chamavam de
Esqueleto,
E perguntava-me,
E perguntava-lhes,
A fome sabes o que é, o que são esqueletos, o que são árvores, o que são pedras, flores sabes dizer-me o que é uma flor? Define-me o que é o amor
Um rio que corre em direcção à fome,
Outro lado do muro,
Ama-se, vive-se, chora-se de alegria, e grita-se de tristeza, do outro lado do muro sabem o que é o amor, do outro lado do muro sabem explicar-me porque voam os pássaros, ou
Porque amam as mulheres, os homens, os homens e as mulheres, as mulheres, e todas as nuvens de todas as cores, esqueleto,
E perguntava-me,
E perguntava-lhes,
“Vivíamos encostados aos muros do medo, e não sabíamos que do outro lado do muro crescia livremente o sol, e não sabíamos que do outro lado do muro brincava livremente a lua, e não sabíamos que do outro lado do muro havia nuvens de todas as cores, do outro lado do muro, não sabíamos”, e perguntava-lhes
Hoje, hoje vi uma luz cinzenta com um pontinho encarnado, sabes o que é?
Do outro lado do muro
É a paixão disfarçada de lanterna (   )

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Eu só

(   )
Não tínhamos água e só, eu só, e só da velha Gricha jorrava a glicerina fresca com o diabo no rabo ao ditado corrigido pela senhora professora com a bata branca e a menina dos três olhinhos poisada na secretária, olhava-nos, sorria-nos, gostava de nós a gaja
Também eu,
Também eu gostava da gaja que subia a calçada de madrugada, e juro, não era senhora casada nem a menina dos três olhinhos, mas tinha um corpo esculpido num pedaço de granito que eu tentei copiar e desenhar na parede da sala, não, na parede do quarto, não, na parede da cozinha, não
Só tínhamos um compartimento amplo, enorme, com bolinhas coloridos ao bolor que descaiam do tecto como se fossem dois mamilos acabados de nascer, e balões, e serpentinas, e perguntavam-me
Vivem num circo? Respondia-lhes que não, Não vivo num circo, mas a nossa vida é um espectáculo colorido, tínhamos uma casa com muitas janelas e poucos vidros, tínhamos uma sanita velhíssima que quase sempre estava com gripe e tínhamos que a levar às urgências do hospital, no tempo que ainda havia
Hospital?
Urgências nocturnas? E eu achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos que passava à janela a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos esquisitos, os vultos de pedra cinzenta, no tempo que ainda havia
Gajas vestidas de sanita, sentava-me e adormecia, e sonhava com papagaios de papel,
As gélidas escadas de sal dormiam abraçadas aos suspiros da fonte da Gricha e eu achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos, nem clarabóias, nem chaminés com acesso ao céu, passava horas à janela, desenhava dentro da cabeça imagens a preto e branco que só as fotografias sabiam explicar, que só só da velha Gricha jorrava a glicerina fresca com o diabo no rabo ao ditado corrigido pela senhora professora com a bata branca e a menina dos três olhinhos poisada na secretária, olhava-nos, sorria-nos, gostava de nós a gaja, que muitas vezes me aqueceram as mãos de água-fresca como pasteis de feijão ou natas com sabor a Sábados à tarde, como eu
Nunca percebi as mulheres suspensas nos calendários do barbeiro,
Como eu
Nunca percebi as mulheres suspensas nos calendários do sapateiro,
Como eu
Nunca percebi as gélidas escadas de sal que dormiam abraçadas aos suspiros da fonte da Gricha e achava normal não existirem pássaros durante os sonos nocturnos quando se esqueciam de mim à janela a contabilizar os automóveis friorentos que desciam a calçada de luz dos candeeiros enferrujados que iluminavam os vultos esquisitos, os vultos de pedra, simples moças a entrarem em casa de madrugada, congelados os tentáculos de cobre que reluziam e brilhavam debaixo das estrelas de cetim, a nossa casa não tinha vidros, alguns estavam vivos, outros, outros já tinham partido para outros destinos, e a porta de entrada ficava encerrada durante a noite apenas com um cordel que pela parte de dentro era unido por dois pregos, também eles, velhos
Eu só
Eu acreditava que as meninas dos calendários do barbeiro, eu
Eu só
Eu acreditava que as meninas dos calendários do sapateiro, eu
Acreditava
Que eram anjos que voavam dentro dos cubos de madeira que as tempestades de areia, depois de cair a tarde sobre nós, deixavam cair como se fosse abelhas quando procuram o pólen nas flores loucas, nas flores íngreme, ou nas gajas nocturnas com braços de plástico, acreditava
Nos anjos da fonte da Gricha
Eu só.


