quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Livremente eu em voos telegráficos aos teus braços


Verdes olhos que o espelho da noite constrói
os meus
nas cinzentas fitas de mel
sobre as árvores cansadas e teus
braços o fogo destrói
as finíssimas estrelas de papel

malvadas distâncias entre as duas margens encalhadas no vento
não pontes nem barcos nem as palavras badaladas
debaixo do céu
não me oiças quando descem as madrugadas
e as janelas mergulham no salgado sofrimento
da leitura Cartas Ao Léu (Luiz Pacheco)

verdes olhos que o espelho da noite constrói
no momento vácuo dos versos a dois
em teu corpo desenho a manhã penhorada
pois
que nas pedras a dor se mói
e o mar se esconde na tua boca doirada...

(poema não revisto)

8 milímetros de tédio entre quatro paredes de vidro


A cena passa-se dentro de um carro
uma avenida despida
duas miúdas giras
e um charro
o charro come o carro
e sem roupa
a avenida
finge orgasmos no rosto das miúdas giras
eu estou sentado
na pastelaria
à janela
à deriva
espero espero e espero
e ela não vem
e ela sentada invisível na minha mesa
choram choram choram as luzes cansadas do silêncio meu destino
as duas miúdas giras
e um charro
dentro de um carro
à deriva na avenida
sem roupa
despida
que puta a minha vida
sem carro
sem miúdas giras
que fingem orgasmos no rosto do charro
que puta
a minha
que puta de vida esta de estar sentado na pastelaria
abandonado
nos cornos da avenida...
nua
tua
perdidamente despida
a avenida Sá Carneiro.

(poema não revisto)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Longínquas sombras amnésias que constroem a cidade


Gostavas de regressar das longínquas sombras
amnésias que constroem a cidade
dentro da cidade invisível do sono
e chegavas tardíssimo às pálpebras húmidas do sorriso de uma rosa
e chegavas
aos meus braços eternos do amanhecer doirado tua língua de silêncios,

acendias timidamente o candeeiro das palavras de ontem
como se eu fosse um dos teus livros parvos
insignificantes
abandonados
sobre uma mesa de cartão deixada nas traseiras da casa sem janelas
e nunca te ouvi um gemido,

e nunca prenunciaste um lamento
nas ardósias da insónia
gostavas de regressar das longínquas sombras
amnésias que constroem a cidade
e a cidade meu amor é toda nossa
e vive dentro da algibeira dos sonhos,

e chegavas e dentro de mim poisavas os medos
e os abismos de luz que carregavas nos ombros da vida
vivias numa rua destruída hoje pelo amanhecer que as gaivotas de aço
deixam ficar no térreo pavimento da solidão
e vive dentro da algibeira dos sonhos,

e vive
gostavas de mim
insignificantes
abandonados
os olhos da claridade clandestina que a morte
tua mão em mim semeava.

(poema não revisto)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

noite melancólica

bem-vinda saborosa noite melancólica do infinito inferno silêncio da luz construída entre dois orifícios, que a fechadura nocturna da mini-saia depravada voz inventa nas flores e limita limitadamente as palavras murmuradas, os cereais e o leite com chocolate, bem-vinda saborosa noite, internada num livro apavorado no medo clandestino das janelas suspensas no lençol equilátero semeado na ardósia de papel às árvores aventuras de uma esplanada em ruínas, procuras

- os fósforos, filtros, mortalhas, coisas poucas e comuns que procuro na algibeira e dou voltas circulares dentro da cidade, tenho vómitos, talvez excesso de palavras, talvez excesso de cachimbos vazios, sozinhos, cansados de mim para mim, ao cair a noite nas traseiras da semana tristemente cansada dos suspiros madrugadores que o palhaço e a trapezista desenham debaixo da tenda do circo invisível, os holofotes de tinta nos pedaços de aço que sobejam na calçada das abelhas singelas migalhas de desejo, ouvem-se triângulos de sombras nas paredes das patogénicos meninos de porcelana, bem-vinda, madrugada sem destino, descuradamente feliz nas mãos do Outono, ela dizia-se senhora dona da rua das flores e largo das eiras campestres dos dias passados à lareira, dizias-me, dizias-me, sussurravas-me

não venhas tarde, e

- e eu, perdia-me semanas a fio até desaguar no cais das âncora de papel e chocolates em amêndoa que a pastelaria azul servia nos intervalos da poesia nojenta que eu, e eu, eu escrevia amedrontado que as minhas palavras mergulhassem na ferrugem dos barcos apaixonados, e eu, eu ficaria também apaixonado loucamente perdido em ti, em ti às vezes eu sobejo os fios de sémen estupidecidos num qualquer banco do jardim, não me sento em ti, não me abraço a ti

porquê eu?

