sábado, 24 de dezembro de 2022

Planeta Terra

 Vive-se e vai-se vivendo

Enquanto este planeta de loucos

Gira e não pára de girar

Vive-se

Vai-se vivendo

Uns dias alegre

Outros dias a chorar.

 

Vive-se carregando um sobretudo de insónia

Quando a noite se despe

E se deita junto ao rio

Vive-se

Vai-se vivendo

Vivendo de frio.

 

Vive-se carregando a enxada da vida

Vive-se

Vai-se vivendo…

Vivendo a poesia.

 

E se um dia

Se um dia

Dia

Esta puta de vida

For um suspiro de vento

Não vivo

Não vou vivendo

Vivendo das palavras que alimento…

 

Vive-se

Vai-se vivendo

 

Enquanto isso

A Terra não pára de girar.

 

 

 

 

Alijó, 24/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Dos dias o outro dia

 Os dias

Os dias que vão passando

Nos dias que nunca esquecemos

As palavras que os dias nos dizia

 

Aos dias

Os meus dias

Enquanto os dias tinham outros dias

 

Os dias cinzentos

Nos dias nublados

Os meus dias

Os dias…

 

E se um dia eu for dia

Se eu pudesse ser dia

 

Não

 

Não o queria

 

Deixei de gostar dos dias

E sou apaixonado pela noite

De preferência sem luar

Noite

Muito escura

 

Escura.

 

 

 

 

Alijó, 24/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Da minha janela

 Sei que desta janela nunca verei o mar

Porque o mar está longe

Muito longe

E desta janela

Também não verei o rio

Não está muito longe

E também não está muito perto,

 

E para que da minha janela

Eu

Eu mesmo

Veja o mar

E veja o rio

Preciso primeiro

Ir à janela

Puxar por um cigarro

Arregaçar as mangas da camisa

E gritar…

 

Marrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

Riooooooooooooooooo

 

Dou uma baforada no cigarro

Suspiro

E o mar e o rio e a lua e anoite

Todos

Entram pela janela

E deitam-se sobre a minha secretária.

 

 

 

 

 

Alijó, 22/12/2022

Francisco Luís Fontinha

No sorriso de uma criança

 Às vezes

O sorriso de uma criança

Esconde as lágrimas de uma mãe.

 

E quantas vezes

Muitas vezes

Uma mãe inventa sorrisos na cara

Escondendo as lágrimas e a tristeza

Para que uma criança não saiba

Nunca saiba o que é a pobreza.

 

Muitas vezes

Às vezes

Uma mãe não se suicida

Porque vê uma criança

Uma criança feliz

Contente…

Uma criança com vida.

 

E tantas vezes

Algumas vezes

Eu percebia que a minha mãe chorava

E confrontada…

Me engava

E explicava-me que o dia estava tão belo!

E meu Deus…

Como poderia o dia estar tão belo

Se chovia torrencialmente

E tínhamos o frigórico sem nada…

 

Muitas vezes

Às vezes

No sorriso de uma criança

Acorda a manhã nublada,

 

E muitas vezes

Às vezes…

Uma manhã nublada

Pode ser o sorriso de uma criança

Quando essa pobre criança é amada.

 

 

 

Alijó, 22/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Deus do mar envenenado

 Se eu pudesse ser

Eu era

Barco ou caravela

Nuvem foguetão

Poeta sem escrever

Se pudesse

Eu ser

Que eu seria

Não sei bem o que queria ser

Mas nunca seria

Ser

Ser o que eu sentia.

 

Se eu pudesse

Meu Deus do mar envenenado

Eu queria ser

Ser árvore porta-aviões ou poeta desamado

Sendo não ser

Ser um esqueleto enforcado.

 

E se eu pudesse

Ser eu o vento

Aquele vento que levanta do chão

A pobre enxada

Do rico camponês…

E se eu ainda o quisesse

E pudesse ser

Ser sem saber

Que um pobre coração

Voa até à lua de ser

Porque não sendo o querer

Também não o serei querendo

Que ser

Ou não ser

Ser o poeta.

 

E sendo eu o vento

Ou uma pedra de adorno

Prefiro ser gente

Do que ser…

Do que ser (morno).

 

Se eu pudesse ser

Sabendo que depois o era

Sem perceber

Ou saber

Como se constroem as canções de Inverno,

 

E sendo hoje a lareira da noite

Onde já queimei os braços

Agora as pernas…

E mais logo o restante esqueleto

E à chegada do autocarro

O pobre viajante

Sem bagagem

Ou esperança de o ser

Porque não o sendo

E o querendo

O rio corre sempre para o mar

O mar que está a arder.

 

E depois vem a traineira

Do querer

E a do saber

Nunca sabendo

Sem o saber

Que querer

Se pudesse

Ser

Ou não ser…

Este vagabundo poeta do amanhecer.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 21/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Rio invisível

 

Íamos à montanha

Em busca das serpentes

E desenhávamos um rio invisível

Nas pedras adormecidas,

 

Depois

Descíamos à aldeia

E nunca encontramos o sono

Nas mãos de uma árvore,

 

Mas víamos as lágrimas

Que sobejavam das lareiras da insónia

E deste pequeno incêndio de tristeza

Acordavam as estrelas da madrugada,

 

E ficávamos sem a madrugada

Como ficamos sem a lua

Quando este mar salgado

Se suicidou no areal da saudade.

 

 

Alijó, 21/12/2022

Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

A Janela

(ao meu avô Domingos)

 

 

Deixaste fugir

Os espantalhos dos campos de milho de Carvalhais

Fumaste todos os cigarros

Dos espantalhos dos campos de milho de Carvalhais

Ias à janela

Beijavas a lua

E voavas até ao apeadeiro mais próximo.

 

Cresceste

Fizeste-te louco

Caminhaste pelas calçadas e ruelas

De uma cidade morta

Com cheiro a incenso

E a sexo

E a merda.

 

Pensavas que os campos de milho de Carvalhais

Eram o mar disfarçado de pedra-pomes

Mas os campos de milho de Carvalhais

Eram canções de vento

Palavras enamoradas

Pensavas que os campos de milho de Carvalhais

Pertenciam às esplanadas

Onde fumavas cigarros de prata

Acepipes

E pequenas larvas.

 

Mas daquela janela

De onde conseguias observar a torre da Igreja

E todos os cacilheiros com destino a Santa Cruz da Trapa

Havia uma ponte invisível

Com odor a naftalina

E lábios de saudade.

 

Cansavas-te dos campos de milho de Carvalhais

Galgavas as sombras

E as ribeiras de pólen

Dos campos de milho de Carvalhais

E à janela

Iluminada pelo silêncio da noite

Lá estava ele o coitado do espantalho

Com mãos de vidro

E pernas de vergonha…

 

Não tenhas medo

Meu querido irmão

Das infinitas palavras que habitam o dicionário

Não tenhas medo

Meu grande irmão

Do sono

Da paixão

E da morte,

 

Tudo faz parte

Tudo é vida

(Tudo é fado)

E umas vezes é sorte.

 

Escrevia cartas ao sono

O garoto mimado

Como se o sono fosse um gajo porreiro

Mas o sono

Que tal como os campos de Carvalhais

É um grande filho da puta

Embriaga-se durante a noite

E durante o dia

Vai à janela de Carvalhais

Puxa de um cigarro

E em silêncio

Apanha o primeiro cacilheiro com direcção a Santa Cruz da Trapa…

 

Os livros comiam-me

(e se ainda fossem gajas!)

Agora livros…

 

Quem quer um gajo com livros

Com discos

Com isto e aqueloutro

Sem tudo

Com nada

Ausente

Astronauta

Cançonetista

E nas horas vagas

Trapezista de circo ambulante

E stripper.

 

Íamos à Cárcoda

Sentávamo-nos sobre as pedras

Conversávamos de gajas

E até me queria impingir uma gordinha

Com sotaque de futura empresária…

Não gostei da ideia

(não por a moçoila ser gordinha, mas não nasci para ser capitalista)

E vender artesanato

Pior ainda…

Não nasci para nada.

 

Pelas seis horas da madrugada

A janela

Aos poucos

Fechava-se como se tratasse de um caracol

E escondia-se dentro do quarto,

 

E da algibeira

Sem perceber porque tinha lá pedaços de néon

E um cachecol das estrelas em papel

Acordavam as espigas de milho dos campos de Carvalhais,

 

E o silêncio era tal…

Que ouvíamos a respiração ofegante da tristeza.

 

 

 

 

 

 

 

Alijó, 20/12/2022

Francisco Luís Fontinha