(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
14/01/2013

domingo, 13 de janeiro de 2013

Solstício da paixão


O sol só
guerreiro da paixão
dentro de quatro paredes em sofrimento
o sol só
só à espera das delícias de um coração
que traz o vento


o vai e vem das coisas amargas
tuas sílabas em imagens parvas


o sol
e a lua
nua

só entre quatro paredes de aço inoxidável
o destino meu
meu querido menino
sem as luzes das estrelas do céu
como um ferrugento barco saudável
afável
nas palavras e nas nádegas mergulhadas em sal e versos cansados
gemem os corpos amados
o sol e o vai e vem das coisas amargas
tuas sílabas em imagens parvas
nua a lua tua


o sol
e a lua
nua

o sol só
em pedaços de xisto com manteiga e mel
eu e o desgraçado papel
onde escrevo palavras
amargas
que saboreio em ré e em dó...

sol

o vai e vem das coisas amargas
tuas sílabas em imagens parvas.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
(  )
Porque só tenho duas...
Subiam, desciam, e vias-me
E vias-me partir de barco debaixo do braço, chapéu na cabeça, e com as sandálias na outra mão por causa da areia, não a reia dos teus lábios, mas a areia fina e fútil da praia, pousava as sandálias, despia-me e colocava a roupa sobre elas, estava nu, e quando tinha o barco em posição para a partida, entrava, sentava-me, sorria ao olhar os restos mortais que tinham sobejado de mim
As sandálias, os calções, e um ou outro parafuso que à partida eu achava que não seriam necessários, e se o fossem, paciência, depois de estar em alto mar, nada a fazer, nada, a não ser, mergulhar profundamente nos oleados maciços das marés aldrabadas pela voz de um solitário, coitadinho, coitados
Dos satélites vestidos de mulher às voltas de um planeta a que toda a gente apelidava de árvore fantasma, esqueleto vagabundo, sentinela sonâmbulo das noite embriagadas com óleo vegetal e sardinhas de conserva, Vou-me a ela
Coitadinho dos coitados plásticos da marmita onde os restos de comida serviam para alimentar um regimento inteiro, muitos, entre a Calçada e os Jardins junto ao rio, os automóveis estacionavam-se e abriam-se as portas de porcelana das bonecas das meninas
Vou-me a ela
A quem o colhe, nem mais, tenho pena das tuas sílabas suspensas nos teus lábios de areia branca, tenho pena das malditas luzes e das rodas-dentas esquecidas na mesinha-de-cabeceira, e à tardinha, dizia-te simplesmente que as meninas eram falsas, nunca existiram, e tal como as bonecas de porcelana e os automóveis de cerâmica, e tal como as meninas e os meninos da Calçada
Vou-me
Adormeciam como os fósforos cansados dos finais de tarde, quando entravas em casa de barco debaixo do braço e dizias-me
Olá amor, regressei,
E eu sabia que tu não regressavas, e eu sabia que continuavas em alto mar à procuras das coisas impossíveis,
Olá amor, regressei,
Atiravas os chinelos para debaixo do sofá, poisavas o barco em cima da mesinha da sala de visitas, despias a camisola e os calções, e mergulhavas nos lençóis de seda da nossa montanha de Primaveras nocturnas que o mar desenhava nas estrelas dos meus seios de papel mata-borrão, e eu via a caneta de tinta permanente em lágrimas azul-cansado que nas moribundas nuvens espetavam no peito nu da melancolia noite,
Olá amor, regressei
Às sandálias, aos calções, e um ou outro parafuso que à partida eu achava que não seriam necessários, e se o fossem, paciência, depois de estar em alto mar, nada a fazer, nada, a não ser, mergulhar profundamente nos oleados maciços das marés aldrabadas pela voz de um solitário, coitadinho, coitados
Amor
Olá regressei,
E eu sabia que tu não regressavas.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

