domingo, 25 de dezembro de 2022

O orgasmo

 Um dia

Qualquer dia

Ninguém vai saber

O que é um orgasmo,

Quando dois corpos

Se fundem nas lágrimas de uma estrela

E uma pequena sombra do luar

Entra no peito

(centro de massa)

E um silêncio de prazer

Explode nas nuvens do desejo.

 

O orgasmo

Quando os dedos tocam docemente nas páginas de um livro

Quando a mão acaricia a capa de um livro

E dentro do corpo daquele que toca e acaricia

Uma tempestade de estrelas acorda

E um lençol de sémen é lançado contra a madrugada.

 

O orgasmo de quando o poeta termina o poema

E quando o escritor termina o texto

E todas as personagens do texto

Movem-se com ovelhas no prado

E do prado,

O orgasmo do poema

O desejo do poema

O beijo

O orgasmo do beijo

Sobre uma cama de amêndoas doces.

 

O orgasmo de quando uma criança pergunta à mãe

Mãe como cantavam os pássaros

Quando ligavas o interruptor da manhã

E uma melodia poética entrava pela janela

E tu afagavas-me o cabelo,

 

O orgasmo de quando um menino pergunta ao pai

Pai como brincavam as acácias da tua infância

E me levavas a ver os barcos

E dos meus olhos um infinito orgasmo de pequenos gemidos

Eram lançados ao mar.

 

E do mar

Regressavam a mim as finas lâminas que só o prazer consegue fazer acreditar

E uma janela vaginal voa sobre as esplanadas da inocência

O sol poisava sobre os corpos fundidos em aço prazer

E às vezes o laminado silêncio da noite

Pareciam pássaros envenenados

Como abelhas perdidas no mel.

 

O orgasmo quando uma mulher abre a janela

E olha o mar

Como se fosse o seu primeiro beijo.

 

O orgasmo quando o luar brinca sobre a noite

Comendo palavras contidas num pequeno cartuxo de medo

E sem aviso nem agrado;

O grito da tua boca

Quando o gemido inventa o prazer.

 

 

 

 

 

Alijó, 25/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Exército de palavras

 Éramos muitos

Éramos um exército

Hoje somos poucos

E nem um pequeno pelotão somos,

 

Hoje somos fotografias

Sobre uma secretária na casa de alguém

Ou suspensas numa parede,

 

Éramos tantos que não tínhamos medo da geada

Que não tínhamos medo de que a noite se extinguisse

Nas mãos da madrugada,

 

Éramos tantos

E muitos

Hoje somos sombras

Hoje somos saudade

E recordações

E não somos nada,

 

Éramos muitos

Éramos um exército que todas as noites

Procurávamos o luar

E do silêncio construíamos um rio

Que ainda hoje corre nas veias de alguns…

Éramos tantos

Meu Deus…

Hoje somos quase nada

À espera de que regressem as lápides

E as sepulturas

E possamos ser uma colmeia

Não de abelhas

Mas uma colmeia de palavras,

 

E de que servem as palavras

Quando éramos tantos…

E hoje somos apenas alguns

Muito poucos

Tão poucos…

 

 

 

Alijó, 25/12/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 24 de dezembro de 2022

Planeta Terra

 Vive-se e vai-se vivendo

Enquanto este planeta de loucos

Gira e não pára de girar

Vive-se

Vai-se vivendo

Uns dias alegre

Outros dias a chorar.

 

Vive-se carregando um sobretudo de insónia

Quando a noite se despe

E se deita junto ao rio

Vive-se

Vai-se vivendo

Vivendo de frio.

 

Vive-se carregando a enxada da vida

Vive-se

Vai-se vivendo…

Vivendo a poesia.

 

E se um dia

Se um dia

Dia

Esta puta de vida

For um suspiro de vento

Não vivo

Não vou vivendo

Vivendo das palavras que alimento…

 

Vive-se

Vai-se vivendo

 

Enquanto isso

A Terra não pára de girar.

 

 

 

 

Alijó, 24/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Dos dias o outro dia

 Os dias

Os dias que vão passando

Nos dias que nunca esquecemos

As palavras que os dias nos dizia

 

Aos dias

Os meus dias

Enquanto os dias tinham outros dias

 

Os dias cinzentos

Nos dias nublados

Os meus dias

Os dias…

 

E se um dia eu for dia

Se eu pudesse ser dia

 

Não

 

Não o queria

 

Deixei de gostar dos dias

E sou apaixonado pela noite

De preferência sem luar

Noite

Muito escura

 

Escura.

 

 

 

 

Alijó, 24/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Da minha janela

 Sei que desta janela nunca verei o mar

Porque o mar está longe

Muito longe

E desta janela

Também não verei o rio

Não está muito longe

E também não está muito perto,

 

E para que da minha janela

Eu

Eu mesmo

Veja o mar

E veja o rio

Preciso primeiro

Ir à janela

Puxar por um cigarro

Arregaçar as mangas da camisa

E gritar…

 

Marrrrrrrrrrrrrrrrrrrr

Riooooooooooooooooo

 

Dou uma baforada no cigarro

Suspiro

E o mar e o rio e a lua e anoite

Todos

Entram pela janela

E deitam-se sobre a minha secretária.

 

 

 

 

 

Alijó, 22/12/2022

Francisco Luís Fontinha

No sorriso de uma criança

 Às vezes

O sorriso de uma criança

Esconde as lágrimas de uma mãe.

 

E quantas vezes

Muitas vezes

Uma mãe inventa sorrisos na cara

Escondendo as lágrimas e a tristeza

Para que uma criança não saiba

Nunca saiba o que é a pobreza.

 

Muitas vezes

Às vezes

Uma mãe não se suicida

Porque vê uma criança

Uma criança feliz

Contente…

Uma criança com vida.

 

E tantas vezes

Algumas vezes

Eu percebia que a minha mãe chorava

E confrontada…

Me engava

E explicava-me que o dia estava tão belo!

E meu Deus…

Como poderia o dia estar tão belo

Se chovia torrencialmente

E tínhamos o frigórico sem nada…

 

Muitas vezes

Às vezes

No sorriso de uma criança

Acorda a manhã nublada,

 

E muitas vezes

Às vezes…

Uma manhã nublada

Pode ser o sorriso de uma criança

Quando essa pobre criança é amada.

 

 

 

Alijó, 22/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Deus do mar envenenado

 Se eu pudesse ser

Eu era

Barco ou caravela

Nuvem foguetão

Poeta sem escrever

Se pudesse

Eu ser

Que eu seria

Não sei bem o que queria ser

Mas nunca seria

Ser

Ser o que eu sentia.

 

Se eu pudesse

Meu Deus do mar envenenado

Eu queria ser

Ser árvore porta-aviões ou poeta desamado

Sendo não ser

Ser um esqueleto enforcado.

 

E se eu pudesse

Ser eu o vento

Aquele vento que levanta do chão

A pobre enxada

Do rico camponês…

E se eu ainda o quisesse

E pudesse ser

Ser sem saber

Que um pobre coração

Voa até à lua de ser

Porque não sendo o querer

Também não o serei querendo

Que ser

Ou não ser

Ser o poeta.

 

E sendo eu o vento

Ou uma pedra de adorno

Prefiro ser gente

Do que ser…

Do que ser (morno).

 

Se eu pudesse ser

Sabendo que depois o era

Sem perceber

Ou saber

Como se constroem as canções de Inverno,

 

E sendo hoje a lareira da noite

Onde já queimei os braços

Agora as pernas…

E mais logo o restante esqueleto

E à chegada do autocarro

O pobre viajante

Sem bagagem

Ou esperança de o ser

Porque não o sendo

E o querendo

O rio corre sempre para o mar

O mar que está a arder.

 

E depois vem a traineira

Do querer

E a do saber

Nunca sabendo

Sem o saber

Que querer

Se pudesse

Ser

Ou não ser…

Este vagabundo poeta do amanhecer.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 21/12/2022

Francisco Luís Fontinha