- abraçado a ti, e dentro de ti vive um poço infindável de luz com cerejas e mel, porquê eu, não me abraço a ti acreditando que na ardósia de papel existem números complexos, matrizes, equações diferenciais, porquê eu vestido com cetim e fitas encarnadas no cabelo loiro indesejado pelos homens dos desertos bares da escuridão,

de que tens medo Perguntas-me todas as alvoradas quando regressas com os cereais e o leite com chocolate, olho pela janela a verdadeira vida vivida vivendo eu nas tuas mãos de manhã ensonada, os sexos orgulhosamente felizes, também eles, nós, os sonhos

- porquê os sonhos?

se amanhã é sábado, e os rios estão encerrados para descanso do pessoal.

(texto de ficção não revisto)

As mortas mãos da paixão


As mortas mãos da insónia
prisioneiras do meu silenciado peito
da dor
o odor suspeito
de uma flor em decomposição,

As mortas mãos
coitadas em esqueletos coração
da flor
o amor
que o desejo tece no tecto da paixão.

(poema não revisto)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Só cinco minutos

Tínhamos acabado de perder todas as janelas da nossa misera casa e o meu pai cambaleando dentro dos suspensórios da tempestade murmurava

- paciência é da maneira que não vai faltar-nos o ar, e a ventilação funcionará perfeitamente sem o constante medo da lareira acesa, da porcaria da braseira, assim, assim não nos faltará o ar,

murmuradas as listras do avental, a pobre mulher estritamente ausente na minha presença a quem eu chamava de mãe, chegava-se a mim, colocava um dos braços na minha cintura e perguntava-me Então filho como vão as coisas? Quais coisas nunca eu percebi a que se referia ela, mas respondia-lhe que mal, as coisas, as suas coisas, as coisas vão muito mal, E como mal?, Mal, Mal, Tudo vai mal, até as janelas acabamos de perder com o maldito vento, e às vezes, e às vezes ainda tenho coragem de fazer poemas ao vento,

- puta que o pariu

cambaleando nos alforges malignos do intestino grosso, a cidade corria dentro da algibeira e quando chovia, uma fina película de incenso aparecia junto ao soalho, ajoelhava-se e eu pacientemente esperava que ela terminasse de rezar o terço, Questionar-me porquê? Nunca tive coragem de lhe dizer o que pensava sobre isso, Isso o quê? Nada meu filho, coisas, coisas minhas, Amo-te sabias, Sim mãe, sei sempre soube, cambaleando dentro dos suspensórios da tempestade murmuradas as páginas perdidas que fui escrevendo quando dentro de minha casa era noite, porque nem todos os dias era noite dentro de casa, umas vezes

- paciência é da maneira que não vai faltar-nos o ar, e a ventilação funcionará perfeitamente sem o constante medo da lareira acesa, da porcaria da braseira, assim, assim não nos faltará o ar, puta que o pariu,

umas vezes era noite dentro de casa e lá fora estava sol, lembrava-me de Carvalhais quando me deitava sobre as lajes maciças da preguiça e olhava o sol radiante, outras vezes, dentro de casa brincava o mar e a maré de Março, cresciam as flores, sorriam os pássaros acabados de acordar, e chovia torrencialmente e na rua, chovia torrencialmente na rua, e os candeeiros de néon aprisionados ao cais de engate, ficava confuso, muitas vezes, era noite dentro de casa, e ou devia estar com atenção ao jorro urinário no mictório ou a guardar os olhos do vizinho do lado, Belém era assim, estranha, bela, com um rio deslumbrante que só voltei a encontrar dentro de casa quando comecei a folhear as fotografias da infância, havia barcos com pernas de marfim e olhos de diamante, e eu pensava ser a criança mais rica do universo, afinal sem janelas a misera casa, docemente me abraçava e ao ouvido sussurrava-me Amo-te meu filho, e eu, e eu sei que sim,

que as coisas iam de mal a pior, o vento não cessava, as árvores todos os dias tombavam sobre nós, nós refiro-me a mim e aos meus três irmãos, dois rapazes e uma rapariga e um que era rapaz e rapariga ao mesmo tempo, começou a chamar-me de mestre e quando lhe ensinei as primeiras letras escrevia nas paredes do quarto, desenhava, desenhava muito, e eu sentia-me triste porque não percebia as suas palavras nem os seus desenhos, olhava-o, e ele era tão frágil, débil, tão..., tão lindo queixava-se a minha mãe a chorar quando adormeceu em pé com ele ao colo e só acordou quando o miúdo/miúda devido às leis da gravidade... pum, pavimento, tão duro o gajo, paciência é da maneira que não vai faltar-nos o ar,