sábado, 12 de janeiro de 2013

Os homens sonoros, que de casa em casa, que, que de jardim em jardim, arbitrariamente prendiam as inocentes palavras que um louco com asas de vidro e olheiras gelatinosas, escrevia nas paredes transparentes dos pilares de areia, morreram, desapareceram nas veias lilases das pétalas em flor, morreram, evadiram-se com éguas em cio correndo sobre o verdejante pasto, húmido, sombrio, os homens, sonoros, que de casa a casa, porta a porta, impingiam rádios a pilhas, lanternas pornográficas, revistas com gajas nuas, que ele vendia num quiosque junto à rotunda das margaridas (flor) envenenadas pelo tesão da chuva esfomeada
Comprávamos três revistas, religiosamente encerradas dentro de um saco plástico, por vinte e cinco escudos,
Da chuva esfomeada vêm-se as estrelas de prata que cobrem o tecto da aldeia com sabor a laranja de S. Mamede de Ribatua, laranja saborosa, conhecida mundialmente, bonita, a moça, da chuva
Dávamos-lhe os vinte e cinco escudos com direitos adquiridos, uma voltinha às revistas, e posteriormente
Revendidas separadamente, aprendi que comprando um maço de cigarros e vender os cigarros a avulso podia ganhar alguns escudos, não muitos, alguns, economia paralela, entre os carris do comboio com destino a Santa Apolónia, e derretiam-se os corações de açúcar quando olhávamos o Tejo vestido de pérola-mármore à porta do Texas em Cais do Sodré,
Até,
Até que...
(   )
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó


Invenções do corpo sonolento

As tuas mãos percorriam milimetricamente os espelhos de invenções do corpo sonolento que alguém tinha deixado sobre a cama com os lençóis de espuma que o mar vomita quando bate nos rochedos da saudade, inventavas o amor desértico onde brincavam os dromedários objectos voadores sobre as planícies das tuas coxas ensanguentadas devido ao excesso de palavras, de vogais, de sílabas, e as frases escorriam pelo canto da boca, um líquido esbranquiçado derretia-se na penumbra nuvem de açúcar, roçavas-te nos poste de chocolate com pontinhos de néon, e começam as construções dos corações de neve, tínhamos
Música encaixotada nos papelões cinzentos distraiam as ovelhas e as cabras que solitariamente arrebanhavam a erva das calçadas de vidro, janelas se abriam, janelas se fechavam, e janelas partiam em direcção aos loucos pasteis de nata que a cidade desenha em cada pastelaria visitada, um palerma, lá fora, enquanto chove docemente, apita, aos berros, um automóvel esfomeado, velho, cansado, talvez sem seguro ou inspecção médica, e os corações de neve
Incham, quando batem à porta e do outro lado aparece o cobrador de fraque, muito bem vestido, muito bem alimentado, palhaço, que o circo da aldeia estacionou na paragem do autocarro da carreira, sentia-se agoniado, sentia-se
Farto, dos vidros falsificados, farto dos pasteis de anta invisíveis e que apenas serviam para enganar o desgraçado estômago de xisto, e as pessoas
Suicidavam-se estupidamente contra os eléctricos,
Havia gajas com saia de chita e luvas de cetim, havia marinheiros poisados em cada patamar da escada de acesso ao navio dos corações de neve, havia gajas, havia gajas suspensas no tecto do circo da aldeia, o mesmo que tinha abandonado o cobrador de fraque, idiota com brilhantina no cabelo de piaçaba,
Havia gajas inconstitucionais, com reformas de duzentos e setenta e quatro euros, havia gajas inconstitucionais com reformas de trezentos e setenta e nove euros, havia gajas
De fraque, e brilhantina no cabelo de piaçaba, que os urinóis das despensas dos prédios clandestinos jorravam contra as faces cruzadas de um cubo de cerâmica dentada, as maçãs, e os pêssegos, e as laranjas, todas, todos
Havia gajas desesperadas, com o passe caducado, nas paragens dos eléctricos, e o vento nocturno quase sempre trazia um colar de pérolas, e a saia e o lenço, e as mãos
As tuas mãos percorriam milimetricamente os espelhos de invenções do corpo sonolento que alguém tinha deixado sobre a cama com os lençóis de espuma que o mar vomita quando bate nos rochedos da saudade, inventavas o amor desértico onde brincavam os dromedários objectos voadores sobre as planícies das tuas coxas ensanguentadas devido ao excesso de palavras,
Da morte
As vogais, de sílabas, e as frases escorriam pelo canto da boca, um líquido esbranquiçado derretia-se na penumbra nuvem de açúcar, roçavas-te nos poste de chocolate com pontinhos de néon, e começam as construções dos corações de neve.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
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(Acorrentado à saudade)

Sapo Angola

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os motores com cavalos cinzentos

