(ao meu avô Domingos)
Deixaste fugir
Os espantalhos dos campos
de milho de Carvalhais
Fumaste todos os cigarros
Dos espantalhos dos
campos de milho de Carvalhais
Ias à janela
Beijavas a lua
E voavas até ao apeadeiro
mais próximo.
Cresceste
Fizeste-te louco
Caminhaste pelas calçadas
e ruelas
De uma cidade morta
Com cheiro a incenso
E a sexo
E a merda.
Pensavas que os campos de
milho de Carvalhais
Eram o mar disfarçado de
pedra-pomes
Mas os campos de milho de
Carvalhais
Eram canções de vento
Palavras enamoradas
Pensavas que os campos de
milho de Carvalhais
Pertenciam às esplanadas
Onde fumavas cigarros de
prata
Acepipes
E pequenas larvas.
Mas daquela janela
De onde conseguias
observar a torre da Igreja
E todos os cacilheiros
com destino a Santa Cruz da Trapa
Havia uma ponte invisível
Com odor a naftalina
E lábios de saudade.
Cansavas-te dos campos de
milho de Carvalhais
Galgavas as sombras
E as ribeiras de pólen
Dos campos de milho de
Carvalhais
E à janela
Iluminada pelo silêncio
da noite
Lá estava ele o coitado
do espantalho
Com mãos de vidro
E pernas de vergonha…
Não tenhas medo
Meu querido irmão
Das infinitas palavras
que habitam o dicionário
Não tenhas medo
Meu grande irmão
Do sono
Da paixão
E da morte,
Tudo faz parte
Tudo é vida
(Tudo é fado)
E umas vezes é sorte.
Escrevia cartas ao sono
O garoto mimado
Como se o sono fosse um
gajo porreiro
Mas o sono
Que tal como os campos de
Carvalhais
É um grande filho da puta
Embriaga-se durante a
noite
E durante o dia
Vai à janela de
Carvalhais
Puxa de um cigarro
E em silêncio
Apanha o primeiro
cacilheiro com direcção a Santa Cruz da Trapa…
Os livros comiam-me
(e se ainda fossem gajas!)
Agora livros…
Quem quer um gajo com
livros
Com discos
Com isto e aqueloutro
Sem tudo
Com nada
Ausente
Astronauta
Cançonetista
E nas horas vagas
Trapezista de circo
ambulante
E stripper.
Íamos à Cárcoda
Sentávamo-nos sobre as
pedras
Conversávamos de gajas
E até me queria impingir
uma gordinha
Com sotaque de futura
empresária…
Não gostei da ideia
(não por a moçoila ser gordinha,
mas não nasci para ser capitalista)
E vender artesanato
Pior ainda…
Não nasci para nada.
Pelas seis horas da
madrugada
A janela
Aos poucos
Fechava-se como se
tratasse de um caracol
E escondia-se dentro do
quarto,
E da algibeira
Sem perceber porque tinha
lá pedaços de néon
E um cachecol das
estrelas em papel
Acordavam as espigas de
milho dos campos de Carvalhais,
E o silêncio era tal…
Que ouvíamos a respiração
ofegante da tristeza.
Alijó, 20/12/2022
Francisco Luís Fontinha