- assim, assim não nos faltará o ar, puta que o pariu

eras loiro,

- os gajos e as gajas com alicerces de silêncio nos lábios,

eras loiro das minhas mãos verdejantes quando lacrimejava o teu rosto de papel vegetal, a chuva espessamente dentro de um cubo de vidro, tu ausente de mim, dentro de mim, aos poemas imaginados pelos penhascos vadios da dor, amava-te e aprendi que os poemas são rosas com muitas cores, amava-te e aprendi que os poemas são rosas vestidas de noite, quando dentro de casa, sem janelas, as lâminas das estrelas caiem sobre os timbres morfológicos do medo, o medo eterno de perder-te e de nunca mais encontrar a tua cidade dos sonhos, a cidade onde passeávamos antes de se despir a madrugada

- os gajos e as gajas com alicerces de silêncio nos lábios, havia uivos, havia literatura em todas as paragens do autocarro, lambia-te docemente as mãos de seda com que me tocavas quando líamos qualquer coisa de AL Berto, e no entanto, e outras vezes apenas ficávamos a contemplar a noite que só existia dentro de casa, a noite da casa que vivia na cidade dos sonhos,

acordava tarde, só cinco minutos, e os amantes nocturnos viajavam rio adentro até desaparecerem na neblina, a cidade onde passeávamos antes de se despir a madrugada, cerrava os olhos e tínhamos acabado de perder todas as janelas da nossa misera casa.

(texto de ficção não revisto)

Juro, Juro que eu trocava.


Trocava as minhas asas
pelos teus lábios
doce madrugada
trocava o silêncio do mar
quando a chuva em gotinhas de amanhecer
poisa nos jardins do prazer,

juro,
juro que eu tocava,

trocava a doce madrugada
às minhas asas
proibia-me de voar
proibia-me de sonhar
só para te ver sorrir
sem sofrer,

juro,
juro que eu tocava,

a doce madrugada
trocava as minhas asas
com o vento que acorda na janela do teu amor
a doce maré em sílabas de amar
eu trocava
as minhas asas com o mar,

juro,
juro que eu tocava...

(poema não revisto)

Blogue Cachimbo de Água em destaque – Sapo Angola


domingo, 25 de novembro de 2012

O bisturi entre os gemidos da alvorada

Parecias-me cansado e raramente entraste no quarto escuro, não chovia, dormitava às vezes, e ouvia através das fendas das paredes caquécticas os uivos do mar, raramente entraste no quarto escuro e encostavas a cabecinha loira no ouvido de gesso e ao longe ouvia-se o mar a descer as escadas da noite, pensava em ri, raramente me vinhas visitar, frágil o meu corpo retalhado e ausentado das manhãs chuvosas de Outubro, raramente, oiço-te em sombras tracejadas e caminhavas no passeio junto à paragem do autocarro, queria tocar-te e tu escondias-te dentro de um silêncio de luz, não, juro que não me importo, nunca, me importei ou importarei com o teu corpo retalhado pelo bisturi entre os gemidos da alvorada,

- o teu corpo meus deus, o que fizeram ao meu corpo flor dissimilada que o rio transporta para longe, para longe onde fica o cais de desembarque, e todos os destinos regressam da viagem, é terça-feira e reconheço que hoje, hoje esperava um abraço teu, hoje apetece-me mostraste as costuras do bisturi entre os gemidos da alvorada, e hoje, hoje percebi que perdi o medo do meu corpo, que é teu, nosso, como se um poema esteja a crescer nas minhas coxas húmidas que os sons nocturnos desenham nos candeeiros semeados na seara do medo, perdi o medo, e hoje, hoje tua, eternamente tua

parecias-me cansado

- posso tocar-te?

a cabecinha loira no ouvido de gesso e ao longe ouvia-se o mar a descer as escadas da noite, pensava em ri, com a tesoura da costura recortava as estrelas de papel e colava-as no tecto da saudade, olhava incessantemente a janela, desenhava-te nos vidros opacos e sujos do hospital, inventava beijos e carícias, e tu não deixavas que me aproximasse dos loiros ouvidos de gesso onde se percebia os gemidos do mar, ao longe, inquietantemente do outro lado do túnel de luz, os barcos em pequenos orvalhos transportavam as dores que entravam no meu corpo e raramente, raramente entraste no quarto escuro, não chovia, dormitava às vezes, e ouvia através das fendas das paredes caquécticas os uivos do mar,parecias-me cansado,

- posso tocar-te? E nunca percebi o teu mau humor, e eu, eu não percebia que cada pedacinho do corpo de uma mulher tem significado, existe, e não percebia o teu medo, repulsa, ausência, o medo que nunca existiu em mim, posso tocar-te? Não, e escondias-te dentro do guarda-fato e eu ficava a imaginar os teus lábios no sofrimento das madrugadas sem dormir, trocava o sono pela insónia, revolta-me comigo, contigo, com deus, com o caralho que me foda..., porquê tu? E não percebia, não percebo, olho-te e oiço-te, e nunca percebi o bisturi entre os gemidos da alvorada,

frágil, cuidado, não inverter, os lençóis enganchavam-se nos orgasmos das avenidas que terminavam no rio, fumava, adormecia sonhando sentir-te sentada sobre os meus joelhos de vidro, pensava para que me serve um cachimbo de água se eu deixei de fumar, Posso tocar-te?

- às vezes,

e tinhas medo das minhas mãos, o teu corpo meus deus, o que fizeram ao meu corpo flor dissimilada que o rio transporta para longe, para longe onde fica o cais de desembarque, e todos os destinos regressam da viagem, é terça-feira e reconheço que hoje

- às vezes,

que hoje percebo os teus medos, e que hoje, às vezes, os barcos sentados no estuário das garrafas de vodka mergulhadas em qualquer rua em Cais do Sodré, o teu silêncio, desaparecias e via-te nas paredes invisíveis do meu medo, perder-te, não tocar-te sabendo eu que não era importante tocar-te, para mim não, talvez o fosse para ti, e sabes, sou simples, humilde, também frágil, e às vezes, preciso de ver os barcos a regressarem do longínquo que só tu percebes, parecias-me tão cansada, moribunda, e construías sorrisos nas lágrimas doces das abelhas em flor,

- e às vezes, às vezes acreditei que nunca me ias tocar, perdi o medo, tocaste-me, e como é bom ser tocada pela tua finíssima pele de Outono, hoje, ontem, não chove, talvez amanhã, mas hoje sei que nunca tiveste medo do meu corpo...

Sei que sim.

(texto não revisto)

sábado, 24 de novembro de 2012

Os gemidos cansados da geada quando ligava a torradeira


Tinham-nas coberto com uma fina película de prata, as casas e as ruas e as poucas árvores livres da cidade, os relógios cessaram os movimentos pendulares após o sorriso tracejante das balas invisíveis que caminhavam na esplanada da noite, eu acendia os cigarros com um pedacinho de silêncio, quando existia, e sonhava transformar-me em sombra e acordar um dia distante nas profundezas do oceano, tinham-nas coberto, as casas e as ruas e as poucas árvores amigas que me restavam naquela noite invernal esquecida nos penhascos moliceiros mendigos de Janeiro, e eu recordo-me do primeiro berro que escrevi numa parede de Luanda, e eu, nos penhascos e as poucas árvores amigas que me restavam, talvez um dia tu percebas o que é a pobreza e a miséria,

- talvez um dia eu compreenda os gemidos cansados da geada quando ligava a torradeira para aquecer as mãos, finas e compridas, dizias-me que lá foram os jardins eram de areia, e eu não, nunca mais toquei nas lágrimas da areia, apenas uma fina película de prata, as casas e as ruas e as poucas árvores livres da cidade tilintavam os parafusos metálicos quando o comboio em direcção a Cais do Sodré atravessava a cidade acabada de ser engolida pela solidão, tu dizias-me que um dia ia perceber o que era a pobreza e ser miserável, e um dia as poucas árvores amigas livres da cidade, tinham-nas, tinham-nas coberto com uma fina película de fome, e tu dizias-me que um dia eu ia perceber, e percebi, hoje, ontem percebi que me fazes falta quando cai sobre mim a fina película de prata,

as balas invisíveis tracejantes em círculos nos cigarros, escrevi numa parede de Luanda, e eu, nos penhascos e as poucas árvores amigas que me restavam, talvez um dia tu percebas o que é a pobreza e a miséria, e estupidamente ligava a torradeira para aquecer as mãos de mármore, e ouvia-te dizeres-me, tão grandes e finas, as árvores amigas que vivem na cidade dos sonhos, ouvia-te

- não temos nada para comer,

ouvia-te chorar dentro do silêncio da chita imitando os cortinados com flores das ruas de Luanda, e a primeira palavra que gritei numa parede de vidro Tenho fome, e nunca terás fome, prometo, e escrevi nas paredes livres da cidade, antes das balas tracejantes desenharem árvores com fome e as casas e as ruas finas com uma película de prata, Leva-me ao jardim

- não temos nada para comer, e levava-te a passear até ao mar e ficavas-te a dormir juntamente com a cidade, juntamente com os barcos, e juntamente com os movimentos pendulares das semanas, desapareceste entre as minhas mãos, perdi-te na torradeira enquanto aquecias, tão grandes e finas, as árvores, e as ruas,

antes das balas tracejantes desenharem árvores com fome e as casas e as ruas finas, eu não percebia que um dia vinhas ao meu encontro, te sentavas nas minhas pernas e inventavas o apito dos cacilheiros antes de eu perceber que o Tejo engole os meninos regressados de Luanda, e que eles tinham-nas coberto com uma fina película de prata, as casas e as ruas e as poucas árvores livres da cidade, os relógios cessaram os movimentos pendulares após o sorriso tracejante das balas invisíveis que caminhavam na esplanada da noite, eu acendia os cigarros com um pedacinho de silêncio, quando existia, e sonhava beijar-te de costas para o rio, e escondia-me depois dentro do teu corpo pintado nos carris paralelos abraçados no infinito, perguntavas-me

- falta muito,

respondia-te que não, mentia-te, inventava sombras e homens que te diziam andar eu a passear junto ao rio, e não sabias, não percebias, que a fome quando se alicerça em nós é como as algas, dificilmente nos deixam caminhar livremente, nos penhascos moliceiros mendigos de Janeiro, e eu recordo-me do primeiro berro que escrevi numa parede de Luanda, e eu, nos penhascos e as poucas árvores amigas que me restavam, talvez um dia tu percebas o que é a pobreza e a miséria, mentia-te, e tu acreditavas nas nuvens que regressavam do outro lado do rio, a ponte dormia, tu dançavas sobre a mesa espessa com garrafas de vodka e pequeníssimos papeis escritos com as memórias mentiras de ontem, falta muito?

- Quase lá, o cabelo descia a Almirante Reis e numa transversal perdia-se numa noite de sexo, compreenda-se, compreenda-me, dizias-me tu antes de chegares aos lençóis mergulhados na infância com as paredes de vidro recheadas com os gritos de um miserável doentio navio desgovernado,

espessas com as garrafas de vodka pintadas nos lábios encarnados da cave nua, triste, e as balas invisíveis tracejantes em círculos nos cigarros, escrevi numa parede de Luanda, e eu, nos penhascos e as poucas árvores amigas que me restavam, talvez um dia tu percebas o que é a pobreza e a miséria, e estupidamente ligava a torradeira para aquecer as mãos de mármore, e ouvia-te dizeres-me, tão grandes e finas, as árvores amigas que vivem na cidade dos sonhos, ouvia-te, dizias-me que as mentiras são eternas, como as palavras, e as tuas mãos desapareceram na torradeira numa qualquer noite de Janeiro,

- falta muito Perguntavas-me de segundo em segundo, tanta curva meus grande deus, e nunca mais terminava a montanha, crescia e descia a Almirante Reis para estacionar-me nas tuas mamas de socalco frente ao douro

hoje não me apetece,

- socalco frente ao douro, dizias-me baixinho a virar para a transversal dos prazeres e dos gemidos, é hoje, e não foi hoje que as lágrimas de seda mergulharam nas tuas coxas de marfim, ao longe, infinitamente abraçados ouvia os carris da infância à procura do rio, a ponte,

hoje não me apetece Dizias-me quando te perguntava o que tinha acontecido às árvores amigas que durante a noite deambulavam pela cidade, vestidas de mendigo, hoje não, ouvia-te lá fora, hoje não me apetece ouvir o rio no púbis dos socalcos,
oiço-te, ouvia-te os gemidos do infernal inverno quando abria a torradeira e aquecia as minhas mãos gélidas pergaminho em palavras miseras, hoje vi-te, oiço-te nos gemidos gritos das paredes de vidro,

- não me apetece,

e no entanto o rio está lá, e no entanto os socalcos estão lá, findos, húmidos desejos das montanhas em corridas loucas avenidas, saboreio o café e delicio-me com o novo livro de A. Lobo Antunes “Não É Meia Noite Quem Quer” e não me apetece, e o empregado do Jeronymo sorri-nos enquanto tu

- hoje não me apetece Dizias-me quando te perguntava o que tinha acontecido às árvores amigas que durante a noite deambulavam pela cidade, vestidas de mendigo, hoje não, ouvia-te lá fora, hoje não me apetece ouvir o rio no púbis dos socalcos, oiço-te, ouvia-te, sussurrar ao meu ouvido

enquanto tu pegavas na minha mão suspensa na torradeira da infância...

(texto de ficção não revisto)