Percebia-se pelas pálpebras dele, azuis com sabor a pedacinhos de inocência, que a chuva trazia na algibeira a digestão fictícia dos carrinhos de choque que da infância deixaram estacionados junto ao berço de madeira prensada, calculava pelo peso da noite que não eram mais do que três magras horas da madrugada, chorava, não dormia, e sentia-se que dentro dele viviam parafusos de aço com defeito de fabrico, a garantia tinha cessado, as torres tinham acabado de cair entre os imensos plátanos virgens e os outros, quaisquer, barcos envelhecidos, doidos varridos, deitados sobre as tábuas da ignorância, dele, e eras uma criança. doida às vezes, dócil também, poucas, nenhumas, quaisquer
Vivia-se no fio metálico da navalha e ele tinha medo dos cobertores com remendos de chapa que a mãe, mecânica, tinha feito para que pudessem dormir e nada deles saísse durante a noite, atravessasse os buracos do velho tecido, e pelos partidos vidros das janelas fossem aterrar no paralelepípedo da rua com costas de geada, os braços murchavam, e derretiam-se como a manteiga sólida que o inverno pintava como se fossem pedaços de pedra, e quando lhe perguntavam
Gostas de cá andar, e ele com rosto de incenso respondia quase sempre Às vezes, depende, e nunca percebi o que queria ele dizer com Às vezes, depende
Acordava o dia, retiravam-lhe a fralda de pano encharcada numa espessa massa amarelada intensamente com um cheiro horrível, indesejado, que aos poucos ia ocupando cada milímetro quadrado da casa de Lisboa, um enfadado rés-do-chão meio podre, meio enraizado no Outono pássaros de luz que vinham do outro lado do rio, entravam em casa, sentavam-se na mesa da cozinha, e da janela
(Tanta coisa para dizer que cheirava a “merda”)
E da janela sentiam-se os motores com cavalos cinzentos em lábios de fumo, ouvia-se o rosnar da fera amansada criança deitada no sofá à espera que lhe trocassem a fralda de pano por outra fralda de pano, limpa, lavada, e o motor aos tropeções avançava mar adentro até desaparecer nas velhas cristas das ondas de espuma que os cigarros embebidos em cerveja emagreciam como tremoços numa esplanada de Belém, sexta-feira, e nada de novo, foi-se e não regressou mais
Às tuas, Às minhas, Às nossas,
E não regressou mais,
Chegava ao balcão e pedia incessante e audaz ao empregado “Destroque-me” esta nota para tirar cigarros, e ela
Não se diz “Destroque-me”, tá ver Francisco, isso não existe, correctamente é Troque-me esta nota para tirar cigarros, e eu acreditava mesmo que os ossos de pano que às vezes me embrulhavam tinham saído de validade há tempo suficiente, só podia, não encontrava outra explicação para o tão grande aglomerado de homens e mulheres à porta de minha casa, gritando
(Tanta coisa para dizer que cheirava a “merda”)
Às tuas, Às minhas, Às nossas,
E não regressou mais,
Um enfadado rés-do-chão meio podre, meio enraizado no Outono pássaros de luz que vinham do outro lado do rio, entravam em casa, sentavam-se na mesa da cozinha, e da janela, da janela vinha-nos o medo das coisas como as simples flores encarnadas com lacinhos de cetim que eu nunca soube como se chamavam e tu, quando eu chegava a casa, simplesmente deitavas no caixote do lixo e dizias em voz alta para que eu ouvisse e não esquecesse nunca
Não quero mais esta porcaria, odeio flores encarnadas com lacinhos de cetim,
E eu,
E ela,
Olhavam-me depois de trocarem-me a fralda de pano, abria a boca e sorria, sorria quando sabia que da janela vinham as imagens tricolores com pequenos fios de prata, sorria porque tinha acabado de beber o saborosíssimo e inconfundível leite materno, sorria porque
Vivia-se no fio metálico da navalha e ele tinha medo dos cobertores com remendos de chapa que a mãe, mecânica, tinha feito para que pudessem dormir e nada deles saísse durante a noite, atravessasse os buracos do velho tecido, e pelos partidos vidros das janelas fossem aterrar no paralelepípedo da rua com costas de geada, os braços murchavam, e derretiam-se como a manteiga sólida que o inverno pintava como se fossem pedaços de pedra,
Às tuas, Às minhas, Às nossas,
E não regressou mais,
(Tanta coisa para dizer que cheirava a “merda”)
E da janela sentiam-se os motores com cavalos cinzentos em lábios de fumo.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó