Tinham-nas coberto com
uma fina película de prata, as casas e as ruas e as poucas árvores
livres da cidade, os relógios cessaram os movimentos pendulares após
o sorriso tracejante das balas invisíveis que caminhavam na
esplanada da noite, eu acendia os cigarros com um pedacinho de
silêncio, quando existia, e sonhava transformar-me em sombra e
acordar um dia distante nas profundezas do oceano, tinham-nas
coberto, as casas e as ruas e as poucas árvores amigas que me
restavam naquela noite invernal esquecida nos penhascos moliceiros
mendigos de Janeiro, e eu recordo-me do primeiro berro que escrevi
numa parede de Luanda, e eu, nos penhascos e as poucas árvores
amigas que me restavam, talvez um dia tu percebas o que é a pobreza
e a miséria,
- talvez um dia eu
compreenda os gemidos cansados da geada quando ligava a torradeira
para aquecer as mãos, finas e compridas, dizias-me que lá foram os
jardins eram de areia, e eu não, nunca mais toquei nas lágrimas da
areia, apenas uma fina película de prata, as casas e as ruas e as
poucas árvores livres da cidade tilintavam os parafusos metálicos
quando o comboio em direcção a Cais do Sodré atravessava a cidade
acabada de ser engolida pela solidão, tu dizias-me que um dia ia
perceber o que era a pobreza e ser miserável, e um dia as poucas
árvores amigas livres da cidade, tinham-nas, tinham-nas coberto com
uma fina película de fome, e tu dizias-me que um dia eu ia perceber,
e percebi, hoje, ontem percebi que me fazes falta quando cai sobre
mim a fina película de prata,
as balas invisíveis
tracejantes em círculos nos cigarros, escrevi numa parede de Luanda,
e eu, nos penhascos e as poucas árvores amigas que me restavam,
talvez um dia tu percebas o que é a pobreza e a miséria, e
estupidamente ligava a torradeira para aquecer as mãos de mármore,
e ouvia-te dizeres-me, tão grandes e finas, as árvores amigas que
vivem na cidade dos sonhos, ouvia-te
- não temos nada para
comer,
ouvia-te chorar dentro do
silêncio da chita imitando os cortinados com flores das ruas de
Luanda, e a primeira palavra que gritei numa parede de vidro Tenho
fome, e nunca terás fome, prometo, e escrevi nas paredes livres da
cidade, antes das balas tracejantes desenharem árvores com fome e as
casas e as ruas finas com uma película de prata, Leva-me ao jardim
- não temos nada para
comer, e levava-te a passear até ao mar e ficavas-te a dormir
juntamente com a cidade, juntamente com os barcos, e juntamente com
os movimentos pendulares das semanas, desapareceste entre as minhas
mãos, perdi-te na torradeira enquanto aquecias, tão grandes e
finas, as árvores, e as ruas,
antes das balas
tracejantes desenharem árvores com fome e as casas e as ruas finas,
eu não percebia que um dia vinhas ao meu encontro, te sentavas nas
minhas pernas e inventavas o apito dos cacilheiros antes de eu
perceber que o Tejo engole os meninos regressados de Luanda, e que
eles tinham-nas coberto com uma fina película de prata, as casas e
as ruas e as poucas árvores livres da cidade, os relógios cessaram
os movimentos pendulares após o sorriso tracejante das balas
invisíveis que caminhavam na esplanada da noite, eu acendia os
cigarros com um pedacinho de silêncio, quando existia, e sonhava
beijar-te de costas para o rio, e escondia-me depois dentro do teu
corpo pintado nos carris paralelos abraçados no infinito,
perguntavas-me
- falta muito,
respondia-te que não,
mentia-te, inventava sombras e homens que te diziam andar eu a
passear junto ao rio, e não sabias, não percebias, que a fome
quando se alicerça em nós é como as algas, dificilmente nos deixam
caminhar livremente, nos penhascos moliceiros mendigos de Janeiro, e
eu recordo-me do primeiro berro que escrevi numa parede de Luanda, e
eu, nos penhascos e as poucas árvores amigas que me restavam, talvez
um dia tu percebas o que é a pobreza e a miséria, mentia-te, e tu
acreditavas nas nuvens que regressavam do outro lado do rio, a ponte
dormia, tu dançavas sobre a mesa espessa com garrafas de vodka e
pequeníssimos papeis escritos com as memórias mentiras de ontem,
falta muito?
- Quase lá, o cabelo
descia a Almirante Reis e numa transversal perdia-se numa noite de
sexo, compreenda-se, compreenda-me, dizias-me tu antes de chegares
aos lençóis mergulhados na infância com as paredes de vidro
recheadas com os gritos de um miserável doentio navio desgovernado,
espessas com as garrafas
de vodka pintadas nos lábios encarnados da cave nua, triste, e as
balas invisíveis tracejantes em círculos nos cigarros, escrevi numa
parede de Luanda, e eu, nos penhascos e as poucas árvores amigas que
me restavam, talvez um dia tu percebas o que é a pobreza e a
miséria, e estupidamente ligava a torradeira para aquecer as mãos
de mármore, e ouvia-te dizeres-me, tão grandes e finas, as árvores
amigas que vivem na cidade dos sonhos, ouvia-te, dizias-me que as
mentiras são eternas, como as palavras, e as tuas mãos
desapareceram na torradeira numa qualquer noite de Janeiro,
- falta muito
Perguntavas-me de segundo em segundo, tanta curva meus grande deus, e
nunca mais terminava a montanha, crescia e descia a Almirante Reis
para estacionar-me nas tuas mamas de socalco frente ao douro
hoje não me apetece,
- socalco frente ao
douro, dizias-me baixinho a virar para a transversal dos prazeres e
dos gemidos, é hoje, e não foi hoje que as lágrimas de seda
mergulharam nas tuas coxas de marfim, ao longe, infinitamente
abraçados ouvia os carris da infância à procura do rio, a ponte,
hoje não me apetece
Dizias-me quando te perguntava o que tinha acontecido às árvores
amigas que durante a noite deambulavam pela cidade, vestidas de
mendigo, hoje não, ouvia-te lá fora, hoje não me apetece ouvir o
rio no púbis dos socalcos,
oiço-te, ouvia-te os
gemidos do infernal inverno quando abria a torradeira e aquecia as
minhas mãos gélidas pergaminho em palavras miseras, hoje vi-te,
oiço-te nos gemidos gritos das paredes de vidro,
- não me apetece,
e no entanto o rio está
lá, e no entanto os socalcos estão lá, findos, húmidos desejos
das montanhas em corridas loucas avenidas, saboreio o café e
delicio-me com o novo livro de A. Lobo Antunes “Não É Meia Noite
Quem Quer” e não me apetece, e o empregado do Jeronymo sorri-nos
enquanto tu
- hoje não me apetece
Dizias-me quando te perguntava o que tinha acontecido às árvores
amigas que durante a noite deambulavam pela cidade, vestidas de
mendigo, hoje não, ouvia-te lá fora, hoje não me apetece ouvir o
rio no púbis dos socalcos, oiço-te, ouvia-te, sussurrar ao meu
ouvido
enquanto tu pegavas na
minha mão suspensa na torradeira da infância...
(texto de ficção não
revisto)